Opinião

Prisão domiciliar cautelar deve ser deduzida do cálculo de fixação da pena

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7 de agosto de 2017, 15h10

O Código de Processo Penal, desde a alteração promovida pela Lei 12.403/2011, recebeu medidas cautelares pessoais diversas da prisão. Essas medidas permitem ao juiz substituir a prisão preventiva, imposta no curso do processo penal, por obrigações menos gravosas que possam assegurar a eventual aplicação de sanção criminal e garantir a ordem pública sem que o acusado tenha de ser recolhido ao cárcere.

A partir dessa alteração legislativa foi superada a dicotomia existente até então no processo penal pela qual o acusado era mantido preso preventivamente ou respondia o processo em liberdade. Nos termos atuais, a prisão preventiva passa a ser medida excepcional, tendo caráter subsidiário em relação às demais medidas cautelares pessoais.

Essas medidas cautelares pessoais estão previstas no art. 319, do Código de Processo Penal. São elas: o monitoramento eletrônico, a proibição de contatar vítimas e o recolhimento domiciliar, entre outras. A recente sistemática de medidas cautelares alternativas gerou, entretanto, questões sobre a influência do seu cumprimento em eventual pena definitiva.

A imposição de recolhimento domiciliar (art. 319, inc. V, CPP) é a hipótese mais gritante, pois representa uma limitação significativa na liberdade de ir e vir do acusado. Assim, é preciso questionar se essa medida cautelar deve ser considerada como cumprimento de pena para fins de desconto no total da condenação à restrição de liberdade.

Nesse sentido, de acordo com a legislação penal e de execução penal, o tempo de prisão preventiva, prisão provisória identificada como cautelar pessoal, será contabilizado diante de uma condenação. É a incidência da chamada detração penal, ou seja, o desconto do tempo de prisão provisória na pena privativa de liberdade, ao início de seu cumprimento (art. 66, III, c, da Lei de Execução Penal).

O Código Penal, em seu artigo 42, dispõe que será computado, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória.

O fundamento da detração reside, em princípio, na proibição do bis in idem – a dupla imputação, responder pelo mesmo fato por duas vezes. O ne bis in idem está caracterizado implicitamente no art. 1°, III, da Constituição Federal (a dignidade da pessoa humana). Muito embora não se trate de princípio explícito, sua incorporação ao ordenamento complementa os direitos e garantias individuais previstos na Constituição Federal.

De acordo com o instituto comentado, a prisão preventiva há de ser considerada no tempo de prisão definitiva, eis que a prisão processual representa, preventivamente, a aplicação de prisão aos fatos em apreciação judicial. Assim, ainda que a qualidade e a natureza das prisões provisórias e definitivas sejam distintas, a supressão do direito de locomoção deve ser compensada na pena final.

Todavia, quanto a decretação de medida cautelar pessoal diversa da prisão, não há previsão expressa indicando a aplicação ou não de detração penal, muito embora se trate de restrições de liberdade. É dizer que não haveria diferenciação para fins de detração na situação do acusado que responde em liberdade e do acusado submetido a restrições em sua liberdade diversas da prisão como o recolhimento domiciliar durante o curso do processo, eis que explicitamente a lei não determina desconto de pena no início do cumprimento de condenação definitiva.

A desigualdade na situação é evidente. Há um tratamento mais grave ao acusado cumprindo medida cautelar diversa da prisão em comparação àquele que responde em liberdade. Isto porque esse último não faz jus a descontos pela detração se condenado, enquanto aquele não tem segurança legal de que o tempo de cumprimento de medidas será de algum modo contabilizado na fixação de eventual sanção.

Igualmente desigual é a comparação com o acusado que foi recolhido ao cárcere durante o curso do processo. Esse último terá, certamente, reconhecido o desconto da detração à sua pena.

É oportuno pontuar que a detração penal tem por fundamento o princípio da equidade e a vedação ao bis in idem, de modo que é salutar que o instituto seja estendido a qualquer hipótese de intervenção do Estado em direitos que constringiam a liberdade de locomoção.

Essa lógica que determina a aplicação de detração em caso de aplicação de cautelar alternativa encontra repercussão no direito estrangeiro. O Código Penal espanhol, por exemplo, estabelece que as privações de direitos cautelares serão abonadas em sua totalidade no cumprimento da pena imposta.

Nessa legislação, mesmo quando as medidas cautelares e a pena imposta são distintas, o julgador irá considerar executada a pena imposta na parte em possa que considerar compensada (Código Penal espanhol: Sección 6ª, art. 58[1]).

Já o Código de Processo Penal italiano tem dispositivo expresso sobre a modalidade de prisão domiciliar, no sentido de que o imputado em arresto domiciliar se considera, para todos os efeitos, em estado de custódia cautelar. (Código de Processo Penal Italiano: art. 284, 5[2])

O Código Penal português contempla raciocínio semelhante. Prevê expressamente o desconto total do tempo de pena de prisão, caso o réu tenha sofrido no curso do processo detenção, prisão preventiva, ou obrigação de permanência na habitação (Código Penal Português: art. 80, 1[3]).

De fato, o direito comparado demonstra a razoabilidade de interpretar o instituto de modo a contemplar compensação entre a medida cautelar e eventual prisão definitiva. Isso principalmente nos casos em que a cautelar imposta limita demasiadamente a liberdade de locomoção, como é o recolhimento domiciliar e monitoramento eletrônico.

A lacuna apontada no direito tem prospecção de ser preenchida. Dois projetos de lei tramitam no Congresso Nacional com propostas de textos que dirimirem a dúvida na aplicação desse dispositivo.

De outro lado, tramita o Projeto de Lei 8.045/2010 (proposta de novo Código de Processo Penal) em que um dos dispositivos define que o tempo de recolhimento domiciliar será computado no cumprimento da pena privativa de liberdade na hipótese de fixação inicial do regime aberto na sentença condenatória. Acrescenta, ainda, que caso o réu comece cumprindo a condenação em regime fechado, substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, será computado o tempo de duração das medidas[4].

Também nessa temática, o Projeto de Lei 513 de 2013 em trâmite no Senado Federal é destinado a promover alterações na Lei de Execução Penal. Uma delas é a inclusão do de dispositivo pelo qual passará a ser computado na pena privativa de liberdade e na medida de segurança o tempo de cumprimento de qualquer medida cautelar, prisão provisória, prisão administrativa, e de internação em Hospital de Custódia ou estabelecimento similar.[5]

Não obstante os projetos de lei que visam esclarecer a problemática, a ausência de menção à detração para cautelares distintas da prisão no ordenamento não impede sua aplicação pelo juiz, desde que a medida cautelar restritiva cumprida tenha compatibilidade lógica com a pena restritiva de direitos aplicada ao final do processo.

Desta forma, seria possível descontar o tempo passado em prisão domiciliar da eventual pena de prisão definitiva em regime aberto ou o período processual no qual o réu foi proibido de frequentar determinados lugares da pena restritiva da mesma natureza, se essa sanção constar da condenação.

Caso a cautelar e a pena tenham naturezas distintas — como na hipótese da cautelar de recolhimento domiciliar e pena de prisão em regime fechado — o desconto pela detração deve também ser aplicado, haja vista ter sido o acusado submetido a privação em sua liberdade e considerando que, até o momento, a legislação não fixou modo diverso de detração (na forma proposta nos projetos de lei mencionados acima).

A doutrina tem admitido que apesar de a legislação calar sobre a detração de medidas cautelares alternativas, nos casos em que a cautelar envolve recolhimento domiciliar integral e monitoramento eletrônico se vislumbra possível a aplicação detração, justamente para descontar tempo de pena definitiva a ser cumprida em regime fechado[6].

Frisa-se, por fim, que um acusado submetido a recolhimento domiciliar integral e monitoramento eletrônico experimenta privação de liberdade que não pode simplesmente ser ignorada. A residência do acusado torna-se seu cárcere e não por outra razão é chamada de prisão domiciliar. Desse modo, o período de restrição à sua locomoção deve ser interpretado como circunstância passível de ser detraída em proporção de um para um.

Esse raciocínio tem sido trabalhado pela jurisprudência brasileira, tal como ilustra o trecho decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “não é o fato de o sentenciado encontrar-se em prisão domiciliar que afastará o direito à detração, afinal, da mesma forma que a prisão em estabelecimento prisional, o acusado é privado de uma série de direitos, notadamente sua própria liberdade”[7].

Inclusive no Superior Tribunal de Justiça verifica-se a constatação de que o tempo de prisão em recolhimento domiciliar é passível de detração penal. A corte superior ao se deparar com o tema estabeleceu o entendimento de que “o tempo de prisão cautelar efetivamente cumprida em regime domiciliar deve ser computado na pena privativa de liberdade para fins de detração”[8].

Ainda que o recolhimento domiciliar não seja integral, mas admita o trabalho externo, a conclusão seria mesma. Isso porque o trabalho do acusado deve ser incentivado e aflige direito fundamental qualquer interpretação que prejudique a intenção do acusado de empreender sua profissão.

Ademais, sendo a ressocialização um dos fundamentos declarados da legislação penal, se o indivíduo, desde o processo, se submeteu e cumpriu medidas cautelares diversas da prisão a ele impostas, fica nítido a sua mudança de comportamento no sentido de atuar conforme o ordenamento jurídico. Deve tal ato ser computado na detração penal, eis que se filia aos objetivos da pena.

O acusado submetido à prisão domiciliar e monitoramento eletrônico, além de outras medidas cautelares alternativas, durante a instrução criminal, faz jus à detração, mesmo silente a legislação a respeito do respectivo desconto na pena final, em respeito ao princípio da equidade e da vedação do bis in idem. Isso porque a detração deve ser aplicada sempre que houver intervenção do Estado em direitos, seja para restringir ou para privar a liberdade do indivíduo.

Por fim, apesar de inexistir objetividade na legislação, é certo que o cumprimento de medida cautelar alternativa que determine constrição relevante à liberdade de ir e vir, ainda que mais leve do que a prisão preventiva, deve ser levada em consideração em futura compensação em sentença condenatória. Sobretudo tratando-se de recolhimento domiciliar, em que há efetiva restrição da liberdade, é de rigor a incidência da detração para desconto de todos os dias de prisão domiciliar de eventual pena definitiva em regime fechado.


[1] “1. El tiempo de privación de libertadsufrido provisionalmente será abonado ensutotalidad por elJuez o Tribunal sentenciador para elcumplimiento de la pena o penasimpuestasenla causa en que dichaprivaciónfue acordada, salvo encuantohaya coincidido concualquierprivación de libertadimpuesta al penado enotra causa, que lehaya sido abonada o leseaabonableenella. Enningún caso unmismoperiodo de privación de libertadpodrá ser abonado en más de una causa. 2. El abono de prisión provisional en causa distinta de la que se decretó será acordado de oficio o a peticióndel penado y previa comprobación de que no ha sido abonada enotra causa, por elJuez de Vigilancia Penitenciaria de lajurisdicción de la que dependa el centro penitenciarioen que se encuentreel penado, previa audienciadelministerio fiscal. 3. Sólo procederá el abono de prisión provisional sufridaenotra causa cuandodicha medida cautelar sea posterior a loshechosdelictivos que motivaronla pena a la que se pretende abonar.” 4. Lasreglas anteriores se aplicarántambiénrespecto de lasprivaciones de derechos acordadas cautelarmente.”

[2]“L'imputatoagliarrestidomiciliari si considera in statodi custodia cautelare.”

[3] “A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada. ”

[4] Cf. Art. 607 do projeto de lei 156/2009, atualmente tramitando na Câmara dos Deputados sob o n° PL 8045/2010.

[5] Cf. Art. 130-A do projeto de lei n. 513, de 2013.

[6]Cf. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. “Nada disse a Lei n. 12.403/11 quanto à detração nas hipóteses de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar. Em que pese o silêncio do legislador, entendemos que, funcionando a prisão domiciliar como modalidade de cumprimento de prisão preventiva, o desconto do tempo de cumprimento da medida em caso de condenação previsto no art. 42 do Código Penal é medida de rigor e adequada”.

[7]TJMG, Agravo em Execução Penal n. 1.0223.13.009613-2/001, Rel. Des. Jaubert Carneiro Jaques, j. 28.1.2014.

[8]STJ, habeas corpus n. 11.225, Rel. Min. Edson Vidigal, 5ª turma, j. 6.4.2000.

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