Opinião

Lei 13.467/2017 se contradiz sobre autonomia da vontade coletiva

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1 de agosto de 2017, 9h14

Sabe-se que o Direito do Trabalho sempre foi conhecido pelo seu caráter protecionista em relação ao empregado. Tal perfil foi assim concebido por ter sido constatado, ao longo de fatos históricos, que a intervenção Estatal se fazia necessária para equilibrar a balança numa negociação entre desiguais.  Afinal de contas, como o trabalhador poderia fazer impor sua vontade numa negociação onde o fator “necessidade” pesava muito mais, sobretudo diante do poder econômico da outra parte (empregador).

O chamado “patamar mínimo civilizatório” necessário à sobrevivência digna do trabalhador precisava ser garantido pelo Estado. Ocorre que, com a evolução dos tempos, o crescente fenômeno da globalização introduziu novos desafios ao mercado, sobretudo no campo econômico.  A competitividade ficou cada vez mais acirrada implicando na crescente necessidade de redução de custos de produção.

E dentro da ideia de redução de custos, vieram os debates acerca da necessidade de revisão de alguns direitos trabalhistas, o qual estaria onerando as folhas de pagamento e funcionando como verdadeiro desestímulo ao empreendedorismo. Tal providência – no entender de alguns – fomentaria o mercado comercial e viabilizaria a retomada do crescimento econômico do país, gerando também novos postos de trabalho.

Defende-se a tese de que uma menor intervenção do Estado seria salutar, retirando-se da legislação a obrigatoriedade de alguns direitos que até então integravam obrigatoriamente as relações de trabalho. Frutos de todo esse movimento surge então a Lei 13.467/2017.

Diante de tal quadro, após grandes embates políticos e jurídicos, a Lei 13.467/2017 faz nascer a chamada “reforma trabalhista”, inserindo na ordem jurídica interna trabalhista a aplicação do princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.Passa a vigorar  a prevalência da validade do acordado sobre o legislado.

Entretanto, não significa dizer que fica liberada toda e qualquer negociação. 
As fraudes aos princípios norteadores do direito do trabalho continuarão a ser combatidas, mas caberá ao Poder Judiciário agora limitar sua análise ao exame da presença dos elementos essenciais do negócio jurídico, quais sejam: agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, forma prescrita ou não defesa em lei.

O texto da novel legislação traz também muitas questões passíveis de questionamentos, inclusive do ponto de vista constitucional, o que por certo irá inspirar, no mínimo, um exercício de hermenêutica que resguarde a primazia da constituição.

Focando aqui em um destes pontos, chama-nos atenção, constatar que o princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva, muito embora sirva como uma nova diretriz para os contratos de trabalho tenha sido ignorada pelo próprio legislador sem que haja qualquer justificação para tanto.

É o que se verifica, por exemplo, da análise do teor da nova redação dada pela lei 13.467/17 ao art. 58, § 2o da CLT, o qual versa sobre as horas in itinere. Diz o dispositivo: “o tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.

Note-se que o legislador importou a definição constante no texto contido no inciso I da  súmula 90 do Tribunal Superior do Trabalho[1], mas em afronta ao posicionamento deste, concluiu a redação em sentido oposto, ao dispor que “não será computado na jornada de trabalho”.

E além da aparente pirraça diante do entendimento firmado pelo tribunal, o legislador, contradiz a si mesmo na medida em que deixa de aplicar o princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva, impondo  sua vontade  sem  qualquer razão plausível para tanto. Afinal de contas o Estado pretende ou não evitar-se imiscuir nas relações de trabalho firmado entre as partes?  

Pior, sua intervenção neste caso, se dá em desfavor da parte vulnerável da relação contratual (pois se fosse o inverso ainda poderia se socorrer dos princípios protecionistas do direito do trabalho).

Não bastando, invadiu a esfera de competência resguardada ao empregador inerente ao exercício do poder diretivo, uma vez que o teor da lei impede que este defina onde começa ou termina o posto de trabalho ou mesmo opte por inserir no contrato de trabalho a jornada de trabalho computável nos termos da súmula 90. Ora, se o empregador decidir remunerar as horas despendidas em condução fornecida ao trabalhador para ir e voltar do trabalho, estaria então procedendo contra legem? 

Note-se que o legislador arvorou-se tanto em impor sua vontade que deixou de aprofundar uma necessária pesquisa na vasta legislação que rege as relações de trabalho. Sim, pois a sua pretensão de vedar o direito ao pagamento das horas in itinire, com a nova redação dada ao artigo 58 § 2o da CLT,  restará inócuo, na medida em que poderá ser afastada pela simples aplicação analógica do disposto no artigo 294 da própria CLT [2] (que versa sobre o tempo de deslocamento em atividades de mineração) e também a lei 8213/91, que dispõe sobre acidente de trabalho, em especial naquele ocorrido no percurso casa/trabalho.[3] Isto para se falar o mínimo, visto que um estudo mais aprofundado, sobretudo valendo-se das normas constitucionais, facilmente subsidiará entendimento diverso daquele imposto pelo legislador. 

Portanto a nova redação do artigo 58, § 2o da CLT parece confessar um intuito do legislador que foge à pura e simples aplicação do princípio da intervenção mínima por parte do Estado na autonomia da vontade coletiva, fato que gera preocupação tendo em vista as tantas críticas à reforma trabalhista e sua legalidade.

Certamente, a Lei 13.467/17 traz muitos pontos passíveis de críticas, sobretudo sob o prisma da constitucionalidade[4] e muitas serão as ações questionando a legitimidade da reforma trabalhista. Sua sanção denota o ganho de uma batalha, mas a guerra — por assim dizer — parece estar ainda longe de terminar. Provavelmente caberá ao Supremo Tribunal Federal definir o lado vitorioso, se é que na prática, existirá tal lado.

Por enquanto, resta constatar que o legislador deixou vestígios de seu intuito de introduzir a intervenção mínima do Estado na autonomia da vontade coletiva foi condicionado a um filtro prévio de caráter duvidoso, já que — como no exemplo aqui tratado — sem razão plausível o legislador impôs regra que, na pior das hipóteses (sob o ponto de vista do caráter protecionista do direito do trabalho)  deveria ter ficado a critério das partes.

O mérito acerca da reforma trabalhista ser ou não positivo para a economia é algo que depende do ponto de vista de quem faz a análise e envolve questões que vão muito além da visão jurídica. Mas a contradição do legislador é preocupante na medida em que faz refletir sobre as reais razões que inspiraram a novel roupagem na legislação trabalhista, pois, conforme já disse o escritor Gore Vidal “as contradições nos definem e ao mesmo tempo nos desmantelam.”


[1] – O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho.
[2] Art. 294 – O tempo despendido pelo empregado da boca da mina ao local do trabalho e vice-versa será computado para o efeito de pagamento do salário.
[3] Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei (…) d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado
[4] Conforme salientado pelo Professor Homero Batista, à  afronta: art. 7º, XIII, da CF 88, tendo sido destacado que: 1. O conceito de tempo à disposição do empregador independe da opinião do legislador e decorre de simples observação dos fatos, das máximas da experiência e da razoabilidade do homem médio. A jornada é composta pelo trabalho e, também, pelo não-trabalho colocado à disposição do empregador. 2. A efetiva ocupação do posto depende da designação feita pelo empregador, a quem compete o poder diretivo. Pode ser na portaria da fábrica ou em máquina localizada a 20, 30 ou 40min do acesso principal. O que não se pode é pretender descontar da jornada o tempo de deslocamento dentro da empresa ou nos arredores. 3. Posto de trabalho é conceito vaporoso, sem conteúdo doutrinário e que vai infernizar o processo do trabalho de agora em diante. Pense um minuto. Quanta coisa o motorista de ônibus já fez antes de dar partida no veículo? (…) Agora transponha esse pensamento para a metalurgia, a petroquímica, a aeronáutica, o telemarketing e a zona rural. Claramente o artigo é uma pirraça ao TST. Uma cilada.4. O conceito de duração do trabalho normal (art. 7º, XIII, CF 88) não está adstrito à energia empreendida no processo produtivo, mas todas as atividades inerentes, no aguardo ou na execução das ordens – ainda que a matéria prima tenha faltado, os clientes estejam ausentes da loja ou o percurso seja extenso.(…) 8. Achando-se dentro dos domínios da empresa ou nos arredores, em local desprovido de transporte coletivo, o trabalhador tem direito de computar o início da sua jornada, conforme art. 7º, XIII, da CF 88. O art. 58, § 2º, não se sobrepõe. , (Homero Batista Mateus da Silva – Comentários à Reforma Trabalhista. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2017).

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