Delações da Odebrecht

MPF vê crime em tentativa de estruturar legislação sobre acordos de leniência

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15 de abril de 2017, 8h50

Só depois que Marcelo Odebrecht foi preso é que a maior construtora do Brasil considerou fazer um acordo de leniência com o governo. Percebeu, então, que a legislação sobre o assunto era tão mal feita quanto se dizia desde sua sanção, em 2013. Como o texto tem muitas brechas, órgãos oficiais disputam o protagonismo nas negociações, e os acordos não saem. E quando saem, têm de ser refeitos.

A solução da companhia, já no segundo semestre de 2015, foi procurar centrais sindicais e confederações empresariais para que pressionassem o Congresso e o Planalto para melhorar a lei. O resultado foi a Medida Provisória 703/2015, que entrou em vigor, mas caducou antes de surtir efeito por “pressão da sociedade e do Ministério Público Federal”.

Quem conta a história é o pai de Marcelo, Emílio Odebrecht, em sua delação premiada feita aos investigadores da operação “lava jato”. Um dos depoimentos, conforme classifica a Procuradoria-Geral da República, narra a “interlocução política MP 703/15”. O capítulo conta como Emílio e o lobista da empreiteira, Cláudio Melo Filho, em novembro de 2015, foram até Jacques Wagner, então ministro da Casa Civil, expor sua preocupação com os problemas da lei. Eles pediram que fosse feito “um novo mecanismo legal para dar segurança jurídica ao acordo de leniência”.

A PGR viu indícios de crime no episódio, e pediu que o Supremo Tribunal Federal enviasse os autos à primeira instância para que se instaure inquérito. Segundo o pedido da Procuradoria, nas delações, os executivos “descrevem as tratativas junto ao governo federal à época, em especial ao ex-presidente Lula e o então ministro Jacques Wagner, para edição da MP 703, que permitia que o Poder Executivo firmasse, sem a anuência do Ministério Público, acordo de leniência com as pessoas jurídicas que estivessem envolvidas em infrações”.

O ministro Luiz Edson Fachin atendeu ao pedido, já que não há menção a autoridades com prerrogativa de foro. Mas o que Emílio Odebrecht diz nesse trecho de sua delação é que a Lei Anticorrupção, embora estivesse em vigor há dois anos, não dava segurança para que empresas envolvidas em infrações colaborassem com o governo.

Emílio afirma que o problema era o fato de a lei deixar em aberto os autorizados a participar do acordo, sem dar a um órgão a liderança. Hoje, continua sendo esse o principal entrave dos acordos de leniência, conforme reconhece o próprio governo: a lei dá à Controladoria-Geral da União o poder de capitanear as negociações, mas tanto o MPF quanto o Tribunal de Contas da União deram a si mesmos atribuições de intervir nos acordos. Como resultado, ninguém sabe ao certo quem procurar, com quem negociar e como se proteger.

Isso ficou claro no fim de março, quando o TCU determinou que Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez renegociem seus acordos assinados com o MPF em Curitiba. A conclusão da corte de contas foi que as fraudes a licitações cometidas pelas empreiteiras causaram danos de R$ 16 bilhões ao erário, mas seus acordos previam pagamentos de R$ 8,6 bilhões.

Mora legislativa
Emílio não é o patriarca da Odebrecht. É filho do fundador, Norberto, que batizou a Construtora Norberto Odebrecht. Mas é quem cuida das relações com os políticos graúdos, sempre junto com a Diretoria de Relações Institucionais, comandada por Cláudio Melo Filho, que a herdou do pai.

Na delação, Emílio conta que, diante da situação em que a empresa se encontrava, e de seu drama familiar – Marcelo, seu filho e presidente da companhia, fora preso em junho de 2015 –, entendeu que a melhor solução seria um acordo de leniência. Sinalizaria um novo começo para o mercado financeiro, ao mesmo tempo em que garantiria que a companhia continuasse funcionando, permitindo a recuperação do emprego e da economia do país, já em crise.

Mas a ideia do empresário era que o acordo permitisse à empresa confessar os malfeitos, ressarcir os cofres públicos, mas eximir seus funcionários de se implicar pessoalmente nos fatos, o que não seria possível pelas regras da Lei Anticorrupção. Em diversos pontos do depoimento, Emílio Odebrecht diz que sua ideia sempre foi aproximar o Ministério Público dos acordos. Seu problema era com a possibilidade de, além do MP e da Controladoria-Geral da União, também a Advocacia-Geral da União e o Tribunal de Contas da União interferissem nas negociações e nas cláusulas contratuais. Hoje, enquanto acordos estão parados há dois anos na CGU, o TCU vem reclamando de cláusulas negociadas pelas companhias com o MPF.

Emílio conta no depoimento que sua ideia foi procurar entidades representantes da indústria e de grandes empresas, além de sindicatos. O argumento sempre foi o de que a retomada do emprego seria essencial para a recuperação econômica, mas precisava de apoio. “Fui a todas as entidades. Firjan, à Federação das Indústrias da Bahia, de São Paulo, todas. Quanto maior o número de envolvidos, mais conforto para um governo fraco”, explicou.

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Então ministro da Casa Civil, Jacques Wagner recebeu Emílio Odebrecht para discutir ajustes na Lei Anticorrupção.

Poucos meses depois disso, a Odebrecht percebeu que o Congresso, “em decorrência das crises internas”, não aprovaria as leis em discussão a tempo. E em novembro de 2015, Emílio e Cláudio Melo Filho foram a Brasília para uma reunião com Jacques Wagner.

Um mês depois foi editada a Medida Provisória 703. Entre outras soluções, a MP dizia expressamente que o acordo seria celebrado pelo Poder Executivo, por meio de seus órgãos de controle, “de forma isolada ou em conjunto com o Ministério Público e com a advocacia pública”. Portanto, a participação do Ministério Público seria opcional. O TCU não estava no rol de participantes dos acordos e, portanto, não poderia interferir.

“O então ministro Jacques Wagner solicitou alguma ajuda em troca de ajudar vocês?”, quis saber um dos procuradores presentes ao depoimento. “Não, até porque já estávamos muito fragilizados. Seria um torto pedindo prum aleijado”, respondeu Emílio.

Pressões
Pouco depois da edição da medida provisória, a autoproclamada força-tarefa montada pelo Ministério Público Federal em Curitiba para tocar a “lava jato” se mobilizou. A MP é do dia 18 de dezembro de 2015. No dia 6 de janeiro de 2016, o procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima disse ao jornal O Globo que a norma foi um golpe na operação, que buscava evitar um “acordão” entre governo e empresas.

Santos Lima é o procurador responsável por negociar as leniências da “lava jato”. Ao Globo, ele disse que o objetivo do governo era acabar com um inciso da lei que só autoriza a celebração do acordo com a primeira companhia que denunciar o ilícito a ser investigado. “A mensagem que fica é a de que, se necessário, quando interesses poderosos estão em jogo, o governo federal fará as alterações necessárias para salvar empresas, ou quem mais a coalização de partidos entender importantes, para a manutenção do status quo”, atacou.

Na mesma entrevista, o procurador disse que o Ministério Público é o único “capaz de saber a real extensão da responsabilidade criminal e cível de uma empresa investigada”. Mas aí esbarrou no TCU. Em fevereiro de 2015, a corte de contas aprovou a Instrução Normativa 74, que lhe deu o poder de fiscalizar todos os acordos de leniência que tratassem de fraude a licitação. A explicação é que o TCU é o órgão cuja função constitucional é fiscalizar o uso do dinheiro público – e os acordos, por prever o ressarcimento ao erário, estariam no raio de alcance do TCU. Discurso defendido em público e no Congresso.

Em agosto de 2016, já depois de passadas as polêmicas em torno da MP 703, os ministros do TCU saudaram o governo do presidente Michel Temer, por ter se mostrado aberto ao diálogo. E por ter retirado o apoio às mudanças propostas pelo governo anterior, da presidente Dilma Rousseff, nas regras do acordo de leniência.

Freio de arrumação
“Assim que vimos a reação (do Ministério Público), falei: ‘opa, freio de arrumação, levanta os flaps”, disse Emílio Odebrecht em sua delação premiada à “lava jato”. Ele conta que, quando viu a repercussão negativa das mudanças nas regras do acordo de leniência, desistiu da batalha e decidiu convocar seus diretores para fazer a tal “colaboração definitiva”.

Essa colaboração foi anunciada em março de 2016, mas o primeiro encontro entre executivos da empreiteira e representantes da PGR aconteceu no dia 26 de fevereiro, segundo Emílio.

“Bom, já estabelecemos que a medida provisória não foi convertida em lei. Ela foi uma forma de evitar a colaboração premiada e ficar numa leniência mais ampla? Foi só quando ela não foi convertida em lei que a Odebrecht mudou de ideia?”, questionou o promotor de Justiça Sérgio Bruno Cabral Fernandes, que coordenava o depoimento. “Não”, responde de pronto Emílio. “Mas efetivamente a gente só começou a conversar depois”, insiste o promotor. “Me dê um voto de confiança: a nossa decisão foi por convicção”, garante Emílio.

Mas depois explicou que nem só de convicção foi feita sua delação. “Não foi o problema de ter caducado ou não. A reação é que nos fez repensar. Concomitante com o programa [de colaboração], a uma série de fatores, todas aquelas buscas e apreensões, ainda com uma reação clara e evidente [contra a MP]… Não foi porque ela ia ou não ia ser aprovada. Foi a reação”, disse.

“Uma coisa está ligada à outra. A reação foi grande e provavelmente a medida provisória não ia ser aprovada”, desconfia o promotor. E Emílio resume: “Posso lhe dizer concretamente: além da reação, também havia a questão das famílias”.

PET 6.662
Clique aqui para ler o anexo em que Emílio Odebrecht fala da MP 703
Clique aqui para ler o anexo de Cláudio Melo Filho sobre Jacques Wagner, no qual ele também fala da MP 703

 

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