Opinião

Novo criminalista deve ter formação mais sólida do que aquele formado na ditadura

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2 de agosto de 2017, 11h29

Ao se comparar a atual geração de advogados criminalistas hoje na faixa dos 60/70 anos com a geração que a sucedeu, é lícito supor que talvez nenhuma outra profissão no Brasil tenha sofrido mudanças tão radicais, no contexto de uma única transição geracional.

Com efeito, as características da sobredita geração mais experiente de criminalistas caracterizam subproduto das circunstâncias histórico-sociais nas quais ela se formou profissionalmente.

Por um lado, as causas criminais mais midiáticas e importantes para essa geração eram pertencentes à chamada criminalidade clássica, cujas principais peculiaridades são: (i) baixa complexidade; (ii) fácil compreensão por leigos em Direito; (iii) natureza em regra material ou de resultado (ou seja, produz resultado naturalístico); (iv) lesão a bem jurídico em regra conceitualmente preciso e pertencente à vítima individualizada. Exemplo paradigmático de crime desse cariz é o homicídio doloso, não sendo por acaso que o Tribunal do Júri foi um dos principais nichos de atuação profissional (e formação) da geração em apreço.

Por outro flanco, trata-se de geração que iniciou sua militância prático-profissional ainda sob o regime de exceção de 1964, o que explica sua outra grande vertente de atuação profissional (e formação): o julgamento de crimes políticos perante a Justiça Militar.

Os dois principais pontos de intersecção entre essas duas precitadas vertentes de atuação profissional são o órgão julgador e o procedimento. O primeiro é sempre de natureza heterogênea, ou seja, mescla um Juiz togado e juízes leigos. No Tribunal do Júri, como é cediço, a decisão sobre o mérito da causa criminal é 100% confiada a leigos em Direito (sete jurados), ao passo que na Auditoria Militar esse percentual é de 80% (quatro Oficiais das Forças Armadas).Já os respectivos procedimentos do Tribunal do Júri (artigo 477 do Estatuto Processual Penal) e da Auditoria Militar (artigo 433 do Código de Processo Penal Militar) são preponderantemente orais, principalmente na fase de apresentação das alegações finais das partes.

Consequência prática dessa confluência de fatores é o fato de a geração em testilha em regra não carecer de formação acadêmica sólida, ante a evidente ineficácia da estratégia de se dirigir teses jurídicas sofisticadas a julgadores leigos em Direito. Ao contrário, o enfoque dessa geração são qualidades profissionais tais como oratória, análise de questões de fato e argumentação baseada nas implicações históricas, políticas e sociológicas da causa criminal.

Por outro flanco, a geração seguinte iniciou sua formação prático-profissional a partir da década de 1990, quando as causas criminais mais midiáticas e importantes passaram a pertencer aos domínios da denominada criminalidade econômica[1], cujas principais características são: (i) alta complexidade; (ii) difícil, quiçá impossível, compreensão por leigos em Direito; (iii) natureza em regra formal ou de mera conduta (vale dizer, independente de resultado naturalístico); (iv) lesão a bem jurídico em regra conceitualmente impreciso e pertencente à coletividade. Exemplo paradigmático de crime desse jaez é a lavagem de dinheiro, não sendo fortuito que as Varas Federais Criminais especializadas sejam um dos principais segmentos de atuação profissional (e formação) da geração em tela.

Nessa vertente de atuação profissional,o órgão julgador e o procedimento possuem características substancialmente diversas do Tribunal do Júri e da Justiça Castrense. Com efeito, o órgão jurisdicional possui natureza homogênea, tratando-se de magistrado especialista no julgamento da criminalidade econômica (lavagem de dinheiro, crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, organização criminosa e delitos conexos). O procedimento, a seu turno, embora seja preponderantemente oral, na prática comporta apresentação das alegações finais das partes quase sempre de forma escrita (artigo 403, parágrafo 3º do Código de Processo Penal).

Nesse contexto histórico-social, avulta a importância de o advogado criminalista possuir sólida formação acadêmica, ante a patente eficácia da estratégia de se direcionar teses jurídicas sofisticadas a julgador altamente especializado em razão da matéria. Nessa toada, o cerne dessa geração são atributos profissionais tais como escrita, análise de questões de Direito e argumentação embasada nas implicações administrativas sancionadoras, econômicas e de integridade empresarial (compliance) da causa criminal.

Com efeito, a crescente complexidade e eficiência da persecução penal da criminalidade econômica (v.g. uso frequente de mecanismos de auxílio direto; emprego maciço de métodos ocultos de investigação etc.)[2] torna cada vez mais imprescindível que o advogado criminalista contemporâneo reúna conjunto de competências – inglês jurídico fluente; conhecimentos sobre o ilícito administrativo anteposto ao tipo penal e seu procedimento sancionador, legislação anticorrupção estrangeira (v.g. Foreign Corrupt Practices Act – FCPA -, UK Bribery Act etc.), mecanismos de cooperação jurídica internacional em matéria penal e processo penal comparado; capacidade de comunicação e trabalho em conjunto com colegas e consultores técnicos de outras especialidades no Brasil e no exterior etc. – para bem desempenhar o seu sagrado múnus profissional.

A toda evidência que este texto não pretende emitir juízo de valor comparativo, em termos qualitativos, sobre as duas gerações ora cotejadas. Ao contrário, nosso objetivo é tão somente demonstrar que talvez nenhuma outra profissão no Brasil tenha sofrido mudanças tão radicais, no contexto de uma única transição geracional, quanto a de advogado criminalista.

[1] Não é nosso objetivo aprofundar o estudo das diferenças entre criminalidade clássica e econômica, nem explicar as causas do surgimento da segunda. A esse respeito já existe farta bibliografia especializada, dentre a qual podem ser destacadas as seguintes referências: COSTA, José de Faria, ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre a concepção e o sentido do direito penal econômico, In: Direito penal económico e europeu: Textos doutrinários, Vol. I, pp. 347-364. Coimbra: Coimbra Editora, 1998; SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O crime de colarinho branco. Coimbra, Coimbra Editora, 2001. Entre nós, ver: LYRA, Roberto. Criminalidade econômico-financeira. Rio de Janeiro: Forense, 1978; PIMENTEL, Manoel Pedro. Direito penal econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.

[2] MALAN, Diogo. Processo penal aplicado à criminalidade econômico-financeira, In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 114, pp. 279-320, 2015.

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