Por um jurista que desconfia do que vê e que faça a prova real de si mesmo
4 de agosto de 2017, 8h00
O desafio será explorar o desconhecido, as ideias diferentes, as perspectivas que desalinham o nosso modo tão seguro (e, quem sabe, ingênuo) de achar regularidade (consonância) em conformidade com nossas crenças preliminares. O sujeito pode achar que é portador de luzes que não foram dadas a outros mortais, que dispõe de capacidades cognitivas especiais ou mesmo iluminação por entidades transcendentes (Deus, seres mitológicos, espíritos-mestres, extraterrestres etc.), assim como o juiz Scherber. É necessário muito autoquestionamento, porque é fronteiriço esse estado que pode tomar contornos de delírio de grandeza e excesso de confiança. Aliás, sabe-se que um dos critérios para que se saiba que não se padece dessa condição é, mesmo, a constante dúvida acerca de suas próprias percepções: o "teste da realidade". Essa atividade de se autoconfrontar deve levar o sujeito a se enxergar cruamente e a perceber os próprios delírios — o que é sinal de “salvação de si mesmo”, de seu próprio mundo, e de que ainda se encontra na realidade. Mas também a rigidez mental pode ser a fissura subjetiva do jurista que, por lidar com a norma, que estatui, conforma, sente-se na posição de um semideus: ele "sabe o que é", sabe o que "é a verdade do caso", sabe o que é o certo, tudo "porque está escrito".
Nesse sentido, a substituição do grande ente moral unificador divino foi substituído pelo Estado e pela Norma posta. Mas ainda o jurista se arroga o grande glosador do que é e do que deve ser. Sua atividade de parecerista junto à grande Norma lhe alça a alguém diferente dos comuns mortais, esses que não dominam o sistema, que não entendem a estrutura das coisas, que não entendem o grande poder que lhes pode expropriar o patrimônio, os filhos, salário, o deus secular ocidental, em que a democracia garante o culto monoteísta.
Daí o complexo de divindade daqueles que lidam com Esta, a Norma, a-que-tem-a-última-palavra, toda. Dizendo isso é que se pode compreender porque cada vez mais é comum no universo jurídico gente que não mais aposta no procedimento, que a verdade, entendida como consonância perfeita com um ato pretérito, só é possível reavivar em fragmentos e mediante construção comunicativa de sentidos. Fato é que conhecer é poder, e o jurista, por conhecer, caminha nas bordas da deformação que o peso do poder provoca. Aliás, a força do poder substitui a da realidade, e o jurista se tornou perito em dar as roupagens da ocasião a fatos. Esses, que creem em uma entidade mítica superior, que regule o juízo em última análise, de algum modo deveriam então confiar mais na justiça superior (um dia virá, se for o caso) e parar de se arvorar no lugar daquele que tudo sabe.
Porque não pensar por outra mirada: se acredito num Ser superior que trará justiça, "ainda que tardia", não posso querer fazê-la agora, fora das regras dos homens — ou não? — apenas de acordo com a minha convicção, eu, semideus. Quando se julga além do que se pode provar, é como se dissesse "eu sei o que aconteceu, mas como a justiça suprema vai demorar, eu a executo agora", ou "eu executo o que sei ser a justiça suprema", e essa operação entra quando as provas falham. É mais justo admitir sua impotência, sua humilde condição de mero sujeito, e seguir as regras. Esse é o grande risco de o jurista, "o escolhido", fazer "justiça com as próprias mãos" — meio não houve para que a justiça fosse feita (não houve elementos), então eis aí as próprias mãos do Juiz, entregues a fazer a justiça. Os donos da verdade se arvoram em enunciar o mundo como ele é aos seus próprios olhos, agindo de forma intolerante com o diferente, até mesmo no dissenso.
O mundo é complexo, cada vez mais descobrimos que as verdades sedimentadas foram superadas, mas em nosso mundinho, talvez, tenhamos “cegueira cognitiva” para manter as verdades costumeiras: o grande problema disso é quando, diante de si, tem-se o outro, para julgá-lo. O universo das relações humanas é multifatorial para afirmações definitivas. Se você olhar ao seu relógio agora, será que a hora é a correta? Tente. E as horas não representam o tempo, mas a convenção coletiva acerca do tempo: em última análise, nos pautamos sempre sobre o que alguém disse — seja a ciência, o autor, o livro, a novela, o amigo… Nenhuma opinião se forma sem que um enunciador enuncie — e isso é linguagem — e daí lhe convença de algo; ainda que nos rebelemos contra enunciadores e enunciados, ainda assim há sempre um enunciador a criar um enunciado, um estatuto, convicção em que me apoio, e dele parto para o seguinte, ou não. A grande questão é a flexibilidade que se tenha a ter consciência desse processo, e de quem você é nele e, principalmente, de que sempre se é produto de algum enunciado, ou do conjunto deles. O produto de todos eles em cada um é que parece ter a cor e o sabor particulares. Ou quem nunca detestou um enunciado verdadeiro porque o enunciador é um desgosto em pessoa? Ou quem nunca aceitou uma boa mentira porque o enunciador é uma pessoa cortês? Ou seja: mais importa é o que fazemos dos enunciados, dos significantes que condicionam nosso agir no mundo. Esse é o fator que mostra o quanto a interação é determinante, aliás.
Sublinho essas questões porque no processo público de verdades construídas “a minha verdade”, embora vestida corretamente de roupagem democrática, tem gerado um impasse, em que a enunciação tomou moldes de um mau combate, porque é inconsistente, em que tudo é decidido pelo protagonismo de verdade de alguns poucos. Na guerra de narrativas, uma má narrativa não pode prevalecer. Porque ainda que se tenha o poder de enunciar na vida pública, decidindo, existem balizas históricas que apitaram quando forem ultrapassadas. O poder, a força, tem um histórico de horror desde que nas mãos dos seres humanos. E daí se falar em garantias que as tradições — as enunciações-acordo feitas — sejam limites para os enunciadores do momento. As certezas tão evidentes, tão próximas, geram o deslumbramento delirante do enunciador que comparece, todos os dias, no campo do Direito Penal, e não faz o teste da realidade.
Acostumar os olhos a ver mais longe, antecipar as dificuldades, passa a ser o desafio de uma geração que se nega a delirar, como antes, como hoje, em cada opinião lotada de verdade. Esvaziar as verdades a priori talvez possa ser uma das tarefas do devido processo legal. Um critério é útil — em situações de dúvida, lá no íntimo, com o que será mais confortável conviver: o peso de uma condenação errada ou o peso de uma absolvição errada? É a resposta a essa pergunta que pode ajudar a separar o ideológico do técnico. Mas, quando o sujeito já sabe da verdade, o devido processo é da ordem do estorvo. Delírios sinceros me interessam, e contaminam. Desconfiar do produto é a recomendação das ciências exatas, que exigem a prova real das operações para que se enuncie nessa linguagem. Daí que ressalto a necessidade, na ciência jurídica, de um jurista que faça a prova real de si mesmo, o teste da realidade, para que se salve de si mesmo enquanto andar nas bordas limítrofes do poder: a cidade dos Reis, em que se pode se perder olhando apenas para seu próprio reflexo.
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