Contas à Vista

Direito à saúde pública vem sendo atacado pelo Direito Financeiro

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

18 de abril de 2017, 8h00

Spacca
O título desta coluna pode parecer apelativo, mas se revelará verdadeiro. Infelizmente.

O termômetro envolvendo temas de Direito Financeiro está aquecendo dia a dia. Todo esse problema da chamada "lista do Fachin" envolve matérias de Direito Financeiro Eleitoral (que venho abordando em várias colunas), bem como a descoberta de focos de corrupção nos tribunais de Contas (que é um tema relativo ao sistema de controle e responsabilidade financeira, correlato ao vigiar e punir de Foucault). Porém existem outros temas que merecem nossa atenção, como a questão do financiamento dos direitos sociais, no qual o Direito Financeiro está sendo utilizado como um machado a cortá-los, em especial os referentes à saúde pública.

O ponto central desta coluna é o debate apresentado ao STF em várias ADI, das quais se destacam a ADI 5.595, cujo relator é o ministro Ricardo Lewandowski, na qual se discute modificações no sistema de vinculação orçamentária para a saúde, ocorridas na EC 86; e a ADI 5.658, cuja relatora é a ministra Rosa Weber, em que se discute a imposição de teto de gastos para educação e saúde, realizada pela EC 95 — que revogou parcialmente o que havia sido alterado nesse âmbito pela EC 86[1].

A questão é saber se é ou não constitucional a modificação efetuada por essas duas emendas constitucionais acerca do financiamento do direito à saúde pública.

Para o leitor apressado, farei logo um spoiler, adiantando a conclusão, que será paulatinamente exposta na sequência: as duas EC são inconstitucionais no que se refere ao rebaixamento das garantias financeiras para custeio dos direitos sociais. Passo a expor as razões dessa conclusão.

Destaca-se que direitos sociais são direitos fundamentais, não havendo autores de relevo que ainda coloquem esse aspecto em dúvida. Poderia seguir escrevendo sobre a jusfundamentalidade desses direitos, falando de gerações, dimensões etc., porém muitos já trataram desse assunto e, como nada tenho a inovar sobre o tema, poupo o leitor de repetições vãs.

Um aspecto pouco destacado quando se analisa essa matéria diz respeito à função de nivelamento socioeconômico. É quase certo que você, leitor destas linhas, não se utiliza do sistema público para cuidar da saúde de sua família nem do sistema público de educação básica e fundamental para seus filhos. Porém, grande parte da população brasileira depende do Sistema Único de Saúde (SUS) e das escolas municipais e estaduais para dar alguma educação para suas crianças. Se esse grupo de pessoas não tiver acesso a tais direitos sociais, como ascenderão na sociedade? Como conseguirão subsistir com um mínimo de dignidade?

Trabalha comigo uma pessoa que, dias atrás, me contou de forma espontânea que, quando criança, perambulava com sua mãe e irmãos pelas ruas e abrigos do Recife e, para sobreviver naquela época, carregava compras nas feiras para “ganhar algum”. Estudou em escola pública, mas só conseguiu chegar ao “ginasial”, pois tinha que trabalhar. Sua mãe era analfabeta, e ele sabe ler e escrever. Hoje, dois de seus três filhos são “formados” e trabalham em profissões de nível superior. Se formos olhar sob o aspecto intergeracional, houve uma enorme ascensão social familiar à custa de ensino público e amparado por saúde pública. Pois é dessas pessoas concretas que estou falando, e não de pessoas ideais, fora do espaço e tempo existentes e vividos. Nivelamento social diz respeito a isso: permitir que as pessoas consigam ter dignidade, e dá-la à sua família — necessidade que é potencializada em uma sociedade absurdamente desigual. Não se espere que o mercado faça isso por essas pessoas; é papel do Estado permitir que pessoas em tal situação consigam ultrapassar a linha de pobreza para “dar um salto” rumo ao mercado. “Gente é pra brilhar e não pra morrer de fome”, já disse o poeta[2].

A bem pensar, na linha irônica de Álvaro de Campos, “isso acontece a tanta gente, que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece”. “Tudo, menos ceder ao humanitarismo!”[3] Por ser uma análise jurídica, voltemos ao Direito positivo, porém sem deixar de lado essa janela aberta à realidade, sob pena de fazermos reles normativismo.

Onde está o problema jurídico? E mais, para aqueles que veem o Direito Financeiro de forma restrita: onde está o problema jusfinanceiro? Afinal, esta é uma coluna que trata desse ramo do Direito.

A Constituição de 1988 estabelecia que seria destinado para o financiamento da saúde pública, no caso de estados e municípios, um montante mínimo calculado sobre a receita tributária líquida desses entes federados (artigo 198, parágrafo 2º, II e III, conforme redação dada pela EC 29/00). E a União deveria ter a base de cálculo estabelecida por lei complementar (conforme o artigo 198, parágrafo 2º, I, cf EC 29/00).

Disposição constitucional transitória (artigo 77, ADCT), inserida pela EC 29/00, estabeleceu que, a partir do ano 2000, esses valores deveriam ser calculados da seguinte forma:

  • para a União: o montante empenhado com gastos para a saúde no ano de 1999, acrescido de 5%, para o cálculo referente ao ano 2000, e, a partir daí, pela variação do PIB, com uma trava financeira em caso de PIB negativo (artigo 77, I e parágrafo 3º, ADCT);
  • para os estados: 12% de sua receita tributária líquida (artigo 77, II, ADCT);
  • para os municípios: 15% de sua receita tributária líquida (artigo 77, III, ADCT).

Esses valores deveriam vigorar até que fosse editada a lei complementar prevista no artigo 198, parágrafo 3º, CF. Adveio a Lei Complementar 141/12, que manteve os percentuais acima mencionados, validando como permanente aquela disposição constitucional transitória.

Ocorre que em 2015, no bojo da fúria legiferante de Eduardo Cunha, foi promulgada a Emenda Constitucional 86, que modificou o montante mínimo a ser gasto pela União.

O grande problema foi o garroteamento em 15% da receita corrente líquida (artigo 198, I), e, mesmo assim, de forma progressiva, pois previa que esse percentual seria de 13,2% (em 2016), de 13,7% (em 2017) e assim até chegar aos 15% apenas no remoto ano de 2021. Ou seja, os 15% seriam apenas uma miragem a ser alcançada após seis anos da promulgação da EC 86/15 (artigo 2º).

E mais, no artigo 3º da EC 86/15 foi mencionado que a parte da União no valor dos royalties do petróleo seriam utilizados para esse cômputo. Isso reduz ainda mais esse valor mínimo, pois o artigo 4º da Lei 12.858/13 previa que seu uso seria um acréscimo aos montantes mínimos obrigatórios previstos na Constituição.

Não é preciso ser um grande matemático para verificar que o montante de gastos obrigatórios para a saúde pública foi atacado a golpes de machado pela EC 86/15. O montante de gasto per capita com a saúde pública vem caindo ano a ano.

Ocorre que, no apagar das luzes de 2016, foi promulgada a Emenda Constitucional 95, já sob o governo Temer, que mais uma vez atacou os gastos mínimos sociais a golpes de machado.

O artigo 110 do ADCT, inserido pela referida EC 95/16, estabeleceu que em 2017 os gastos mínimos com saúde se transformaram em teto, e, a partir daí, serão corrigidos apenas pela inflação, medida pelo IPCA. Ou seja, o que antes era um piso que só chegaria a se concretizar em 2021 se transformou em um teto imediato pelos próximos 20 anos. E mais: corrigido pela inflação, e não pelo crescimento econômico (PIB). Não se deve esquecer que em 2016 foi aplicado apenas 13,2%, e não os pretendidos 15%. Logo, os gastos com saúde pública ficarão congelados em 13,2% da receita corrente líquida pelos próximos 20 anos. Não se levou em conta o envelhecimento da população, o crescimento populacional, a necessidade de nivelamento social acima mencionada, e o patamar inferior que foi utilizado como base. Ou seja, rebaixaram o patamar mínimo da garantia financeira do custeio da saúde pública no Brasil. Não olharam a realidade, olharam apenas os números.

A despeito da enorme injustiça social que está sendo praticada a olhos vistos nessa área, pois reduzir tais gastos mínimos obrigatórios significa reduzir as condições mínimas de saúde para grande parte da população, existe um aspecto formal a ser enfrentado. Perguntará um formalista de plantão (eles sempre existem e estão à espreita): onde está a inconstitucionalidade das referidas EC 86/15 e 95/16? Afinal, elas alteraram os percentuais estabelecidos pela Lei Complementar 141/12, e não o corpo permanente da Constituição.

Eis o ponto a ser enfrentado. E, para isso, valho-me de um precedente tributário de alto gabarito, que é citado como paradigma cada vez que se estuda a questão dos direitos fundamentais dos contribuintes.

Relembro o caso: em 1993 foi promulgada a EC 3/93, que em seu artigo 2º previa a possibilidade de criação do Imposto Provisório de Movimentação Financeira (IPMF), ancestral remoto da CPMF. Por ter surgido através de uma EC, não se sujeitava às regras do artigo 154, I, CF, que estabelece a competência residual tributária, que poderia ser exercida desde que cumpridos certos requisitos, que não seriam atendidos pelo IPMF se fosse veiculado através de uma lei complementar. Ora, perguntava-se à época, pode uma emenda constitucional ser inconstitucional? Levado o caso ao STF, foi decidido na ADI 939, tendo por relator o ministro Sydney Sanches, que a EC 3 era inconstitucional nesse ponto.

A construção jurídica foi deveras interessante, sistêmica. Relaciona o artigo 60, parágrafo 4º, IV, CF, que determina serem os direitos e garantias individuais uma cláusula pétrea, que não pode ser violada nem através de emendas constitucionais. E, com os olhos voltados ao artigo 5º, parágrafo 2º, estabeleceu que os direitos e garantias estabelecidos pela Constituição não afasta outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. E vinculou essa norma ao caput do artigo 150, que veicula uma cláusula aberta em favor dos contribuintes, ao mencionar que “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União…”. Correlacionando todos esses artigos, o STF chegou à conclusão que a EC 3/93, que criou o IPMF, era inconstitucional, bem como, por decorrência, a Lei Complementar 77/93, que o havia regulamentado.

Pois bem, esse paradigma pode ser usado para análise desse caso. Afinal, se há um sistema constitucional de proteção aos contribuintes, porque não haveria um sistema de proteção aos cidadãos hipossuficientes?

A construção jurídica parte da mesma cláusula pétrea que garante os direitos fundamentais (artigo 60, parágrafo 4, IV, CF), passa pelos incontáveis artigos que asseguram o direito à saúde pública (dentre outros o artigo 196, CF) e segue para a cláusula geral aberta que determina a eliminação da pobreza e a redução das desigualdades sociais como um dos objetivos fundamentais da sociedade brasileira (artigo 3º, III, CF). A consequência jurídica formal é cartesiana, observado o precedente sistêmico da ADI 939: a EC 86 e a EC 95 são inconstitucionais, no ponto relativo aos gastos mínimos com saúde pública, pois reduz os direitos fundamentais das pessoas, ao invés de mantê-los.

Para a análise jurídico-tributária, a interpretação sistêmica efetuada pela ADI 939 funcionou; por qual motivo não serviria de base uma análise jusfinanceira?

Enfim, de que adianta proclamar a existência de um direito fundamental à saúde (artigo 196, CF) se o dinheiro para o implementar vem sendo solapado dia a dia? É preciso que seja ouvido o grito contido no interior dessas normas, que não são apenas tinta sobre papel, mas representam um dilema de vida ou morte para muitos brasileiros.

Os direitos sociais visam tornar as pessoas mais iguais entre si, e, sendo a sociedade brasileira absurdamente desigual — o que dispensa comprovações processuais —, o corte nesses gastos aprofundará o abismo socioeconômico que já existe no Brasil. Sem a redução desse abismo, como será possível incorporar mais pessoas à nossa sociedade de mercado? Estamos na contramão do mundo.

Parece óbvio que a qualidade do gasto público deverá ser melhorada, mas não será cortando-o a machadadas que isso ocorrerá. Pelo contrário.

Essas considerações, escritas de maneira bastante informal, somam-se às eruditas manifestações que já foram feitas por ilustríssimos colunistas nesta ConJur, como as de Fábio Konder Comparato, Heleno Torres, Ingo Sarlet e Élida Graziane Pinto (leia aqui e aqui), dentre várias outras.

No fundo do fundão, o substrato desta coluna é uma questão de intergeracionalidade, de pensamento para o futuro, e não para o aqui e agora. Para a construção de uma sociedade brasileira mais igual, com oportunidades para todos, e não para apenas alguns. Tem razão Rubem Alves: quem pensa em minutos não tem paciência para plantar árvores. Uma árvore leva muito anos para crescer. É mais lucrativo cortá-las[4].

É preciso cessar o machado financeiro que anda cortando as árvores dos direitos sociais no Brasil. É justo e necessário agir mais como jardineiros do que como lenhadores.

Em tempo: o pernambucano acima mencionado continua usuário do SUS, assim como sua família. E seus netos virão a utilizar o sistema público de ensino. Se não investirmos em gente, como aceleraremos a redução das desigualdades sociais?


[1] Diz-se parcial porque, como será demonstrado, ainda remanescem questões em aberto, como a que se refere aos royalties, bem como a questão intertemporal.
[2] Caetano Veloso, música Gente. Segue um trecho: Gente quer ser feliz/ Gente quer respirar ar pelo nariz/ Não, meu nego, não traia nunca/ essa força não/ Essa força que mora em seu
coração/Gente lavando roupa/ amassando pão/ Gente pobre arrancando a vida com a mão/ No coração da mata gente quer prosseguir/ Quer durar, quer crescer,/ gente quer luzir/ Rodrigo, Roberto, Caetano,/ Moreno, Francisco,/ Gilberto, João/ Gente é pra brilhar,/ não pra morrer de fome/ Gente deste planeta do céu de anil.
[3] Magnífica poesia de Fernando Pessoa, sob o heterônomo Álvaro de Campos, intitulada Cruzou por mim. Segue pequeno trecho: Não: tudo menos ter razão!/Tudo menos importar-se com a humanidade!/ Tudo menos ceder ao humanitarismo!/ De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?/ Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,/ Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:/ É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,/É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte./ Tudo o mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki./ Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir./ E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente/ Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
[4] Texto publicado no jornal Folha de S.Paulo, 5/6/2000.

Autores

  • Brave

    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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