Opinião

Projeto sobre abuso de autoridade é vingança contra investigações

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25 de abril de 2017, 6h22

Convivemos por mais de 500 anos com a impunidade de políticos e empresários corruptos, e a legislação sobre abuso de autoridade em vigor há mais de 50 anos não identificou qualquer vicissitude na sua teleologia capaz de levar à sua reforma nestes tempos de tempestade perfeita, na qual o envolvimento de personalidades antigas se mescla com o setor empresarial.

Qual seria, então, a razão fundamental de se alterar nesse momento imperfeito, impróprio e inadequado, a legislação de número 4.898/65? A única explicação e justificativa à qual se chega conclui no sentido de fogo de encontro com as autoridades que investigam e querem a responsabilização dos culpados.

O Brasil, em razão da desabrida corrupção e desavergonhada conduta da classe política, em má companhia de grandes empresas, sorveu R$ 1 trilhão da economia mediante escambos e trocas de favores e internações de recursos financeiros no exterior. O Projeto de Lei do Senado de número 280/2016 contempla três aspectos negativos fundamentais: o primeiro é que ele consagra direitos num verdadeiro estatuto do preso; em segundo lugar, proclama a intimidação da autoridade que investiga e é responsável pela persecução criminal; outro ponto também relevante é criar um clima de desassossego no qual, por meio de ação privada, cuja legitimidade se transmite aos herdeiros, tente-se ajuizar demanda ao pretexto de violação do código de conduta numa interpretação legal em conformidade com a jurisprudência.

De começo um projeto de Renan Calheiros, passando pelas mãos de Romero Jucá e finalmente aquelas de Roberto Requião, são três erres de erros sucessivos cometidos, ao incrível e inegável caminho da contramão da história e do cometimento do maior abuso, que seria prestigiar a impunidade e fazer lacerar a sociedade, fruto da corrupção sem fronteiras.

Ao termos dos 45 artigos que mapeiam o projeto do Senado, é plausível apontarmos inconsistências, erros crassos e teratologias em nome do justiceiro momento de se brecar a investigação e colocar a espada de Dâmocles sobre a cabeça daqueles que trabalham diuturnamente por sonharem e ambicionarem um Brasil mais justo e menos delinquente nas suas autoridades constituídas.

Os artigos 3, 4, 11, 12, 15, 22, 27, 28, 30 e 34, dentre tantos, perfilham um pensamento estagnado, de uma contrarresposta para a punição dos que se mostraram intrépidos ao longo da enorme responsabilidade de se procurar o dinheiro desviado da sociedade civil e que representa um desserviço encalacrado do gestor público. Não há duvida alguma que exemplos recentes cravaram a seletividade do projeto para banir a espetacularização e criar uma falsa imagem de melhoria da legislação, o que não se coaduna com seu espírito prático.

A barbárie legal encerrada no Projeto 280/16 representa o mais cruel e vingativo modelo de se insurgir contra as autoridades judicantes, desincentivar a polícia, menoscabar o Ministério Público e desestabilizar a Justiça, quando o destinatário da informação é a soberania popular. Qual o problema de se apresentar um preso filmado para que a sociedade saiba o que se passa? Quais as implicações da custódia cautelar ou preventiva, se faz da destruição da prova o aniquilamento da estrutura voltada para a responsabilização penal?

Precisamos escancarar as portas e dizer aos nossos políticos — senadores, deputados, governadores, prefeitos — que o modelo está falido e a perplexidade da sociedade é tamanha que temos, mesmo com o voto obrigatório, milhões de votos em branco, nulos e abstenções nas eleições. Esse projeto, sim, representa o maior abuso que uma autoridade legislativa já cometeu em termos de regular uso das prerrogativas sem o espírito desviante ou reserva mental.

Eis que no artigo terceiro se permite que a ação passe da indigitada vítima aos colaterais, ascendente e descendente, além do irmão, nada mais surreal. Além da própria ação privada, o artigo quarto catapulta a profissão, ainda que se cogite reincidência, para defenestrar o servidor da carreira, como se a autoridade fosse aquela sentenciante. Já o artigo 11 crava a exposição da pessoa como forma de constrangimento, quando o real constrangimento é da nação pela corrupção, não a do preso. No artigo 12, as informações divulgadas a respeito passam a ter natureza criminal, o que é um absurdo, eis que o escopo é de esclarecer a sociedade e tornar a investigação peculiar à verdade real.

No artigo 22, a interceptação e também a quebra de sigilo passam a ter viés de indignidade, podendo atingir a figura do responsável, e vejam que a própria Receita Federal tem esse poder sem autorização judicial. Os artigos 27, 28 e 30 do famigerado projeto inserem expressão vaga de manifestação artística, mesmo em tom de deboche; o diálogo do investigado com alguém que ocupa cargo não será mais permitido, como se a imunidade cobrisse o crime; a justa causa, que é mera questão de percepção jurídica, passa a revolver as coisas, subverter a ordem e inverter posições.

Eis que o julgador passa a ser réu, e o réu receberá, além de uma condenação, a indenização que melhor lhe aprouver. Os artigos 34 e 39 contemplam, igualmente, desajustes estruturais radicais.

É nesse clima de radicalização de vendetta e de um tempo de caça às bruxas que nosso Senado Federal se propõe a votar nesta semana o projeto, que antes de mais nada, é calamitoso e prenhe de vícios formais e conceituais.

Acaso seja aprovado, o que ninguém de média consciência espera, o caminho será o Supremo Tribunal Federal, o imediato fim do foro privilegiado e uma ação coletiva para que todos os que forem atingidos se recusem a aplicar essa norma inconstitucional, ilegal, imoral, aética e, sobretudo, semeada no mais profundo pântano lodoso de uma corrupção que se alastra e consome a dignidade humana, expondo milhões ao desemprego, à fome e ao estado de miserabilidade, gerado e recriado por nossos governantes incapazes, incompetentes e, sobretudo, amantes das usinas de propinas.

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