Medida repetida

Especialistas divergem quanto à legalidade e eficácia de uso de militares no Rio

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2 de agosto de 2017, 15h51

O presidente Michel Temer assinou, na sexta-feira (28/8), decreto autorizando o emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem no Estado do Rio de Janeiro, e, no mesmo dia, militares já patrulhavam rodovias fluminenses e ruas da capital. No entanto, especialistas ouvidos pela ConJur se dividem quanto à constitucionalidade e legalidade da medida e quanto à sua eficácia em reduzir a criminalidade a longo prazo.

Tomaz Silva/Agência Brasil
Para especialistas, presença de militares nas ruas não diminui criminalidade
Tomaz Silva/Agência Brasil

De acordo com o artigo 142 da Constituição, as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Já a Lei Complementar 97/1999, que regulamenta as atividades dos militares, estabelece, no artigo 16-A, que os oficiais podem participar de ações preventivas ou repressivas, mas só contra “delitos transfronteiriços e ambientais”.

Além disso, a LC 97/1999 autoriza, nos artigos 17, 17-A e 18, que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica ajudem na repressão aos “delitos de repercussão nacional ou internacional”, respectivamente, no território brasileiro, áreas marinhas, fluviais e portuárias, e espaço aéreo e campos aeroportuários. Os três dispositivos só permitem que tais auxílios sejam prestados “na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução”.

O uso das Forças Armadas para exercer atividades de policiamento ostensivo, atividades próprias da Polícia Militar, contraria a Constituição e a LC 97/1999, segundo profissionais do Direito.

Para o jurista Lenio Streck, o uso de militares deve ser restrito e restritivo. A seu ver, os oficiais devem agir para preservar o país e suas fronteiras. Internamente, eles podem atuar com logística, inteligência, comunicação e instrução. “Fora disso, o uso é inconstitucional”, destaca o colunista da ConJur.

Nessa mesma linha, o defensor público-geral do Rio de Janeiro, André Luís Machado de Castro, afirma que a segurança pública é uma tarefa que envolve diversos órgãos das três esferas federativas, mas cada um deles deve agir dentro de suas atribuições. “As Forças Armadas têm diversas e importantíssimas funções, para as quais são treinados e armados. Mas patrulhamento ostensivo não é uma delas. Essa atividade cabe à Polícia Militar”.

Mailson Santana
Segundo Fernando Fernandes, uso das Forças Armadas traz fantasma da ditadura
Mailson Santana

Já o criminalista Fernando Augusto Fernandes diz que o uso de militares para patrulhar as ruas do Rio “é uma inconstitucionalidade continuada e reiterada” iniciada na Eco 92, conferência da Organização das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, e repetidas em grandes eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. E mais: a medida tem traços da ditadura militar que vigorou por 21 anos no país, aponta.

“O desvio de finalidade das Forças Armadas traz permanente fantasma do regime de 1964, sendo potencializados os medos de desvios democráticos em um ambiente descarrilhado de respeito à Carta de 1988 que vivemos hoje”, critica o advogado.

Outro lado
Por sua vez, a professora de Direito Constitucional da Uerj Ana Paula de Barcellos não enxerga inconstitucionalidade ou ilegalidade no uso das Forças Armadas no Rio de Janeiro. A seu ver, a Carta Magna e o artigo 15, parágrafos 2º a 6º, da LC 97/1999, permitem o emprego de militares em operações de garantia da lei e da ordem, desde elas tenham área e duração delimitadas.

A norma restringe as ações ao Estado do Rio no período de 28 de julho a 31 de dezembro de 2017. E os dispositivos citados por Ana Paula liberam a utilização de militares se já tiverem sido “esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

A promotora de Justiça Andréa Amin entende que só e possível concluir se há inconstitucionalidade ou ilegalidade na medida após se examinar a atuação das Forças Armadas no Rio. Se ela consistir no apoio às operações coordenadas pela Secretaria de Segurança, não há irregularidade, conforme ela.

Eficácia duvidosa
A eficácia do uso das Forças Armadas também é contestada por especialistas. Levantamento dos jornais O Globo e Extra mostra que, no geral, o número de roubos a pedestres, de veículos, de cargas e homicídios aumentou durante as 11 ações militares no Rio nos últimos 25 anos.

Guilherme Prado
Na visão de Marcelo Freixo, uso de militares é medida cara e ineficaz
Guilherme Prado

Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, deputado Marcelo Freixo (Psol), a medida é cara e ineficaz. “Basta olhar para o Complexo da Maré, o Complexo do Alemão. Isso não resolve nada”, ressalta, referindo-se às comunidades que foram ocupadas pelo Exército e até assistiram a uma queda no número de alguns crimes no período (embora outros delitos tenham crescido), mas que voltaram a crescer assim que os oficiais deixaram os locais.

Se os militares ficarem no Rio até dezembro de 2018, como o ministro da Defesa Raul Jungmann disse que pode acontecer, a operação custará cerca de R$ 1,5 bilhão, estima o ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho. “Mas não há certeza que os resultados sejam compensatórios. O Exército não tem experiência de cuidar da segurança pública de um estado”, opina.

Até porque o “golpe ao crime organizado” anunciado por Jungamann não afeta a criminalidade esparsa, como roubos e furtos, destaca Silva Filho. Isso porque esses são delitos de oportunidade, diz, e aumentaram até quando havia um grande número de militares nas ruas, conforme o levantamento dos jornais O Globo e Extra. Por outro lado, ele aponta que o roubo de cargas pode ser afetado pela presença dos oficiais nas rodovias.

José Vicente da Silva Filho e Marcelo Freixo também afirmam que integrantes das Forças Armadas não tem treinamento para exercer eficientemente atividades de policiamento ostensivo. O que os militares poderiam fazer é dar suporte a ações das polícias, declara o ex-secretário de Segurança Pública, como cercar comunidades para agentes revistarem quem entra e sai ou ajudar na fiscalização de embarcações.

O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Etchegoyen, reconheceu que o patrulhamento não é a atividade principal das Forças Armadas, mas disse que ele pode ser exercido pontualmente para garantir a lei e a ordem.

De qualquer forma, o ministro do governo Temer deixou claro que a permanência prolongada dos militares na cidade não produz resultados. Por isso, ele declarou que a medida será “cirúrgica” e complementada por ações sociais.

Tropa sem força
Também há 620 integrantes da Força Nacional nas ruas do Rio, mas a substituição de militares por tais oficiais não aumentaria muito a eficiência do combate à criminalidade. De acordo com José Vicente da Silva Filho, essa corporação, por ser formada por policiais cedidos pelos estados, não possui coesão. Além disso, seus integrantes não conhecem o território, e costumam ser hostilizados pelos policiais locais, cita o especialista.

O problema do Rio não é só de patrulhamento, analisa André Luís Castro. Dessa maneira, seria melhor que o governo federal concentrasse seus esforços na fiscalização de fronteiras, já que a maioria das drogas e armas do Brasil vêm de fora.

Embora Marcelo Freixo acredite que a Força Nacional seria preferível a usar as Forças Armadas, uma vez que seus integrantes são policiais, ele entende que o melhor caminho para aprimorar investigações é o de desmilitarizar a PM e fundi-la com a Polícia Civil.      

Sem novidades
No começo de 2017, o governo Michel Temer autorizou a atuação das Forças Armadas nos presídios para fazer inspeções rotineiras de materiais proibidos, como armas, celulares e drogas, e reforçar a segurança nas unidades.

No entanto, especialistas ouvidos pela ConJur avaliaram que a medida é inconstitucional, pois extrapola as funções dos militares, e não terá grande impacto na superação da crise carcerária pela qual o país passa.

*Texto alterado às 18h57 para acréscimo de informações.

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