Embargos Culturais

Francisco Campos expõe as contradições do pensamento autoritário brasileiro

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

30 de abril de 2017, 8h00

Spacca
O mineiro Francisco Luís da Silva Campos (1891-1968) foi importante jurista e político brasileiro que sintetiza as contradições e perplexidades dos bacharéis que servem à classe política brasileira. Educador, constitucionalista, homem de governo, Francisco Campos disponibilizou sua imensa cultura e prestígio em dois momentos centrais da tradição autoritária brasileira: 1937 e 1964. O momento exige que estudemos seus textos, de atualidade quase que permanente.

Francisco Campos foi Secretário do Interior de Minas Gerais, de 1926 a 1930, quando se interessou intensamente por questões de educação. Foi um dos mais destacados líderes revolucionários de 1930. Foi Ministro da Educação e da Saúde Pública, de 1930 a 1932. Articulou em Minas Gerais a reacionária Legião de Outubro, a partir de 1931. Foi Consultor-Geral da República, de 1933 a 1937. Foi o mentor do texto constitucional de 1937. Foi Ministro da Justiça nos anos difíceis de 1937 a 1941. Foi muita coisa. Ocupou muitos cargos.

São inegáveis seus méritos como construtor de fórmulas inteligentes para tipificação jurídica de fatos da política. E são também inegáveis suas qualidades de artesão intelectual de arranjos institucionais que concebia como deferência a pressões de aliados. Interessante sua relação com as personalidades da época, tão diferentes quanto a visões de mundo, a exemplo de Sobral Pinto e de Gustavo Capanema. Quanto a esse último, disputas pedagógicas mimetizavam a liça pelo espaço político.

Francisco Campos foi também o mentor do Código de Processo Civil de 1939, bem como foi o autor de inúmeros textos e pronunciamentos que fomentaram ideologicamente um Estado autoritário, ao qual serviu. Foi uma personalidade integrada em seu tempo, para o bem e para o mal; isto é, se observamos o que se passava na Alemanha, na Itália, na Espanha. Francisco Campos foi o ideólogo do regime totalitarista. Conhecia Direito Constitucional, dominava línguas estrangeiras; tudo justificando o epíteto de Chico Ciência, que o acompanhava. Era um gênio. Tem que ser estudado.

Fragmentos significativos do pensamento de Francisco Campos encontram-se reproduzidos em coletânea publicada pelo Senado Federal. No referido livro há excertos relativos a miríade de assuntos, que transitam em rubricas quais A Política e o Nosso Tempo, Diretrizes do Estado Nacional, Problemas do Brasil e Soluções do Regime, Síntese da Reorganização Nacional, A Consolidação Jurídica do Regime, Exposição de Motivos do Projeto de Código de Processo Civil, entre tantos outros, que incluem patrióticas Orações à Bandeira.

É desse interessante livro que colho enigmática passagem, referente à responsabilidade do chefe de Estado: “é desnecessário insistir que o Estado brasileiro, sendo democrático, é também autoritário, cabendo ao Presidente da República a autoridade suprema, exercida em nome do povo e no interesse de seu bem-estar, da sua honra, da sua independência e da sua prosperidade”[1]. Para o constitucionalista de Dores do Indaiá o Estado brasileiro, desnecessário dizer, era ao mesmo tempo democrático e autoritário. Como assim? A democracia brasileira, insistia Campos, adotava a técnica do Estado totalitário, circunstância que o jurista mineiro reconhecia como contraditória[2]; o que, dada a tábua de valores constitucionais desse jurista, era também incongruente….

Mais. Campos pressupôs que o sistema constitucional era dotado de dogma novo que implicava que “(…) acima da Constituição escrita [havia] uma Constituição não escrita, na qual se contém a regra fundamental de que os direitos de liberdade são concedidos sob a reserva de não se envolverem no seu exercício os dogmas básicos ou as decisões constitucionais relativas à substância do regime”[3]. Relativista, Campos elogiava a Constituição de 1937, nominando-a de “(…) profundamente democrática”, e acrescentando que “(…) a expressão democrática, como todas as expressões que traduzem uma atitude geral diante da vida, não tem um conteúdo definido, ou não conota valores eternos”[4]. Define democracia quem pode, era a expressão que intuo desse jurista mineiro.

Ideólogo do totalitarismo tabajara Francisco Campos acreditava que “para as decisões políticas uma sala de parlamento tem (…) a mesma importância que uma sala de museu”[5]. Defensor da transferência dos poderes, em momento de crise, para um César temporário, Campos protagonizou a política dos grades acontecimentos e das grandes decisões. Era um estadista para as grandes questões.

Mas também se preocupava com miudezas. Tenho comigo cópia de um bilhete de Campos para Capanema, no qual o jurisconsulto pedia ao educador o mais vivo empenho para a “nomeação para qualquer cargo, do estudante (…), rapaz inteligente e francamente aproveitável, que se encontra atualmente em dificuldades.” Certo que o amigo faria tudo o possível para a satisfação do pedido, Campos antecipava os agradecimentos[6]

 


[1] Francisco Campos, O Estado Nacional, Brasília: Edições do Senado, 2001, p. 81.

[2] Francisco Campos, O Estado Nacional, cit., p. 29.

[3] Francisco Campos, O Estado Nacional, cit., p. 28.

[4] Francisco Campos, O Estado Nacional, cit., p. 56.

[5] Francisco Campos, O Estado Nacional, cit., p. 34.

[6] Xerocópia de bilhete de Francisco Campos a Gustavo Capanema, com timbre do Ministério da Educação e Saúde Pública, subscrito no Rio de Janeiro, datado de 27 de dezembro de 1930, Arquivo CPDOC. 

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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