Opinião

Incentivo a distratos de imóveis afeta coletividade de consumidores

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23 de abril de 2017, 10h36

A aquisição de um imóvel não é objetivo dos mais fáceis. É ínfima a parcela da população que consegue adquirir a chamada casa própria mediante o pagamento da totalidade do preço à vista. A imensa maioria depende de financiamento do preço, que vai sendo pago aos poucos com recursos próprios do adquirente durante a fase de obra e, a partir de seu término, com recursos bancários, no Sistema Financeiro da Habitação.

Ocorre que o prolongamento da crise econômica tem colocado em xeque a equação jurídico-financeira dos empreendimentos imobiliários desenvolvidos à luz da Lei 4.591/64 e de seu sistema de financiamento, especialmente em virtude do grande número de desistência das aquisições pelos compradores, as resilições unilaterais vulgarmente denominadas no mercado por distratos.

Os distratos representam o meio atual pelo qual os consumidores, inadimplentes ou não, recorrem, em massa, ao Poder Judiciário com a finalidade de encerrar abruptamente as obrigações contratuais celebradas com a incorporadora, relativizando, de uma maneira preocupante, o vínculo contratual. Mais do que isso: o desfazimento em massa de compromissos de compra e venda de um mesmo empreendimento coloca em risco a possibilidade de ele se realizar, em detrimento daqueles consumidores que, de fato, querem a conclusão da obra com a entrega de suas respectivas unidades. 

Diante deste cenário, o setor imobiliário e o governo federal passaram a debater uma proposta normativa que confira maior clareza e previsibilidade aos compradores e às incorporadoras, sobre quando e quanto deverá ser restituído ao comprador desistente.

A intenção principal é conferir segurança jurídica às partes – especialmente à principal delas, que é o consumidor adimplente, o qual se encontra na expectativa de entrega da sua moradia –, garantido a manutenção do fluxo financeiro contido no patrimônio de afetação, o acesso ao financiamento à construção e a saúde financeira do empreendimento.

No entanto, mesmo nesse ambiente de debates a respeito do conteúdo do texto normativo, foram lançadas inúmeras críticas e ressalvas bastante maniqueístas, estabelecendo premissas equivocadas, que merecem ser melhor apreciadas e debatidas pela sociedade.

A maior parte dos empreendimentos está subordinada ao chamado patrimônio de afetação, que se constitui em um regime especial de direitos e obrigações que compõem dado empreendimento, formando uma proteção patrimonial, cujo objetivo precípuo é garantir o fluxo financeiro necessário à conclusão das obras e a entrega das unidades prontas e acabadas aos consumidores. Esse fluxo é alimentado, principalmente, pelos recursos oriundos da alienação das unidades e de financiamento bancário.

No entanto, a judicialização massiva dos distratos, com pedido de desfazimento do compromisso de compra e venda da unidade e restituição imediata da quase totalidade dos montantes até então pagos, tem colocado em sério risco essa blindagem patrimonial. Isso porque, na imensa maioria das vezes, o desfazimento do contrato se opera antes de a obra ter sido concluída, momento em que os valores pagos até então pelo desistente ainda estão vinculados ao patrimônio de afetação, com o intuito de garantir a conclusão das obras.

A interrupção dos pagamentos das parcelas e a retirada abrupta dos valores pagos, mormente quando diversos os compradores desistentes, impactam consideravelmente no desenvolvimento da obra[1] e colocam em risco a entrega das unidades do consumidor que se manteve no empreendimento e espera o recebimento de sua unidade[2], podendo-se mesmo salientar serem ilegais as determinações de devolução de parcelas antes de concluída a edificação, ex vi do disposto no art. 31-D, inciso III, da Lei 4.591/64.

O desfazimento precipitado das vendas pode impactar também a obtenção de financiamento bancário, já que é usual que as instituições financeiras somente liberem recursos para a construção após a constatação de um número mínimo de vendas, que sejam efetivamente mantidas no empreendimento. Assim, os distratos beneficiam o consumidor desistente e ameaçam severamente o consumidor responsável.

Outro fator importante a se considerar é que não é possível tratar a coletividade de consumidores como se fossem um grupo homogêneo de pessoas. As críticas atuais se fundamentam no argumento de que todos os consumidores contemplam o mesmo grau de vulnerabilidade e hipossuficiência. Contudo, diante da diversidade econômica e social do país, parece bastante razoável que se faça uma mínima distinção entre a coletividade de consumidores. 

Nessa linha, o texto normativo atualmente em debate prevê distinções entre consumidores mais vulneráveis e aqueles que detêm maior acesso a informações e maior poder econômico.

Outro ponto a ser levado em conta é que nem todo comprador adquire o imóvel para nele residir. Muitas pessoas adquiriram imóveis residenciais ou comerciais, no período de aquecimento do mercado, como investimento, esperando vendê-lo com ganhos após a conclusão das obras.

Como a valorização que se esperava não ocorreu (em comparação com outros ativos financeiros), esse grupo de consumidores-investidores simplesmente desiste da compra, equiparando-se ao adquirente da casa própria que eventualmente não tenha condição de saldar seu débito. Contudo, da forma como estão sendo julgados, atualmente, os pedidos de distratos, tais consumidores-investidores se equiparam aos demais, mais uma vez em evidente prejuízo do adquirente da “casa própria” que quer se manter no empreendimento.

Alguns ainda chegam a defender que a promessa de venda e compra não seria contrato irrevogável e irretratável. Ora, tais atributos foram estabelecidos na lei justamente em benefício do adquirente, para que ele não ficasse refém de maus empreendedores. A irrevogabilidade foi atribuída aos referidos contratos pelo Decreto-Lei 58/1937 e pela Lei 649/1949, em prol do consumidor.

Na mesma linha e diante do aprimoramento da jurisprudência da época, o Código Civil de 2002, no artigo 1.417, passou a garantir ao promitente comprador o direito real à aquisição do imóvel. Além disso, o artigo 1.418 do diploma civilista assegura a outorga da escritura definitiva de compra e venda, em favor do promitente comprador, desde que o contrato seja irrevogável e irretratável. Diante disso, a pergunta que se faz é: a banalização do vínculo contratual, diante do desfazimento em massa dos compromissos de compra e venda, coloca em risco as regras contidas nos artigos acima? Outra pergunta: se o contrato não é irrevogável, não poderia também o alienante promover a resilição unilateral?

É de extrema relevância resgatar que o projeto do Código de Defesa do Consumidor previa a possibilidade de resilição do contrato pelo consumidor inadimplente, conforme a redação do §1º, do artigo 53, vetado pelo legislador, cuja a redação dizia o seguinte: “na hipótese prevista neste artigo, o devedor inadimplente terá direito a compensação ou à restituição das parcelas quitadas à data da resolução contratual, monetariamente atualizada, descontado a vantagem econômica auferida com a fruição”.

O veto presidencial foi acolhido pelo Congresso, que, em justificativa, deixou evidente a preocupação com os prejuízos advindos da resilição contratual, nos seguintes termos: “Torna-se necessário dar disciplina mais adequada à resolução dos contratos de compra e venda, por inadimplência do comprador. A venda de bens mediante pagamento em prestações acarreta diversos custos para o vendedor, que não foram contemplados na formulação do dispositivo. A restituição das prestações, monetariamente corrigidas, sem levar em conta esses aspectos, implica tratamento iníquo, de consequências imprevisíveis e danosas para os diversos setores da economia”.

Também não é correto, para dizer o mínimo, salientar que a questão dos distratos busca proteger o consumidor do superendividamento. É notório que em anos recentes foi política governamental o incentivo ao consumo que, com o advento da recessão, aliada à pouca educação financeira, resultou no fenômeno do superendividamento.

O fator mais crítico de tal fenômeno é indubitavelmente a questão dos juros, que no Brasil atinge patamares inaceitáveis e dificulta consideravelmente a quitação da dívida.  Entretanto, na compra de imóveis não há incidência de juros até a entrega das obras, período em que ocorrem praticamente todos os distratos.

Na verdade, a grande inadimplência decorrente de dívida dos consumidores está no cartão de crédito (com juros de 14% ao mês), cheque especial (13% ao mês), crédito pessoal (6% ao mês) e veículos (3% ao mês).

Embora não haja incidência de juros nas aquisições de unidades “na planta”, os distratos chegam a mais de 30% das vendas nos empreendimentos, incentivados até mesmo por propagandas – ilícitas, é bom que se diga – em todas as mídias.

Diante das reflexões e dados acima, é necessário reequilibrar as relações de consumo, reduzir os riscos cada vez maiores de empreender e privilegiar consumidores que pretendem se manter no empreendimento, recebendo ao final sua unidade residencial.

A jurisprudência tem papel essencial nessa questão. O incentivo à quebra do vínculo contratual, ainda que com a boa intenção de proteção de um único consumidor específico, afeta sensivelmente toda a coletividade de consumidores, todo o ciclo de produção, a disponibilidade de crédito e o valor final dos imóveis. E o completo desprestígio das obrigações assumidas e do contrato não contribuem para o desenvolvimento saudável de uma sociedade, que pretende progredir e cumprir suas funções essenciais, dentre elas a de tornar realidade o direito de moradia. 

* Texto atualizado às 14h15 do dia 24/4/2017.

 


[1] Sobre o assunto vale destacar trechos do julgamento da Apelação 1021012-59.2014.8.26.0100, da 3ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, em que o tribunal reconheceu que a retenção de valores “com fundamento no ressarcimento de despesas administrativas, uma vez que a rescisão do contrato causa a redução do fluxo de caixa, bem como a necessidade de devolução das parcelas pagas, o que onera todo o empreendimento, justificando a retenção (…)”.

[2] Tratando do tema com muita propriedade, Melhim Chalub ensina que o contrato de aquisição de unidade tem dentre suas peculiaridades “o caráter coletivo do contrato, que vincula os adquirentes por um liame típico da affectio societatis, significando que a realização da função do contrato (i) depende da atuação coordenada e uníssona de todos eles e (ii) prioriza o interesse da comunidade, quando em confronto com os interesses individuais dos contratantes” (In Revista de Direito Imobiliário, vol. 75/2013, p. 167, jul.dez/2013).

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    é advogado especializado em Direito Imobiliário, formado pela Faculdade de Direito da USP. Integra o Conselho Jurídico do Secovi-SP (sindicato do setor de imóveis) e é coordenador-geral e professor do curso de especialização em Direito Imobiliário Empresarial do Secovi-SP. Também leciona no MBA da Escola Politécnica da USP, é diretor no Instituto Brasileiro de Direito da Construção e membro do Conselho Jurídico do Sinduscon-SP.

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    é advogada do escritório Bicalho e Mollica Advogados, formada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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