Contas à Vista

MP de revitalização da indústria mineral é apenas aumento da CFEM

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

8 de agosto de 2017, 8h00

Spacca
O que você imagina quando recebe a notícia que está sendo lançado um programa de revitalização da indústria mineral brasileira? De minha parte, pensava que viria um pacote com instrumentos creditícios, inovações referentes a garantias para os project finance do setor, possibilidade de criação de novas operações societárias que agregassem valor a essa atividade tão antiga quanto importante para o desenvolvimento de qualquer país. Sem mineração, não haveria o aparelho em que escrevo nem esse em que você me lê. Na atual crise econômica, é a exportação de commodities minerais que ainda sustenta a balança comercial brasileira, ao lado das commodities agrícolas.

Pois bem, espremendo as três medidas provisórias apresentadas como tal programa de revitalização no dia 25 de julho (MPs 789, 790 e 791) verifica-se que tudo não passou de um brutal aumento de CFEM, que é o royalty pago pelo setor mineral. O foco não está apenas nas alíquotas, que, à exceção do minério de ferro, foram levemente majoradas — sendo que algumas foram até reduzidas, como as que são utilizadas na construção civil. O problema central está na base de cálculo, que foi largamente ampliada.

Sabe-se que os recursos minerais são de propriedade da União (artigo 20, IX, CF), e é garantido ao minerador a propriedade do produto da lavra (artigo 176, caput, CF). A CFEM, também conhecida como royalty da mineração, é o preço público que a União cobra das pessoas que exploram a atividade minerária. Em termos bastante largos, é como se a União vendesse um bem (minério) por um preço (CFEM), que é devido por quem extrai o minério. Expus isso com detalhes em um livro resultante de minha tese de livre-docência em Direito Financeiro na USP[1].

No Brasil, esse royalty é calculado como uma fração do preço de venda do produto mineral, abatidos os tributos incidentes, o transporte e o seguro. Essa regra mudou pela MP 789. Agora, só será possível deduzir “os tributos incidentes sobre sua comercialização, pagos ou compensados, de acordo com os respectivos regimes tributários”.

Essa mudança na base de cálculo parece singela, mas 1) embute um brutal aumento nos custos de operação das empresas mineradoras, em um momento de séria crise no setor; e 2) possui nítidos sinais de inconstitucionalidade, pois majora o preço do minério vendido pela União (CFEM), em razão de fatores externos que são ínsitos à logística de cada empresa; com isso, passará a receber valores diferentes pela venda do mesmo bem. O aumento decorre da inclusão na base de cálculo da CFEM dos custos com transporte e seguro, bem como da modificação do critério para utilização dos tributos.

A exploração das atividades minerais é caracterizada pelo critério da rigidez locacional, isto é, os bens só podem ser extraídos de onde a natureza os criou. Não é como uma fábrica de tênis ou de cigarros, que pode ser montada e desmontada a partir de qualquer lugar do mundo, considerados diversos critérios econômicos — o que não ocorre na indústria mineral. Por exemplo: só se pode explorar o minério de ferro de Carajás a partir daquele local. Seria mais fácil se toda a atividade pudesse ser feita em locais próximos dos grandes centros urbanos, mas não é possível — tem que explorar o minério onde ele estiver localizado, e isso gera um enorme problema de logística, pois, para retirar esse ferro de Carajás e levá-lo até o porto de onde será escoado, é necessário transportá-lo por uma ferrovia com 900 quilômetros de extensão. Pela regra anterior, todo o custo desse transporte poderia ser abatido da base de cálculo da CFEM; pela nova regra, isso não será mais possível. Não sei os números para projetar o aumento de custos, mas é possível imaginar que se trata de algo bastante substancial.

Essa majoração da base de cálculo afetará a extração de todos os minérios explorados no país, pois a esmagadora maioria das minas encontra-se situada longe dos centros de transformação do minério em outros produtos, e dos portos por onde serão exportados. Em síntese: a inclusão do custo do transporte da base de cálculo da CFEM acarretará brutal aumento desse preço público, onerando sobremaneira quem se arrisca a explorar as minas que se encontram nos locais mais afastados. Eis a perversidade da medida.

O mesmo vai ocorrer com aqueles mineradores que verticalizam a produção, extraindo e transformando o bem mineral em produtos minerais. Nesses casos, em vez de ocorrer a venda do bem mineral, a própria indústria os transforma através de diversos processos físico-químicos. Antes da MP 789, isso era regulado por norma infralegal, de duvidosa constitucionalidade. Agora se pretende apurar esse custo na cadeia produtiva, até o momento em que o bem mineral seja transformado, o que é completamente inadequado, sob o ponto de vista jurídico e econômico.

Entendo inconstitucional a modificação da base de cálculo da CFEM tal como adotada pela MP 789. Sendo a União a proprietária do bem mineral, ela pode compor o preço com fatores externos ao mesmo? Acrescer ao preço do minério (CFEM) o custo de transporte e seguro fará com que haja aumento de preço em decorrência de fatores externos ao bem alienado. Usando o exemplo acima: a CFEM do minério de ferro extraído de Carajás sofrerá um aumento que corresponderá, no mínimo, ao custo de instalação e manutenção da estrada de ferro que leva o minério ao porto, ou seja, um fator externo ao bem mineral vendido e que compõe a logística da empresa. É como se a União dissesse aos mineradores: teu custo compõe a base de cálculo do meu preço — o que é estranho, para dizer o mínimo. O mesmo se pode dizer do transporte através de minerodutos, ou por via fluvial ou rodoviária, pois cada mina estará sujeita a um desses modais de transporte em face da rigidez locacional. Assim, o mesmo minério vendido pela União, cujo preço é a CFEM, terá valores diferentes — embora seja o mesmo produto, e essa variação ocorrerá de acordo com fatores externos ao bem alienado, isto é, em razão da logística/custo de transporte de cada empresa, bem como do custo com seguro e tributos (cujo critério foi modificado).

Eis o ponto: é possível que o mesmo bem seja vendido pela União a preços diferentes, sendo tal variação decorrente de fatores externos ao produto? Tudo indica que não. Se a União quer cobrar mais, deve fazê-lo de forma objetiva, e não através de critérios externos, que compõem o custo de cada empresa com sua logística de transporte, seguro e tributos.

Vou usar um paralelo com o setor de petróleo. Quando foi efetuada a outorga onerosa das reservas de petróleo do pré-sal para aumentar o capital social da Petrobras, foi utilizado o preço do petróleo in situ, isto é, no fundo do mar. Embora o preço do barril naquela época estivesse em torno dos US$ 80, foi utilizado o preço médio de US$ 8,51, o que se revelou correto, pois uma coisa é o preço do petróleo no fundo do mar, outra é o preço do petróleo já extraído, pronto para o refino.

A mesma lógica deve ser aplicada à atividade minerária, pois uma coisa é o preço do minério in situ, e outra é o preço do minério extraído. Isso foi muito bem definido pelo STJ na decisão do REsp 756.530, que teve por relator o ministro Teori Zavascki. Nesse acórdão, foi determinado que o custo do transporte dentro da mina era ínsito à atividade minerária, mas o custo com transporte fora da mina, para entrega do bem mineral, não deveria ser acrescido ao preço (CFEM), pois neste caso a União estaria aumentando a base de cálculo de maneira injustificada, locupletando-se de fatores externos ao bem alienado. A União é proprietária do bem mineral in situ, e não do bem mineral beneficiado, que se caracteriza, na forma do referido acórdão, como um produto mineral, qual seja, retirado da jazida e pronto para venda ou consumo. A inconstitucionalidade dessa majoração é patente.

Outro aspecto controverso da MP 789 diz respeito às alíquotas do minério de ferro, que recebeu um tratamento de escala móvel, isto é, quanto maior o preço, maior a alíquota da CFEM. Trata-se de uma inovação que, tudo indica, tem por modelo o setor de petróleo. Neste, cobra-se um royalty pela extração e, de acordo com algumas variáveis, cobra-se também uma participação especial, que majora aquele valor. As variáveis são, como regra: melhor qualidade ou maior produção de óleo, em face do que era esperado quando da licitação do bloco, ou em face de aumento inesperado de preços (guerra ou boicote dos países produtores). Porém, há uma distinção regulatória entre o regime de exploração mineral e o petrolífero, pois no setor de petróleo existem licitações de blocos já pesquisados, e a participação especial é cobrada em razão de um fato inesperado entre o que foi licitado e o que está sendo explorado. No setor minerário a regra é outra, pois, como padrão, não há licitação, cabendo ao minerador todo risco da fase de pesquisa. O risco e o custo da pesquisa petrolífera são do Estado, e na pesquisa mineral é da empresa. Trata-se de uma substancial diferença entre os dois modelos que deve ser levada em consideração.

A despeito da CFEM ser uma receita pública patrimonial (preço) arrecadada pela União, esse aumento de custos vai privilegiar fartamente os cofres estaduais para onde é transferido 23% da arrecadação, e principalmente os cofres municipais, pois 65% do que é arrecadado vai para eles. O debate antes existente sobre o rateio da arrecadação de forma mais ampla, dentre os municípios atingidos pela atividade minerária, não foi incluído no texto da MP 789.

Por outro lado, nada justifica juridicamente o uso de medida provisória para o aumento desse preço público (CFEM), exceto critérios políticos. Onde está a urgência constitucionalmente exigida para o uso de medida provisória? Não se vê em nenhuma das três MPs editadas, embora todas sejam relevantes.

Outra das MP (790) veicula sutis alterações no Código de Mineração, sendo o destaque a mudança no regime exploratório do licenciamento, que se refere basicamente aos materiais utilizados na construção civil.

E a MP 791 cria a Agência Nacional de Mineração (ANM), que se espera venha a ter mais apoio governamental que o vetusto Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), que foi extinto. Para sua manutenção, foi criada nova taxa denominada Taxa de Fiscalização da Atividade Mineral (TFAM), que vai se somar às Taxas de Fiscalização dos Recursos Minerais (TFRMs), que são cobradas pelos estados de Minas Gerais, Pará e Amapá, estas já sub judice perante o STF. Em suma, mais aumento de carga tributária. Depois, alega-se desconhecimento sobre os motivos pelos quais o saldo da balança comercial não cresce e o custo-Brasil dispara. Em grande parte desse setor, sendo maior o custo de produção e o preço de venda balizado internacionalmente, o aumento de custos não tem como ser repassado.

Volto ao início: espremendo as três MPs, como é que se pretende revitalizar um setor apenas aumentando sua carga tributária? A essa pergunta, não encontrei resposta.


[1] Fernando Facury Scaff, Royalties do Petróleo, minério e energia – Aspectos constitucionais, financeiros e tributários. Ed. RT. https://www.livrariart.com.br/produto/royalties-do-petroleo-minerio-e-energia-27575

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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