Ambiente Jurídico

A questão dos "refugiados" climáticos e ambientais no Direito Ambiental

Autor

  • Álvaro Luiz Valery Mirra

    é juiz de Direito em São Paulo doutor em Direito Processual pela USP especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França) coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

22 de abril de 2017, 8h07

Spacca
Tema bastante atual no Direito Ambiental, notadamente no âmbito do Direito Internacional do meio ambiente, é o dos refugiados ou deslocados climáticos e ambientais. Segundo estimativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados, apresentada em 2008, aproximadamente 250 milhões de pessoas serão levadas a se deslocar no curso deste século, em razão da evolução do clima, das condições meteorológicas extremas, da diminuição das reservas de água e da degradação das terras agrícolas, eventos esses resultantes do aquecimento global.[1] Tais deslocamentos ocorrerão no interior dos Estados e entre os mais diversos países.

Há controvérsia a respeito da denominação a ser dada a essas pessoas como verdadeiros “refugiados”. Isso porque, nos termos da Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, “refugiado” é a pessoa que teme ser perseguida em razão da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do fato de pertencer a um determinado grupo social ou em função de suas opiniões políticas; situações que, à evidência, não abrangem os refugiados climáticos e ambientais.[2] Daí se falar, também, em “deslocados” climáticos e ambientais.[3]

Os refugiados ou deslocados ambientais, em termos gerais, são as pessoas forçadas a deixar o lugar em que vivem, de maneira temporária ou permanente, em virtude de eventos climáticos e ambientais, de origem natural ou humana, que colocam em perigo a sua existência ou afetam seriamente a sua condição de vida.[4] Mais especificamente, os refugiados ou deslocados climáticos são as pessoas que deixaram imediatamente ou estão na iminência de deixar em um futuro próximo o lugar em que vivem, em razão de uma súbita ou gradual alteração do meio natural causada por algum dos impactos causados pelas mudanças climáticas: aumento do nível dos oceanos, eventos climáticos extremos (tempestades, ciclones, tornados), seca e diminuição da disponibilidade de água.[5]

Discute-se, então, sobre a proteção a ser dada às pessoas que se encontram nessa condição de deslocados climáticos e ambientais. Basicamente, duas estratégias são imaginadas para tratar desse problema sob a ótica do direito internacional.

A primeira delas é a modificação dos instrumentos convencionais internacionais já existentes, como a aludida Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados ou a própria Convenção-Quadro sobre as Mudanças Climáticas, para incluir, em seus textos respectivos ou em protocolos adicionais, a proteção dos refugiados ou deslocados climáticos e ambientais.[6]

A segunda estratégia é a elaboração de uma nova convenção internacional específica sobre o assunto.[7] Nesse sentido, existe já um texto regional, elaborado pela União Africana, que adotou uma convenção sobre a proteção e a assistência às pessoas deslocadas, embora apenas no plano interno dos países.[8]

Além disso, existe, também, um Projeto de Convenção Internacional sobre o Estatuto Internacional dos Deslocados Ambientais, proposto por um grupo de juristas do direito ambiental e dos direitos humanos ligados à Universidade de Limoges, na França. Essa convenção teria vocação universal, para adoção por todos os países e não apenas em um contexto regional específico, com a consagração de um estatuto jurídico específico para os deslocados ambientais.[9]

Mas o que se discute quando se alude à proteção internacional dos deslocados ambientais, seja pela modificação de documentos existentes, seja pela criação de uma convenção internacional específica, com ou sem o estabelecimento de um estatuto jurídico que lhes seja próprio?

Por um lado, defende-se o reconhecimento de uma série de direitos fundamentais dos deslocados ambientais, considerados como tais não apenas as pessoas individualmente, mas famílias e populações inteiras. A proteção, nesses termos, levaria em conta não os indivíduos, mas grupos inteiros e teria como objetivo assegurar tratamento digno a todos os que se encontram nessa condição, inclusive nos deslocamentos transfronteiriços externos.[10]

Entre os direitos fundamentais dos deslocados ambientais, a serem garantidos pelos países de acolhimento, incluem-se o direito à manutenção do grupo familiar, o direito à vida, o direito à dignidade, o direito à saúde, o direito à alimentação e à água, o direito à moradia, o direito ao trabalho, o direito à educação e à formação profissional, o direito a ser sujeito de direito, o direito de não ser recusado pelo país escolhido para o acolhimento.[11]

Por outro lado, prevê-se, a fim de garantir a efetivação de todos os direitos consagrados, ampla cooperação internacional, com a constituição de um fundo de ajuda e de compensação aos países de acolhimento, observado, em qualquer circunstância, o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, entre os Estados.[12] Dessa maneira, na repartição dos encargos, não só com o fundo, mas com o próprio acolhimento, os países do Norte, mais desenvolvidos, que têm responsabilidade histórica maior nas mudanças climáticas, deveriam assumir uma carga igualmente maior.[13]

A elaboração de uma convenção internacional sobre a matéria e a consagração de um estatuto jurídico específico para os deslocados climáticos e ambientais defrontam-se, como é fácil de compreender, com resistências importantes, não só daqueles que temem o aumento dos movimentos de migração em massa dos países periféricos mais fortemente atingidos pelas mudanças climáticas para os países centrais, como, até mesmo, de especialistas na matéria e do próprio Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.[14]

O máximo que se conseguiu, até o momento, afora as iniciativas regionais, foi o estabelecimento, na órbita internacional, no ano de 2015, de uma “agenda para a proteção das pessoas deslocadas para além das fronteiras no contexto de catástrofes e mudanças climáticas”, sob os auspícios da iniciativa Nansen, encabeçada pela Suíça e pela Noruega.[15] A iniciativa Nansen foi um processo de consulta mundial que contou com a participação de vários países (ao todo 111 Estados), com ênfase ao reforço de medidas preventivas a serem adotadas nos países de origem e ao planejamento da relocação das pessoas em situação de risco. Dada a diversidade de situações que envolvem os deslocados transfronteiriços externos, sustenta-se que as soluções devem ser preferencialmente regionais.[16]

Aplaudida por especialistas na matéria, a iniciativa Nansen constitui uma espécie de guia prático e serve como fonte de inspiração para os Estados elaborarem suas legislações nacionais.[17] Não se trata, à evidência, de documento obrigatório, como o seria uma convenção internacional sobre o assunto. Ademais, e por essa mesma razão, não reconhece direitos específicos dos deslocados climáticos e ambientais.

Ocorre que a opção pela elaboração de uma simples agenda, sem caráter mandatório ou vinculante para os Estados, sem o reconhecimento de direitos específicos e apoiada em soluções a serem adotadas de preferência nos próprios países de origem, não basta para o tratamento de um assunto crucial para o futuro de populações inteiras, que frequentemente se vêm forçadas a abandonar os lugares e os países onde vivem em virtude de eventos climáticos e ambientais para os quais não contribuíram diretamente e de que são as maiores vítimas. Tal agenda pode, inclusive, no limite, mostrar-se refratária ao ideal de solidariedade entre os povos, pela falta de obrigatoriedade dos compromissos assumidos e pelo caráter discricionário e aleatório da contribuição dos Estados envolvidos.

Nunca é demais lembrar que o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, sem dúvida violado em situações como as aqui discutidas, é justamente classificado entre os direitos de terceira geração ou dimensão, como um dos direitos de solidariedade ou direitos dos povos[18], de titularidade coletiva e de interesse de toda a humanidade. Como tal, o direito ao meio ambiente está fundado na solidariedade entre as gerações atuais (solidariedade intrageracional) e entre estas e as gerações futuras (solidariedade intergeracional)[19], pressupondo, para a sua implementação concreta, o esforço conjunto do Estado, dos indivíduos, dos diversos setores da sociedade e das diversas Nações.

Daí por que, em uma concepção verdadeiramente solidária, seria importante, de fato, a consagração de um estatuto jurídico para os deslocados climáticos e ambientais, em um documento internacional de âmbito universal e natureza mandatória, voltado a amparar os deslocamentos transfronteiriços internos e externos, com o reconhecimento específico de direitos fundamentais às pessoas, famílias e grupos forçados a migrar, como proposto por importantes experts do direito internacional e do direito ambiental.[20] Essa parece ser a única concepção compatível com um espírito autenticamente comunitário, indispensável à formação de uma civilização mundial humanista.[21] Por mais utópico ou incômodo que isso possa parecer na atualidade.


[1] A notícia foi dada em dezembro de 2008, por L. Craig Johnstone, Alto Comissário Adjunto para os refugiados da ONU. Segundo ele, os deslocamentos se darão em um ritmo de seis milhões de pessoas por ano (cf. COURNIL, Christel. Les défis du droit international pour protéger les “réfugiés climatiques”: réflexions sur les pistes actuellement proposées. In: COURNIL, Christel; COLARD-FABREGOULE, Catherine. Changements climatiques et défis du droit. Bruxelles: Bruylant, 2010, p. 345).
[2] Art. 1º da Convenção de Genebra.
[3] COURNIL, Christel, op. cit., p. 347-350; PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement, droit durable. Bruxelles: Bruylant, 2014, p. 998-1000.
[4] Essa é a conceituação de Essam El-Hinnawi, em relatório apresentado ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (cf. COURNIL, Christel, op. cit., p. 347; SILVA, Solange Teles da. O direito internacional do meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 46).
[5] BIERMANN, Frank; BOAS, Ingrid, apud COURNIL, Christel, op. cit., p. 348.
[6] COURNIL, Christel, op. cit., p. 358-361; SILVA, Solange Teles da, op. cit., p. 48.
[7] COURNIL, Christel, op. cit., p. 361-369; PRIEUR, Michel, op. cit., p. 998 e ss.
[8] Convenção da União Africana sobre a Proteção e a Assistência às Pessoas Deslocadas na África (Convenção de Kampala, de 2009 – www.peaceau.org/uploads/convention-on-idps-fr.pdf), que inclui, no conceito de deslocados, aqueles ambientais e climáticos, embora, como referido, seja restrita aos deslocamentos internos. Sobre o assunto, ainda, COURNIL, Christel, op. cit., p. 353.
[9] PRIEUR, Michel, op. cit., p. 1005-1023, com o texto do Projeto de Convenção, na versão de maio/2013.
[10] COURNIL, Christel, op. cit., p. 363; PRIEUR, Michel, op. cit., p. 1005 e ss.
[11] COURNIL, Christel, op. cit., p. 363; PRIEUR, Michel, op. cit., p. 1005 e ss., especialmente arts. 12 e 13 do Projeto de Convenção Internacional.
[12] Princípio n. 7 da Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, adotada em 1992 no Rio de Janeiro; art. 5º do Projeto de Convenção Internacional.
[13] COURNIL, Christel, op. cit., p. 366.
[14] A propósito das reservas do Alto Comissariado das Nações Unidas sobre os Refugiados ao reconhecimento de um estatuto jurídico próprio aos refugiados ou deslocados climáticos e ambientais, ver, em especial, SILVA, Solange Teles da, op. cit., p. 48. A Declaração das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, adotada no Rio de Janeiro, em 2012 (Rio + 20), por sua vez, não tratou do problema de maneira expressa, limitando-se, no item 157, a exortar os Estados à promoção e à defesa eficientes dos direitos humanos e das liberdades fundamentais de todos os migrantes, quaisquer que sejam seus estatutos migratórios, com especial atenção ao papel e às responsabilidades dos países de origem, de trânsito e de destinação. No âmbito da Convenção-Quadro sobre as Mudanças Climáticas, as reuniões da Conferência das Partes de Paris (2015 – COP 21) e de Marrakech (2016 – COP 22) previram a revisão do Mecanismo Internacional de Varsóvia sobre perdas e danos associados aos impactos das mudanças climáticas (órgão submetido à autoridade da Conferência das Partes), para incluir o tema dos deslocamentos, das migrações e da mobilidade humana, muito embora, à primeira vista, mais para prevenir e reduzir os deslocamentos de populações.
[15] Sobre a iniciativa Nansen, ver https://www.nanseninitiative.org.
[16] Sobre o tema, ver as entrevistas concedidas por Walter Kälin e François Gemenne, especialistas na matéria, à jornalista Stéphanie Senet, do Journal de l’Environnement, respectivamente, em 14 e 28 de outubro de 2015.
[17] Ainda aqui, ver as entrevistas concedidas por Walter Kälin e François Gemenne à jornalista Stéphanie Senet, do Journal de l’Environnement, respectivamente, em 14 e 28 de outubro de 2015.
[18] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993, p. 115 e 122; MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 104-105.
[19] FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 118; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 73-76; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 260-261.
[20] Ver, a propósito, entrevista concedida por Fernanda de Salles Cavedon, jurista integrante da Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais – RESAMA (http://migramundo.com/acordo-de-paris-deixa-a-desejar-sobre-refugiados-ambientais-aponta-pesquisadora/). Sobre a situação específica do Brasil e da América do Sul, ver entrevista concedida por Erika Pires Ramos, igualmente jurista integrante da RESAMA, a Rodrigo Farhat, publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, n. 117, abril/2017, p. 32-33.
[21] Sobre o espírito da civilização humanista a ser construída, ver COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 301.

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    é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

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