Interesse Público

Novo marco legal sobre abuso de autoridade é mais do que oportuno

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

20 de abril de 2017, 10h47

Spacca
A atividade administrativa exercida por agentes públicos deve ser rigorosamente controlada por agentes públicos independentes.  Não por outra razão, a Constituição da República de 1988 criou complexa e multifacetada teia de controles da atividade jurídico-administrativa, cujo escopo central é inibir e reprimir atos omissos ou compassivos que destoem da baliza ética e legal e que possam representar a utilização irracional e desarrazoada das prerrogativas públicas conferidas pelo ordenamento jurídico aos que exercem parcela de poder.

Não se pode, contudo, desprezar os desacertos que as autoridades públicas envolvidas na atividade de controle podem praticar. Se prefeitos, servidores e empregados públicos cometem ilícitos, assim também podem agir magistrados,  membros do Ministério Público, conselheiros e ministros dos Tribunais de Contas.  Revisitar o tema do abuso de autoridade é mais do que oportuno, é vital em uma sociedade cuja Constituição não santifica ou endeusa qualquer dos agentes públicos. 

O  atual PLS 85/2017 relatado pelo senador Roberto Requião (PMDB-PR), cuja apresentação à Comissão de Constituição e Justiça do Senado na última quarta-feira (19/4) define como sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios, de território, compreendendo, mas não se limitando os servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; membros do Poder Legislativo; membros do Poder Judiciário; membros do Ministério Público e membros dos Tribunais ou conselhos de contas.  

Para além de utilizar o vocábulo agente público, valendo-se pois do mais abrangente rótulo que o direito administrativo conhece para  sinalizar o  alcance subjetivo da regra, o PLS 85/2017 ocupa-se de afastar qualquer sorte de dúvida, mencionando expressamente diversas categorias às quais se poderá atribuir a prática do crime de abuso de autoridade e ao transportar, para o parágrafo único do artigo 1º, a concepção doutrinária de agente público, que desconsidera limites quanto à natureza do vínculo, sua eventual transitoriedade e à existência ou não de remuneração.

Ainda que vozes possam reverberar a coincidência da proposta diante dos retumbantes impactos da operação “lava jato”, parece-nos indiscutível a necessidade de aperfeiçoarmos a República em sua integralidade, não ignorando as práticas nem sempre merecedoras de encômios, oriundas daqueles cuja missão essencial é o controle sobre atitudes alheias.

A discussão sobre uma nova lei de abuso de autoridade tem gerado grande preocupação entre membros da magistratura e, em especial do Ministério Público. As entrevistas concedidas pelos seus representantes  mais ilustres e a própria redação do texto ofertado pela Procuradoria Geral da República ao Congresso Nacional revelam o desconforto com uma possível contenção, via oblíqua, da atuação ministerial.   Isso porque, o insucesso em determinada ação judicial poderia caracterizar abuso de autoridade, o que seria um convite à inação e a um indesejável recato do Ministério Público. Evidentemente que o estímulo ao silêncio não apenas abalaria o Ministério Público, como igualmente prejudicaria a sociedade. Portanto, recomenda-se prudência quando do trato da matéria.

Ao apresentar as considerações da procuradora-geral da República, Rodrigo Janot salientou que a pretensão do Ministério Público Federal era afastar  o chamado "crime de hermenêutica", salientando ainda  que os agentes públicos não podem ser punidos pelo exercício regular de suas funções. 

A proposta do relator, senador Roberto Requião, hoje difundida pela mídia, todavia, não incorporou, em sua totalidade, a redação proposta pelo Ministério Público Federal. O senador alega preocupação em conter o abuso e não eventuais desajustes de interpretação, mas argumenta ser necessário não blindar as autoridades de eventual cometimento de crime.

Assim, logo após conceituar o crime de abuso de autoridade, os parágrafos do artigo 1º do PLS 85/17 ressalvam que "as condutas descritas nesta lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem, beneficiar a si próprio ou a terceiro ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal”  e ainda explicitam que  “divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de autoridade."

A proposta parece buscar um ponto de equilíbrio entre a redação original do PLS 280/2016 que, ao conceituar o crime de abuso de autoridade, fazia alusão ao abuso do poder conferido às autoridades públicas sem, todavia, abordar a questão relativa à interpretação jurídica, e a sugestão ofertada pelo Ministério Público Federal que, sinteticamente, pretendia afastar a criminalização diante de divergência de entendimentos.

A escolha adotada pelo Relator, em princípio, parece ajustada, ainda que seja crucial aprimorar a redação para que se esclareça, por exemplo, o que se compreende como divergência "necessariamente razoável e fundamentada". 

Preservada a regra como hoje proposta pelo relator, sem ajustes de conteúdo, não serão raros os casos em que haverá dissonância de entendimento sobre a responsabilização ou não, diante da imprecisão de sua construção.

Um exemplo  ajudará a compreender o receio que verbalizo.

Atualmente, é possível testemunhar situações em que, a despeito da compreensão sedimentada pelo STF, o Ministério Público insiste no ajuizamento de ação, visando a condenação de agente público, entidades e/ou cidadãos. Ainda que se possa lançar mão do argumento da autonomia e independência funcional do membro do Ministério Público, de fato garantida constitucionalmente, parece necessário reconhecer que tais prerrogativas são concedidas visando o desempenho racional das atribuições ministeriais.

A propositura de ações em que se sustentam teses repudiadas pelo Supremo Tribunal Federal, em especial quando objeto de via súmula vinculante ou em casos de repercussão geral, espelha, a nosso sentir, antes o descompromisso com o interesse público, além de provocar transtornos injustificáveis para os que precisarão se defender.

Nesse cenário, parece-nos que a diversa interpretação jurídica realizada pelo membro do Ministério Público não autorizaria o manuseio de ação, a questionar determinada conduta praticada por autoridade, se amparada em decisão com repercussão geral ou súmula vinculante do STF.  Trata-se de exemplo ilustrativo do enquadramento em abuso, por existência de “divergência não razoável” – artigo 1o do PLS 85/2017.

Mas a análise que faço pode não encontrar ressonância. Outros poderão argumentar contrariamente. A simples possibilidade de dissenso recomenda que, desde logo, e tanto quanto possível, se aperfeiçoe a construção da norma, para sinalizar a seus destinatários os eventuais "campos minados " de seu ofício. A expressão “mero capricho ou satisfação pessoal” retrata conceito jurídico indeterminado de difícil caracterização. Talvez pudesse ser substituída por algo como “razões pessoais incompatíveis com o interesse público”.

De toda forma, para além da conveniência (ao menos) de ajustes para o aprimoramento do artigo 1º do PLS 85/2017, é curioso perceber que a essência do receio ministerial concentra-se exatamente na questão da criminalização da divergência de interpretação.

Preocupa-se o Ministério Público em afastar qualquer tentativa de se imputar a seus membros a prática de abuso de autoridade, na hipótese em que o pedido formulado em ação por eles patrocinada, a partir de determinada compreensão da ordem jurídica, seja posteriormente rechaçado pelo Poder Judiciário.  

Ocorre que o mesmo Ministério Público rotineiramente ignora a possibilidade de divergência interpretativa, dirigindo-se furiosamente contra autoridades públicas que ousam se filiar a corrente outra que não a que embala o pensamento ministerial.

Interessante notar que o argumento que nutre a reação ministerial retratada em documentos e recentemente verbalizada tanto em entrevistas não discrepa daqueles corriqueiramente apresentados pelos réus diante de ações movidas pelo próprio MP.

Não raras vezes, o agente público competente para o exercício da atividade administrativa se vê lançado no polo passivo de ações penais e de improbidade, pela prática de ato administrativo, sem dolo ou culpa, apenas porque a sua escolha ou conduta não representa a opção que aos olhos do membro do Ministério Público parece adequada. Sem falar nas teses criadas ao arrepio da lei e dos mais básicos princípios constitucionais, como é o caso da “presunção de dolo”.

É interessante como de nada adianta a posição divergente àquela do MP estar fundada em entendimento jurisprudencial e/ou doutrinário pré-existente — e esse é um problema que precisa ser debatido. Isso sem falar no tom ameaçador das recomendações por meio das quais o Ministério Público costumeiramente não se limita a exigir o saneamento de supostas falhas, mas chega a exigir a adesão a opções de política pública que, na sua visão, são as melhores.

Ora, se não é correta a punição de membros do Ministério Público, porque há de lhes ser assegurada a liberdade para eleger determinada linha interpretativa, igualmente não se deveria cogitar do ajuizamento de ações em face de outras autoridades públicas nas hipóteses em que o comportamento adotado não se amolda àquele desejado pelo órgão ministerial, mas se afina com entendimento doutrinário ou jurisprudencial, ainda que não pacíficos. 

Promotores e procuradores da República costumam  resistir bravamente  à ideia de que à autoridade administrativa deve ser assegurada a mesma liberdade hermenêutica que pretendem lhes seja garantida. 

Se é crucial afastar o "crime de hermenêutica" para o exercício satisfatório das prerrogativas que a Constituição da República garante aos promotores, procuradores de Justiça e procuradores da República, há se se salvaguardar o mesmo espaço de interpretação para as demais autoridades. Afinal, ubi eadem ratio ibi idem jus, ou seja, “onde houver o mesmo fundamento deverá haver o mesmo direito”. Ou ainda:  ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositivo (“onde há a mesma razão de ser, deverá prevalecer a mesma razão de decidir”).

Em outras palavras, pau que não dá em Chico não pode dar em Francisco. Diante de uma diversidade de entendimentos a respeito de certo assunto, há de se assegurar à autoridade competente o direito a atrelar-se à determinada linha interpretativa, sem asfixiar o espaço decisório do agente público. Mas, definitivamente, não é isso o que vem ocorrendo.

A liberdade que se pretende conceder ao Ministério Público de ater-se a uma ou outra linha de pensamento acolhida pela jurisprudência também deve ser garantida os demais agentes públicos, sob pena de ser mantido um privilégio inadmissível a determinados órgãos controladores — que passam a se estabelecer acima do bem e do mal. Tolher tal liberdade deve ser considerado um caso de abuso de autoridade.

O momento convida ainda a uma outra reflexão a respeito da qual o PLS 85/2017 nada disse expressamente — mas deveria.

Entre os tipos penais distribuídos pelo PL 85/2017 não há previsão específica sobre o enquadramento, em termos de abuso de autoridade, da instauração de inquérito civil ou criminal ou do ajuizamento ações pelo Ministério Público, a despeito de evidenciada a prescrição da pretensão persecutória.  

Tenho presenciado o desassossego de pessoas que se veem compelidas a contratar advogado, para o oferecimento de defesa e acompanhamento de ação proposta em flagrante desconsideração à prescrição. 

O Supremo Tribunal Federal firmou tese com repercussão geral, nos autos do Recurso Extraordinário 669.069, sobre a prescritibilidade das ações de reparação de danos à Fazenda Pública decorrentes de ilícito civil. A despeito disso, ainda hoje o  Ministério Público propõe ações contra atos alcançados pela prescrição. E não me refiro a casos em que se imputa aos réus a prática de improbidade administrativa. Refiro-me a casos em que o propósito é exclusivamente o ressarcimento ao erário. A situação é ainda mais dramática quando se postula e, pior, se obtém o bloqueio dos bens dos réus (a propósito, é urgente discutir a absurda jurisprudência a respeito deste tema, o que será objeto de outra coluna).

Ora, prerrogativas funcionais são ferramentas imperiosas ao exercício responsável das atribuições inerentes ao cargo público. São intoleráveis e igualmente danosas à sociedade os excessos e a insensatez. Movimentar a estrutura do Poder Judiciário e do próprio Ministério Público em busca de ressarcimento não mais possível diante do transcorrer dos dias é também lesivo ao erário e ao interesse público.

Enfim, parece evidente que a reflexão sobre os equívocos e exageros das autoridades responsáveis pelo controle é muito relevante, inclusive para ser preservado o importante papel que a Constituição da República lhes conferiu. Disciplinar o assunto mediante lei, mais do que oportuno, é fundamental.

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).

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