Ônus da prova

Suprema Corte dos EUA anula lei que nega presunção de inocência

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22 de abril de 2017, 14h34

Em todos os estados americanos, um réu condenado em primeira instância tem de pagar custas, taxas e restituições (às vezes às vítimas). Mas recebem seu dinheiro de volta, se forem absolvidos em segunda instância — menos no Colorado. Neste estado, o réu absolvido por tribunal de recurso, tem de provar na Justiça sua “inocência real em relação ao crime pelo qual foi condenado”, ao requerer o reembolso. É a “Lei das Pessoas Inocentadas” — uma lei que deixou de valer na quarta-feira (19/4), por decisão da Suprema Corte dos EUA.

A comunidade jurídica do país celebrou a decisão. Mas, os profissionais de Direito e muito mais os jornalistas (que são obrigados a ler decisões judiciais) celebraram ainda mais a redação do voto vencedor (por 7 a 1), de autoria da ministra Ruth Ginsburg. Ela usou uma técnica de estruturação de texto jornalístico, chamada de pirâmide mista: o primeiro parágrafo traz as informações mais importantes do texto; a partir do segundo, a história se desenvolve em ordem cronológica.

A técnica agradou a todos porque, normalmente, é preciso ler muitas páginas de um voto, sempre muito longo, para se entender o que a corte está examinando e a que conclusão chegou. No voto da ministra Ruth Ginsburg, o leitor pode inferir uma boa ideia sobre a questão perante à corte, o caso, a lei relevante e a decisão ao ler apenas o primeiro parágrafo (em jornalismo, o “lead”).

Assim, a melhor maneira de contar essa história da lei do Colorado que inverte o ônus da prova e nega a presunção de inocência é seguir (mesmo que resumidamente) o voto, como foi escrito. Toda a história e a decisão couberam em apenas cinco páginas. Em outras cinco páginas o voto discute a lei e a jurisprudência, bem como as alegações das partes. A 11ª página só foi usada para a decisão final, em três linhas. Puro mamão com açúcar para quem tem de ler decisões judiciais.

Antes do voto em si, o documento traz um texto de menos de página e meia, chamado nos EUA de “Syllabus”, que é um sumário da decisão judicial – e que também é suficiente para entender o voto. O primeiro parágrafo do voto, em si, que começa com a questão a ser decidida pela corte, diz:

“Quando uma condenação criminal é anulada por um tribunal de recursos e um novo julgamento não é ordenado, o estado é obrigado a reembolsar as taxas, custas e restituições cobradas do réu por causa da condenação? Nossa resposta é sim. Na ausência da condenação por um crime, a pessoa é presumidamente inocente. Sob a lei do Colorado perante a corte, entretanto, o estado retém as apurações relativas à condenação, a não ser que – e até que – o réu predominante institua uma ação civil separada e prove sua inocência com provas claras e convincentes. Esse esquema, em nosso entendimento, viola as garantias do devido processo prevista na 14ª Emenda [da Constituição dos EUA]”.

Do segundo parágrafo em diante, o voto entra na história de dois casos que foram juntados. A história explica a questão examinada pela corte (a linguagem é simples, não é preciso editar nada, a não ser para adequar a tradução, para facilitar o entendimento do leitor comum, embora números de artigos tenham sido retirados):

“Dois casos foram apresentados à corte. A peticionária Shannon Nelson, em 2006, foi condenada por um júri no Colorado, com base em cinco acusações – duas de crime e três de contravenções penais – de abuso sexual e físico de seus quatro filhos. O fórum criminal lhe impôs uma sentença de prisão de 20 anos à perpétua e o pagamento de custas, taxas e restituições, no valor de US$ 8.192,50. Em novo julgamento, o júri absolveu a ré de todas as acusações”.

“O peticionário Louis Alonzo Madden, em 2005, foi condenado por um júri no Colorado por tentar ser cliente de uma criança prostituída e tentado cometer estupro à força, um crime de terceiro grau. O fórum criminal lhe impôs uma sentença de prisão por tempo indeterminado e o pagamento de custas, taxas e restituições, no valor de US$ 4,413.00. O Tribunal Superior do Colorado anulou uma das condenações de Madden em reexame direto e um tribunal de pós-condenação anulou a outra. O estado preferiu não recorrer ou promover novo julgamento.

“(…) Na ausência da acusação, o Colorado não teria qualquer direito legal de cobrar e reter os fundos dos peticionários. Com suas condenações anuladas, os dois peticionários moveram ações para recuperar os valores que o estado havia tomado deles. No caso de Shannon Nelson, o fórum negou o pedido imediatamente. No caso de Madden, o tribunal de pós-condenação autorizou o reembolso de custas e taxas, mas não da restituição”.

“O mesmo tribunal de recursos do Colorado julgou os dois casos e concluiu que os réus tinham direito ao reembolso de tudo o que pagaram, incluindo restituições. O tribunal argumentou que tais pagamentos estão atados a uma condenação válida, na ausência da qual o tribunal deve retornar o réu ao status quo ante”.

“O Tribunal Superior do Colorado anulou as duas decisões. Como nenhuma outra lei trata de reembolsos, o tribunal concluiu que a Lei da Pessoa Inocentada é o processo exclusivo para réus inocentados que buscam o reembolso de custas, taxas e restituições”.

“ (…) Em voto dissidente, o ministro William Hood afirmou que nenhum dos peticionários tem uma condenação válida e, portanto, deve ser considerado presumidamente inocente. E que o devido processo requer algum mecanismo para o reembolso do dinheiro dos réus. Como a Lei da Pessoa Inocentada requer que um peticionário prove sua inocência, a lei não fornece o remédio que o devido processo exige”.

Após citar esse argumento, o voto diz que a Suprema Corte aceitou julgar os casos. E anulou as decisões do Tribunal Superior do Colorado. A corte esclareceu ainda que a recuperação de valores pagos a título de custas, taxas e restituições não tem nada a ver como uma ação que o réu pode mover separadamente contra o estado, por compensação pelo tempo que passou inocente na prisão por culpa da condenação errada.

“O esquema do Colorado viola as medidas do devido processo, porque o interesse do réu de reaver seus fundos é alto, o risco de privação errônea desses fundos com base na Lei da Pessoa Inocentada é inaceitável e o estado não provou que tem interesse contraposto de reter os valores em questão. A se conformar com o devido processo, o estado não pode impor nada mais que procedimentos mínimos para o reembolso de cobranças dependentes de uma condenação subsequentemente anulada”.

“O direito do Colorado de reivindicar o dinheiro dos réus é zero”, diz o voto que qualquer leigo consegue entender.

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