Limite Penal

Como construir imagens no tabuleiro do jogo penal

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14 de abril de 2017, 8h00

Spacca
O processo penal se desenrola pela construção de imagens retrospectivas do acontecido, a saber, da conduta imputada, no qual um personagem figura como protagonista, em duas perspectivas: interna e externa. Ao mesmo tempo em que se discute a realização da ação/omissão internamente, intra-autos, os aspectos externos (biografia do acusado: vida, aparência, status, vida pregressa etc.) servem como mecanismos cognitivos (des)confirmatórios (confira aqui). No dispositivo do processo penal incidem múltiplas variáveis, e quem focaliza somente na perspectiva interna, em geral, perde a dimensão do jogo processual[1].

O jogo, portanto, se dá em dois tabuleiros — o subjetivo, que leva em conta aspectos externos, periféricos ao processo (da interação pessoal, rápida, de grande poder, implícita, em que a metacognição assume grande importante no autocontrole e estratégias com visão de possíveis resultados, o que se aproxima grandemente de partida de xadrez), e o tabuleiro do jogo objetivo, em que a perspectiva externa, do processo em si, das regras processuais (as quais se deve dominar completamente para que se possa jogar plenamente no tabuleiro subjetivo). Veja-se que a fusão entre os dois planos de atuação é a chamada interação, situada no tempo-espaço determinado, daí se falar na importância do momento certo, do tempo, para as viradas argumentativas e estratégicas. Um realismo fenomenológico, portanto, esse que leva em consideração o plano da jogada no tabuleiro subjetivo — externo. Assim, dado que a formação do convencimento do julgador se dará por processos cognitivos, importa a formação coerente de argumentação que não tenha brechas de hipóteses contrárias[2]. Ou importa inverter de modo que se aponte as brechas nas pretensões acusatórias. O que ocorrerá é o desenho retrospectivo da conduta do suposto acusado: aliás, o desenho da conduta parece muitas vezes uma foto em panorama, em que apenas o agente entra com o rosto na cena a ser fotografada. Daí que a tomada de decisão é um mecanismo manifestamente visual, uma vez que se trata de uma narrativa escrita, que se acudirá de representações mentais na tentativa de se investigar sua probabilidade ou não.

O que se passou com o acusado e a vítima desde a conduta criminalizada deve compor os trunfos narrativos dos jogadores de acusação/defesa (confira aqui). Em relação ao acusado, a dimensão profissional, ou seja, formação, profissão, reputação e colegas de trabalho influenciam na credibilidade da imputação e de sua versão, assim como sua condição familiar, sem ser piegas, mas demonstrando o entorno social em que se verificou a conduta imputada, justamente para tentar situar o julgador no seu lugar (se estivesse no lugar dele o que teria feito, considerando as circunstâncias pessoais?). Além disso, no ambiente privado, cabe situar quais as motivações e necessidades relativas aos fatos discutidos nos autos.

Um dos caminhos é situar os obstáculos que o acusado teve que superar e a motivação do ato, dado que poderão ser consideradas para ambos os lados (acusação e defesa), conforme a estratégia. O silêncio, ao contrário do senso comum, torna-se um vazio a ser preenchido[3] por imagens. Não se pode confundir vazio com nada. A defesa cai muitas vezes na armadilha cognitiva de que o silêncio auxilia a compreensão, embora se saiba que será preciso dar sentido à narrativa, e os fragmentos precisam ser encadeados. Daí os riscos de operar com o silêncio. O silêncio, afinal, pode ser preenchido com o sentido da acusação, numa teia que no plano externo, do tabuleiro subjetivo, da interação, é tão contrário ao acusado, operando no senso comum, nas denominadas every day theories (Baratta[4]) como aquele que se permitiu o prazer do crime, esse prazer que, via de regra, recalca-se, deve-se recalcar em nome da civilização (Freud[5]). Daí o peso simbólico daquele que não se conteve, que leva então sobre si todos os impulsos daqueles que operam com o sistema criminal — essa interação psicológica não pode ser olvidada, e dela, salvo muita análise, é difícil fugir dada a força do inconsciente[6]. Esse, aliás, é o palco da mentalidade inquisitiva, vide as confissões da rainha Isabel a Católica a Torquemada, o inquisidor.

Assim, nos aspectos externos, que terão relevância na dimensão do tabuleiro subjetivo do jogo processual, a ação será um engate social do acusado, e o julgamento passa por sua situação no tempo e no espaço, com os contornos emocionais que não são dados, e sim construídos discursivamente. Se nada é dito, o silêncio é preenchido pelo senso-comum, e as imagens mentais são transportadas em geral para motivações típicas dos compêndios acerca de autores de condutas criminais.

Ser capaz de construir os dilemas do acusado e da vítima é um ganho argumentativo, demonstrando as motivações, necessidades, finalidades e sentido da ação julgada. O julgamento, por sua vez, está para além do campo exclusivamente interno, intra-autos, e normativo. Exige sempre uma tomada de posição sobre a relevância, importância e coerência com seu modo de vida. Enfim, coordenar o discurso é para quem sabe como se produz convicção no processo penal, com a capacidade de informar de modo claro e sedutor o encadeamento de situações sociais e emocionais dos protagonistas (acusado e vítima, se houver), no momento em que a ação/omissão é tomada.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[2] LOPES JR, Aury. Direito Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2017.
[3] ORLANDI, Eni. As formas do silêncio. Campinas: Unicamp, 2007, p. 12: Há um sentido no silêncio. O silêncio foi relegado a uma posição secundária, como excrescência, como o ‘resto’ da linguagem. Nosso trabalho o erige em fator essencial como condição do significar”.
[4] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 177: “O insuficiente conhecimento e capacidade de penetração no mundo do acusado, por parte do juiz, acaba por desfavorecer os indivíduos provenientes dos estratos inferiores da população, haja vista a ação exercida por estereótipos e preconceitos, mas também pela exercida por uma série das chamadas ‘teorias de todos os dias’, que o juiz tende a aplicar na construção da verdade judicial”.
[5] FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização. Trad. Jayme Salomão. In: Obras psicológicas completas. São Paulo: Imago, 1996, p. 73-148, v. XXI.
[6] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1998, p. 139-140. Ver também: CASARA, Rubens R.R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. DIVAN, Gabriel. Decisão Judicial nos crimes sexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010; MARCOS DA SILVA, Cyro. Entre autos e mundos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003; MELCHIOR, Antonio Pedro. O juiz e a prova. Curitiba: Juruá, 2013; AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. O Ato de Decisão Judicial: uma irracionalidade disfarçada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Direito e Psicanálise. Florianópolis: Empório do Direito, 2016; SILVA, Cyro Marcos. Meritíssimo por que tantos méritos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016; BRAGA, Júlio Cézar de Oliveira. Abandono afetivo: do Direito à Psicanálise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014; BITTENCOURT, Elisabeth. Rumores internos…: Entre o mal-estar, a Psicanálise e o Direito. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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