Inconstitucionalidade da atual guarda compartilhada (parte 1)
24 de abril de 2017, 8h01
Esse problema parece acontecer com o conceito de guarda. Diretamente relacionado ao poder dos genitores sobre os filhos, tal instituto jurídico sofreu importantes modificações com o passar do tempo, sem que se alterasse a sua estrutura ou, no caso, a sua terminologia.
O Código Civil de 2002, em sua redação original, estabelecia, no artigo 1.583, que, em caso de separação judicial por mútuo consentimento ou divórcio consensual, a decisão de atribuição da guarda dos filhos seria definida pelos pais. Em caso de dissenso entre eles, no artigo 1.584, caput e parágrafo único, ordenava-se que a guarda fosse atribuída ao genitor que tivesse melhores condições de exercê-la, ou, excepcionalmente, uma terceira pessoa, levando-se em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade, observada a legislação específica.
Por meio da Lei 11.698/2008, inseriu-se no direito brasileiro o instituto da guarda compartilhada, definida na parte final do novo artigo 1.583, § 1º, do Código Civil de 2002 como “responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns” e que apresenta essa hipótese como recomendação aos genitores no artigo 1.584, § 2º, ao usar a expressão “sempre que possível”.
Posteriormente, pela Lei 13.058/2004, inseriu-se o parágrafo segundo ao artigo 1.583, estabelecendo que “o tempo de convívio deve ser dividido de forma equilibrada com o pai e com a mãe, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos”. Assim, impôs-se a aplicação compulsória do regime de guarda compartilhada, modificando-se a redação do artigo 1.584, § 2º, ao defini-la como regra, sendo unilateral somente se um dos genitores declarar expressamente que não deseja a guarda do menor.
O legislador estabeleceu a obrigatoriedade do convívio entre ambos os genitores, porque a psicologia sustenta a importância das figuras paterna e materna para a formação da personalidade, além de permitir, por meio desse convívio, que a criança ou o adolescente tenha melhores e mais frequentes experiências de vida de forma saudável e feliz, assegurando-se o seu livre desenvolvimento enquanto pessoa.
Mesmo com o esforço da doutrina para o esclarecimento da guarda compartilhada em manuais e artigos, além dos diversos enunciados das Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, com os quais se ofereceram sugestões interpretativas sobre esse tema,[1] existem outras situações que merecem ser analisadas para que se corrijam distorções no relacionamento cotidiano entre pais e filhos que não vivem sob o mesmo teto. Essa é a proposta deste texto: apontar as inconveniências decorrentes da interpretação sobre guarda compartilhada na prática e demonstrar inclusive a inconstitucionalidade das regras atuais.
A definição do conceito de guarda exige a análise prévia do conceito do poder dos genitores sobre seus filhos. Desde o direito romano até não muito tempo atrás, esse poder cabia ao homem e denominava-se pátrio poder. Inicialmente absoluto, foi sendo atenuado para combater os abusos praticados contra os filhos. Na redação original do artigo 380 do Código Civil de 1916, atribuía-se o exercício do “pátrio poder” ao marido e, na sua falta ou impedimento, à mulher.
No século XX, o princípio do melhor interesse da criança, ainda que não estivesse explicitamente declarado na legislação, proporcionou a primeira mudança paradigmática nessa matéria, pela ideia de que os pais não tinham um poder, mas um dever para com os filhos, cujo cumprimento era fiscalizado pelo Estado, o que tornava até mesmo mais adequado o uso do termo “pátrio dever”[2] em vez de “pátrio poder”.
Esses deveres estavam elencados no artigo 384 do Código Civil de 1916 e mantiveram-se com a mesma redação até 2014 no artigo 1.634 do Código Civil de 2002. Dois merecem atenção. O primeiro continua na nova redação do artigo 1.634 e consiste em “dirigir-lhes a criação e a educação”. O segundo consistia em “tê-los sob sua guarda e companhia” e, na nova redação de 2014, consiste em “exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do artigo 1.584”.
A guarda, numa primeira acepção, é o dever dos genitores de conferir proteção de fato da pessoa dos filhos em termos de vigilância e cuidado. Esse entendimento também está presente na definição de guarda no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/1990) no tocante à família substituta. No artigo 33, caput, estatui-se que “[a] guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”. Trata-se, pois, da situação em que o não detentor de poder familiar o exercerá como se fosse genitor. O termo “guarda”, nesse contexto, está em consonância com o texto do Código Civil, porque neste se usa “guarda” com o significado de proteção e cuidado de fato, como nos casos de guarda da coisa no comodato, depósito, penhor, herança, bem como de livros e escriturações contábeis.
Tanto o artigo 384, VI, do Código Civil de 1916 quanto o artigo 1.634, VI, do Código Civil de 2002 — renumerado em 2014 como artigo 1.634, VIII — estabelecem que guarda é também o direito de os pais terem os filhos em sua companhia, ao atribuir o poder de “reclamá-los de quem ilegalmente os detenha”. Inclusive a violação desse direito é o crime de subtração de incapazes, tipificado no artigo 248 do Código Penal.
Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente consagra a convivência familiar como um dos direitos fundamentais destes. A partir daquela data, a criança e o adolescente passaram a ter direito de conviver com os seus genitores, tal como disposto no Capítulo III do Título I desta Lei, especialmente nos arts. 19 e 23, complementando o que já havia no Código Penal desde 1940 em termos de subtração de incapazes. Por essa razão, a atribuição da guarda, nos termos do artigo 33. § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, visa à regularização dessa situação de fato, para que o guardião não genitor não seja incurso nesse tipo penal.
Dessa forma, o conceito de guarda desdobra-se em dois: enquanto proteção da pessoa dos filhos e enquanto convivência familiar com eles.
Até não muito tempo atrás, o legislador, motivado por questões morais e religiosas, punia o cônjuge responsável pelo desfazimento da família, privando-o da guarda, entendida como convívio com os filhos, por causa do preconceito existente de que o genitor considerado culpado era inapto ao exercício dos poderes decorrentes da condição de pai ou de mãe, além de sua presença ser considerada perniciosa, devido à sua imoralidade legalmente presumida. Nos termos da redação original do artigo 326 e seus parágrafos do Código Civil de 1916, a guarda era atribuída ao genitor inocente e, na hipótese de culpa dos dois genitores, filhos de ambos os sexos permaneciam com a mãe, mas o menino, a partir dos seis anos de idade, passava à guarda do pai. Admitiam-se disposições em contrário em casos de desquite amigável ou no melhor interesse da criança e assegurava-se ao genitor sem guarda o direito de visitas aos filhos, conforme disposto no artigo 327 do Código Civil de 1916.
O Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) alterou o artigo 380, para definir que o pátrio poder era dos pais, exercido pelo marido com a colaboração da mulher. Modificou parcialmente a regra do artigo 326 do Código Civil de 1916, para que, em caso de culpa de ambos os cônjuges pelo fim do casamento, o melhor interesse da criança fosse mais bem atendido com a permanência dela com a mãe, salvo se, desse fato, resultasse prejuízo moral a elas.
A partir do Código Civil de 2002, houve a adequação dos direitos e deveres entre cônjuges na lei ordinária por força da Constituição Federal, estabelecendo-se a igualdade entre eles, abolindo-se do texto as antigas regras de deveres do marido e deveres da mulher. Isso resultou em mais uma importante modificação paradigmática em matéria de guarda dos filhos, para que o poder exercido em face dos filhos não fosse mais exercido pelo pai, ainda que com a colaboração da mãe, mas que ambos o exercessem em igualdade de condições, denominando-se, agora, poder familiar. Defende-se o uso dos termos “autoridade parental” e “responsabilidade parental”[3] ou até mesmo “função familiar”, uma vez que função é o exercício de poderes exercidos no interesse de quem sofre seus efeitos, e não no interesse de quem os exerce. As funções de genitores são indelegáveis e cessam somente com a maioridade civil.
Com a igualdade entre os cônjuges e a adoção do conceito de poder familiar, em substituição ao de pátrio poder, a guarda dos filhos tornou-se necessariamente compartilhada entre os genitores, ainda que, na redação original do Código Civil de 2002, inexistisse o termo “compartilhada” em qualquer de seus artigos. É, evidentemente, unilateral, quando um dos genitores não puder nem desejar exercê-lo, como nos casos de força maior, ou de suspensão ou perda do poder familiar.
Pelo fato de guarda também significar direito à convivência familiar em decorrência do direito de os pais terem os filhos em sua companhia, e estes terem a convivência com seus pais, a criança e o adolescente necessitam de um local onde exercerão tal direito. Esse local é o domicílio, onde residirão com ânimo definitivo, e, no caso, o domicílio dos filhos é o dos pais, nos termos do artigo 76, parágrafo único, do Código Civil de 2002.
Na próxima semana, tratarei dos problemas relativos à aplicação do regime da guarda compartilhada e apontarei a inconstitucionalidade das regras atuais.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
[1] Desde a I Jornada de Direito Civil há enunciados sobre guarda compartilhada. Especialmente, na VI Jornada de Direito Civil, realizada em setembro de 2015, em Brasília, aprovaram-se cinco enunciados sobre o tema (Enunciados 601 a 606), o que evidencia a enorme dificuldade na sua aplicação prática da maneira correta.
[2] Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 1952. p. 227
[3] Maria Berenice Dias. Manual de Direito das Famílias. 10ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 461
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