Opinião

Supremo Tribunal Federal errou ao proibir greve de policiais

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13 de abril de 2017, 6h38

O Supremo Tribunal Federal, como amplamente divulgado, decidiu, no último dia 5 de abril, pela inconstitucionalidade da greve dos servidores das forças de segurança, incluídos os policiais civis e federais.

Tentaremos demonstrar que o entendimento viola claramente as lições anteriores sobre a diferenciação entre analogia e silêncio eloquente em julgados do próprio Supremo e da doutrina.

Por força do artigo 42, IV, §3º da Constituição Federal, a greve e a sindicalização são vedadas aos membros das policias militares e do Corpo de Bombeiros. Contudo, de forma que nos parece claramente equivocada sob todos os aspectos, a nossa corte suprema já vinha manifestando entendimento de que, por analogia, aos policiais civis e federais são aplicáveis as mesmas regras dos militares. Neste sentido, encontramos os seguintes julgados anteriores do STF:

RECLAMAÇÃO. SERVIDOR PÚBLICO. POLICIAIS CIVIS. DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. SERVIÇOS OU ATIVIDADES PÚBLICAS ESSENCIAIS. COMPETÊNCIA PARA CONHECER E JULGAR O DISSÍDIO. ARTIGO 114, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIREITO DE GREVE. ARTIGO 37, INCISO VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. LEI N. 7.783/89. INAPLICABILIDADE AOS SERVIDORES PÚBLICOS. DIREITO NÃO ABSOLUTO. RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO DE GREVE EM RAZÃO DA ÍNDOLE DE DETERMINADAS ATIVIDADES PÚBLICAS. AMPLITUDE DA DECISÃO PROFERIDA NO JULGAMENTO DO MANDADO DE INJUNÇÃO N. 712. ART. 142, § 3º, INCISO IV, D CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. AFRONTA AO DECIDIDO NA ADI 3.395. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA DIRIMIR CONFLITOS ENTRE SERVIDORES PÚBLICOS E ENTES DA ADMINISTRAÇÃO ÀS QUAIS ESTÃO VINCULADOS. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MI n. 712, afirmou entendimento no sentido de que a Lei n. 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve dos trabalhadores em geral, é ato normativo de início inaplicável aos servidores públicos civis, mas ao Poder Judiciário dar concreção ao artigo 37, inciso VII, da Constituição do Brasil, suprindo omissões do Poder Legislativo. (…)

Os servidores públicos são, seguramente, titulares do direito de greve. Essa é a regra. Ocorre, contudo, que entre os serviços públicos há alguns que a coesão social impõe sejam prestados plenamente, em sua totalidade. Atividades das quais dependam a manutenção da ordem pública e a segurança pública, a administração da Justiça — onde as carreiras de Estado, cujos membros exercem atividades indelegáveis, inclusive as de exação tributária — e a saúde pública não estão inseridos no elenco dos servidores alcançados por esse direito. Serviços públicos desenvolvidos por grupos armados: as atividades desenvolvidas pela polícia civil são análogas, para esse efeito, às dos militares, em relação aos quais a Constituição expressamente proíbe a greve [art. 142, § 3º, IV]. (…)

(Rcl 6568, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Ple.+- no, julgado em 21/05/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 EMENT VOL-02375-02 PP-00736)

AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE INJUNÇÃO. 2. OMISSÃO LEGISLATIVA DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE POR FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS CIVIS. APLICAÇÃO DO REGIME DOS TRABALHADORES EM GERAL. PRECEDENTES. 3. AS ATIVIDADES EXERCIDAS POR POLICIAIS CIVIS CONSTITUEM SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS DESENVOLVIDOS POR GRUPOS ARMADOS, CONSIDERADAS, PARA ESSE EFEITO, ANÁLOGAS ÀS DOS MILITARES. AUSÊNCIA DE DIREITO SUBJETIVO À GREVE. PRECEDENTES. 4. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (MI 774 AgR, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 28/05/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-125 DIVULG 27-06-2014 PUBLIC 01-07-2014)

Como demonstraremos adiante, a interpretação que equipara os policiais militares aos policiais civis, para efeitos de se proibir a greve, está equivocada. O silêncio do legislador originário ao dispor sobre o tema em relação aos policiais civis e federais foi claramente intencional, justamente por estes não terem tratamento constitucional igual ao dos militares. Esta é hipótese de silêncio eloquente.

Diante de cenário cada vez mais complexo de organização social, ainda que se procure prever e discorrer sobre todas as situações, sempre haverá a hipótese de situação não regulada. É a chamada lacuna, para a qual é necessária a integração que pode ocorrer com base na analogia, que difere em muito do silêncio eloquente:

“(…) é preciso distinguir omissão de lacuna e de silêncio eloquente. Silêncio eloquente é quando você, ao não dizer, está se manifestando. Lacuna é quando você não cuidou de uma matéria. E omissão é quando você não cuidou tendo o dever de cuidar.” (BARROSO, Luis. Conversas Acadêmicas: Os Constitucionalistas, 24/5/2010)

Ao tratar da interpretação de normas constitucionais, ensina Paulo Gustavo Branco, na obra em coautoria com Gilmar Mendes:

“Outros casos há, porém, em que o problema sob a análise do intérprete não encontra subsunção em uma disposição específica do Texto Constitucional, mas não se flagra um propósito do constituinte de relegar o tema ao jogo político ordinário da legislação infraconstitucional, porque a matéria, à parte o tópico em que ocorre a omissão, é objeto de um tratamento direto e minucioso do constituinte. Nessas hipóteses, o intérprete pode ver-se convencido de que a hipótese concreta examinada pelo aplicador não foi inserida pelo constituinte no âmbito de certa regulação, porque o constituinte não quis atribuir ao caso a mesma consequência que ligou às hipóteses similares de que tratou explicitamente. A omissão da regulação nesse âmbito, terá sido o resultado do objetivo consciente de excluir o tema da disciplina estatuída. Fala-se, em situações tais, que houve um ‘silêncio eloquente’ do constituinte, que obsta a extensão da norma existente para a situação não regulada explicitamente. (MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Tonet. Curso de Direito Constitucional. p 88-89 9ª Ed. São Paulo. Saraiva,2014)

Deste modo, portanto, para que se possa cogitar do uso da analogia — sabidamente forma de integração do ordenamento jurídico — ou até mesmo de interpretação extensiva, é imprescindível indagar antes se a hipótese é efetivamente de lacuna ou de silêncio eloquente.

A suposta lacuna a ser integrada na situação em estudo diria respeito a uma exceção, não a uma permissão, já que a greve é, de modo expresso, permitida aos servidores civis. Haveria, então, lacuna ou silêncio eloquente na ausência de vedação aos policiais não militares?

O melhor critério para tal diagnóstico — efetiva lacuna ou não — é investigar se há alguma razão para o tratamento diferenciado possivelmente dado àquela ou situação não tratada de forma expressa. Se há justificativa para o tratamento diferenciado, temos silêncio eloquente. Caso não seja possível identificar fundamento que justifique a diversidade, seria o caso da utilização da analogia, de modo a suprir a lacuna. O STF já destacou a distinção em decisões variadas, aplicando, inclusive, o critério aqui mencionado:

EMENTA: Recurso em Mandado de Segurança. 2. Matéria eleitoral. 3. Organização do Poder Judiciário. Preenchimento de vaga de juiz substituto da classe dos advogados. 4. Regra geral. Art. 94, CF. Prazo de 10 (dez) anos de exercício da atividade profissional. 5. Tribunal Regional Eleitoral. Art. 120, § 1o, III, CF. Encaminhamento de Lista Tríplice. 6. A Constituição silenciou-se, tão-somente, em relação aos advogados indicados para a Justiça Eleitoral. 7. Nada há, porém, no âmbito dessa justiça, que possa justificar disciplina diferente na espécie. 8. Omissão constitucional que não se converte em "silêncio eloqüente" 9. Recurso a que se nega provimento
(RMS 24334, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 31/05/2005, DJ 26-08-2005 PP-00066 EMENT VOL-02202-02 PP-00245 RTJ VOL-00195-02 PP-00456 LEXSTF v. 27, n. 321, 2005, p. 178-202)

Assim, conclui-se que o silêncio eloquente é típico de lacunas conscientes, voluntárias ou intencionais, não podendo ser confundido como desleixo ou falha do legislador que necessite ser integrada ou corrigida pela atividade interpretativa.

Neste momento, o ponto passa a ser a verificação quanto a haver ou não fundamentos para tratamento diferenciado para policiais civis/federais e militares na Constituição Federal, aptos a indicar que a ausência de vedação à greve para aqueles é hipótese de silêncio eloquente.

A resposta positiva se impõe. Se a Constituição tratou de modo desigual o direito à sindicalização, parece evidente que também o fez quanto à possibilidade de paralisação das atividades. Mas qual a razão de fundo para a diferenciação? As atribuições de cada carreira ligada à segurança pública.

Aos militares cabe o policiamento ostensivo, bem como a preservação da ordem pública, tarefas que não são exercidas de forma direta pelos policiais civis e federais.

Ademais, são os policiais militares, bem como os bombeiros, forças auxiliares e de reserva do Exército, o que também não ocorre com as forças policiais civis que, inclusive, possuem regimes jurídico, disciplinar e previdenciário diferenciados e até mesmo legislação penal específica, em relação aos militares.

Fica bastante claro que os fundamentos para a vedação expressa ao direito de greve para os militares dizem respeito às suas funções precípuas de policiamento ostensivo e de forças auxiliares do Exército, que, realmente, parecem incompatíveis com paralisação. O mesmo não se pode dizer de paralisações realizadas por membros das forças policiais civis.

Havendo tratamento diferenciado que indique e fundamente outras diferenças ne normatização, a conclusão necessária é que a ausência de vedação é verdadeiro silêncio eloquente, que deve ser respeitado pelo intérprete. O direito de greve concedido pela Constituição Federal a todos os servidores civis é uma regra que materializa uma ponderação de princípios realizada pelo constituinte originário.

Tratando especificamente das funções das “regras”, entendidas como tipo de normas jurídicas, Huberto Avila, em uma das obras mais respeitadas sobre o tema, deixa evidente que muitas vezes sua função é preestabelecer opções e valorações, limitando a atuação do intérprete:

“Em primeiro lugar, como as regras tem a função de pré-decidir o meio de exercício do poder, elas afastam a incerteza que surgiria não tivesse sido feita a escolha. É justamente para evitar o surgimento de um conflito moral e para afastar a incerteza decorrente da falta de resolução desse mesmo conflito que o Poder Legislativo opta pela edição de uma regra. Nesse sentido, Alexander e Sherwin: ‘A finalidade de se ter a lei promulgando regras para estabelecer questões sobre como os princípios morais se aplicam em casos concretos reside na eliminação da controvérsia e da incerteza, e dos custos morais a elas associados.’

Em segundo lugar, além de afastar a controvérsia e a incerteza, a opção pelas regras tem a finalidade de eliminar ou reduzir a arbitrariedade que pode potencialmente surgir no caso de aplicação direta de valores morais.” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10ª Ed. São Paulo, Malheiros Editores, 2009.)

É o que ocorre no caso em tela, no qual o tratamento diferenciado entre policiais civil e militares, no que diz respeito à greve e à sindicalização, é opção do constituinte colocada em regras que excepcionam os princípios que eventualmente incidam sobre a matéria, já fazendo, de antemão, a valoração de eventuais conflitos, com a finalidade de limitar a atividade interpretativa na aplicação da norma.

O constituinte originário deixou ao legislador infraconstitucional o direito de regular e até de impor limites à greve dos servidores público, podendo, por óbvio, criar requisitos diferentes para categorias diversas. O que é vedado, por já ter sido previamente valorado, é a proibição da greve.

Perfeita a fala do ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, ao proferir decisão (Pet 9.460) que enfrentou de forma direta o tema da greve dos policiais federais, deixando clara sua legitimidade, ainda que com restrições:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO DE GREVE. SERVIÇO PÚBLICO. POLÍCIA FEDERAL. ÓRGÃO ESSENCIAL À DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS. CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS. NECESSIDADE DE PONDERAÇÃO. ORIENTAÇÃO DO STF. MI 708/DF.

1. É indiscutível a relevância jurídico-política do direito de greve dos trabalhadores, alçado pela Constituição da República à categoria de direito fundamental social ou de segunda geração (art. 9°), conforme clássica definição doutrinária.

2. A disciplina específica das funções da Polícia Federal é encontrada, na Constituição da República, em seu Título V, que versa sobre a defesa do Estado e das instituições democráticas. Daí se depreende a centralidade dessa instituição para a preservação da ordem jurídica inaugurada pelo constituinte de 1988.

3. Indubitável a legitimidade do pleito dos policiais federais por vencimentos adequados às essenciais funções exercidas, o que se afigura imprescindível para garantir a atratividade da carreira e uma bem-sucedida política de recrutamento, de modo a selecionar os melhores candidatos. Em outras palavras, mais do que um pleito corporativo, é do interesse da própria sociedade e do Estado brasileiro que seus policiais federais tenham remuneração satisfatória.

4. Entretanto, o caso concreto apresenta sério conflito entre o direito de greve pelo servidor público e o direito social à fruição de serviços públicos adequados e contínuos, cuja solução exige a aplicação de juízo de ponderação.

5. No MI 708/DF, o STF reconheceu que, em razão das particularidades do caso concreto e dos serviços essenciais em questão, é possível fixar regime mais rígido que o imposto pelos arts. 9° e 11 da Lei 7.783/1989, bem como conceder Medida Cautelar para a garantia de percentual mínimo de servidores em atividade, "ou mesmo a proibição de qualquer tipo de paralisação", o que,evidentemente, requer situação de excepcionalíssima gravidade, sob pena de completo esvaziamento de tão relevante direito constitucional.

Como se vê, o STJ, em mais de uma situação, não considerou ilegais as paralisações realizadas pelos policiais federais mas efetuou juízos de ponderação dentro do limites impostos pela Constituição, ou seja, sem proibir os movimentos paredistas.

É precisa também a fala do ministro Herman Benjamin ao ressaltar que a greve dos policiais federais é também de interesse público, por implicar necessariamente discussões que melhorem as condições de trabalho da carreira.

Vedar os movimentos grevistas de forma absoluta redundará na fragilidade das carreiras, que perderão a mais importante ferramenta de luta contra eventual desmonte que se pretenda levar a cabo por negligência ou até mesmo por má-intenção. Tomara o STF perceba rapidamente o equívoco cometido.

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