Garantias do Consumo

Confiança alimentar e nutricional: cuidar e legitimar

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

12 de abril de 2017, 8h00

O descortinar midiático, mesmo que atabalhoado, quanto às investigações e demais procedimentos persecutórios desenvolvidos em face de alguns frigoríficos no país, é, por excelência, causa subjacente otimizada e oportuna para a reflexão jurídica do complexo tema da cadeia de fornecimento de alimentos, em especial os derivados da exploração animal, adquiridos e servidos no mercado interno e internacional.

Vale, entretanto, anotar propedeuticamente que a assunção de posição excessivamente favorável e exclusiva aos interesses econômicos e setoriais em detrimento a direitos outrora conquistados (cultural e dialogicamente) respeitantes ao consumidor é claro desvio de perspectiva funcional do sistema jurídico, senão o pior: comportamento irresponsável e omissivo tendente ao retrocesso de direito designado constitucionalmente para a promoção de agente vulnerável no mercado[1].

A análise que se propõe, tendente à hermenêutica emancipatória[2], tem por escopo fixar concretude à confiança alimentar com destaque aos seguintes eixos valorativos: a) fornecimento de alimentos, além de nutritivos, não ofensivos à vida, saúde e segurança do consumidor; b) fabricação, distribuição, comercialização de produtos, inclusive mediante políticas de incentivo e fomento, por exploração e criação de animais desprovidas de maus-tratos e crueldade e sem causar danos ou lesão ao meio ambiente, abrindo-se espaço ao consumo sustentável; c) vigilância das atividades empresariais atuantes no setor alimentício comprometidas às exigências compliance, assim como finalidade estatal fundada na eticidade da boa governança.

A base do primeiro tópico vincula-se ao conteúdo do fundamento da dignidade da pessoa humana. Evidente que referida "fonte fundante" é tratada com sérias reservas em instantes doutrinários considerando a inerente vagueza semântica[3] ou abandonada quando se perscruta o direito unicamente pela teoria do conhecimento (episteme), separando-o, indevidamente, da filosofia não dogmática[4]. Contudo, vale o (re)aprendizado "categórico" do pensamento kantiano pelo qual a pessoa deva ser tratada como fim em si mesma, com respeito e reconhecimento ao outro e atuação de maneira tanto exemplar que possa ser categorizada como lei universal[5].

Nesse sentido, destaca-se como contribuição contextualizante da dignidade da pessoa humana, provida de larga materialidade jurídica, a hipótese doutrinária que a singulariza a partir das vedações de violação à igualdade, liberdade, solidariedade e integridade psicofísica[6]. Ora, tanto a alimentação (ato voluntário de ingestão de alimentos) quanto a nutrição (aproveitamento corporal humano por processos fisiológicos dos compostos químicos contidos nos alimentos ingeridos) estão umbilicalmente ligadas à vida digna do ser humano, não só em razão da escolha do alimento e tipo de alimentação (liberdade), senão considerando: o acesso, inclusive mediante desenvolvimento regional aos grupos vulneráveis (igualdade); a assistência, corresponsabilidade e cooperação (solidariedade)[7]; e a intangibilidade da vida, saúde e segurança (integridade psicofísica). Além dessa perspectiva acadêmica, essas premissas também se fazem dispostas, mesmo que por maneira diversa, nos documentos internacionais e dispositivos legislativos internos.

Cabe observar, por conseguinte, que no âmbito global, sem prejuízo de demais referências[8], o Codex Alimentarius FAO/OMS, a despeito de soft law, oferece subsídios indispensáveis para proteção da saúde do consumidor[9]. Valendo-se de metodologia uniforme na distribuição de matérias, a partir de diretrizes gerais afunilando até aos assuntos mais específicos (como tipos de alimentos), em referido documento ganha ênfase as orientações concernentes à higiene dos alimentos, ao tratamento dos resíduos pesticidas e às premissas quanto aos medicamentos veterinários. Não há dúvidas de que, sob essa ótica, o exportador que não dispensa cuidados ao consumidor residente no estrangeiro por certo poderá restar acionado junto ao Órgão de Resolução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio[10].

No direito interno e sem embargo de outras legislações, podem ser revelados quatro sentidos normativos (dialógicos e coordenados) a respeito da alimentação: a) trata-se de direito fundamental social, ligado ao mínimo existencial (CF, artigo 6º)[11]; b) amolda-se como direito básico do consumidor — leia-se direito da personalidade — ensejador do dever de qualidade-segurança[12], já que o produto (cárneo, conforme a questão aqui desenvolvida) não pode acarretar danos à vida, saúde e segurança (independentemente da ingestão)[13]; c) compõe sistema estratégico de segurança enformado e informado pelos princípios da universalidade, respeito à dignidade, transparência e participação social (Lei Federal 11.346/06); d) integra a cadeia de ações governamentais de vigilância sanitária, nutricional e orientação alimentar na estrutura funcional do Serviço Único de Saúde (Lei Federal 8.080/90, artigo 6º, inciso I, alínea a e inciso IV).

Essa vertente de intercomunicação humanista entre Direito Internacional e Direito interno é capaz de demonstrar quantum satis que para o consumidor o alimento não detém apenas a função de nutrir, mas notadamente evitar o rebaixamento da qualidade de vida, garantindo o livre desenvolvimento da personalidade, inclusive com o apreço de novos princípios jurídicos (prevenção e precaução)[14]. Mata-se a fome sem matar quem se alimenta.

O segundo ponto liga-se especialmente à produção de derivados da carne com explícitas técnicas de respeito e cuidado aos animais e ao meio ambiente. Muito embora seja controversa a positivação de direitos diretamente aos animais (a despeito da Declaração Universal dos Direitos dos Animais e o Tratado de Amsterdã Relativo ao Bem-Estar Animal, esse último no âmbito da União Europeia)[15], não se perde de vista a construção de necessário estatuto moral[16], retirando-os da categoria de "coisas"[17] para projetá-los no lugar devido (o palco daqueles que contribuem e contribuíram para a prosperidade da civilidade). Por isso, o debate sobre a atribuição de direitos não suprime o dever fundamental de proteção aos animais[18], tocados não apenas ao poder público, senão a todas às pessoas, consoante a legalidade constitucional (CF, artigo 225, parágrafo 1º, inciso VI). Salvante, pois, a respeitosa opinião dos abolicionistas que não admitem qualquer exploração animal pelo comércio[19], forçoso é, em hipótese diversa, aprimorar a tecnologia de criação de rebanhos, adotando-se o abate humanitário[20] e evitando o sofrimento e maus tratos aos animais. Cumpre aos "racionais" servi-los em bem-estar[21].

Idênticos fundamentos se dirigem aos efeitos da produção de alimentos cárneos sobre o meio ambiente. Não faz sentido a extensão de pastos e o alargamento de propriedades rurais com lesividade aos bens fundamentais[22] (dentre eles os recursos ecológicos) vitais não só para o futuro do gênero humano, mas para todas espécies naturais, em parâmetro ecocentrista[23].

Em último ponto, dois aspectos notáveis. As empresas devem desenvolver as atividades de manejo de alimentos com fundamento nos princípios e regras que são adotados no sistema jurídico independentemente de qualquer admoestação sancionatória (enforcement), cumprindo voluntariamente a carga de obrigações de que é destinatária, sem subterfúgios e desvios para facilitação lucrativa (compliance)[24]. Isso não é dever apenas do grande empresário-frigorífico, mas de todos os fornecedores que atuam na cadeia de fornecimento, inclusive do açougueiro que comercializa produtos cárneos e também fabrica diversos tipos de alimentos no seu estabelecimento (linguiças, quibes, carnes temperadas etc.), o que modifica o tipo de atribuição de responsabilidade (CDC, artigo 12).  

Igualmente, cumpre ao poder público, em todas as esferas, ser fiel ao ordenamento jurídico. As instituições públicas agem isoladamente, sem compromissos mútuos nas respectivas finalidades administrativas, o que permite o flerte de alguns agentes do Estado com imensas irregularidades no setor. Não se vê iter procedimental longilíneo e contínuo de fiscalização desde o apascentamento de reses (tipos de capim, suplementos, medicamentos, hormônios etc.) até a entrega das carnes em supermercados e açougues. A presença de eventual fiscal do ministério competente para vistorias (Mapa) dentro do frigorífico é simbólica, porque afasta verificações de outras instâncias e dá ensejo a laços comensais de aproximação entre agente e empresário. É o que se diz, não sem razão: “Quem fiscaliza o fiscal?”[25].

As fiscalizações devem estar sustentadas em preceitos da "boa governança", tendo por base a necessidade de promoção dos direitos humanos e a prestação de contas geral aos administrados (accountability) quanto aos resultados obtidos em suas investidas de caráter permanente. Portanto, não há dúvidas de que o Estado deve atuar para melhorar os padrões de qualidade e segurança (CDC, artigo 4º, inciso II).

Confiança alimentar é área de domínio jurídico superior à segurança alimentar, isso porque pressupõe não apenas as verificações pertinentes aos alimentos, senão a atuação sistêmica de todos elementos (instituições, normas, atores, redes, sustentabilidade etc.) no compartilhamento das informações e transparência setorial, a fim de garantir a legítima expectativa quanto ao produto: nutritivo, indene de defeitos ou vícios, oriundo de tratamento respeitoso ao meio ambiente e animais; e, por fim, explorado por fornecedores comprometidos com os valores constitucionais numa democracia republicana substancial.

Enfim, para esse mercado (e não só ele) vale a releitura de Descartes: “Eu penso, logo você existe; você pensa, logo eu existo; pensamos, todos podemos existir”[26].


[1] LORENZETTI, Ricardo Luís. Teoria da decisão judicial. Trad. Bruno Miragem. São Paulo: Ed. RT, 2009, p. 103. Os chamados direitos que não gozam da aceitação majoritária e que são expressão da minoria ou concepção pluralista da sociedade.
[2] FACHIN, Luiz Edson. Aspectos de alguns pressupostos histórico-filosóficos hermenêuticos para o contemporâneo direito civil brasileiro: elementos constitucionais para uma reflexão críticaRevista Tribunal Superior do Trabalho 77/187, Brasília: TST, 2011.
[3] LEAL, Fernando. Seis objeções ao direito civil constitucional. In: Direito privado em perspectiva: teoria, dogmática e economia. Fernando Leal (org.) Antônio José Maristrello Porto [et al.]. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 110. Igualando-a à vontade como fonte do direito privado no século XIX: “ela está em todo lugar, mas não se sabe o que ela significa; ela serve para explicar tudo, mas é incapaz de orientar efetivamente processos de interpretação e aplicação do direito privado”.
[4] ADEODATO, João Maurício, Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 44. Excelente a abordagem pelo autor sobre a diferença entre dogmática e dogmatismo.
[5] KANT, Imannuel. Fundamentação da metafisica dos costumes, Lisboa, 1995.
[6] MORAES, Maria Celina Bodin de Moraes. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 130.
[7] BOURGEOIS, Léon. L’idée solidarité et ses consequences sociales. Essai d’une philosophie de la solidarité: conferences et discussions2. ed. Paris: Félix Alcan, 1907, p. 31. Explica: “l’homme n’est suelement une intelligence, qui par la science s’explique la nature; il est en même temps une conscience”.
[8] Entre elas: Food and Drugs Administration (FDA) e a Autoridade Europeia para Segurança de Alimentos (Aesa).
[9] No artigo 1º está disposto: “Protecting the health of the consumers and ensuring fair practices in the food trade”.
[10] GRASSI NETO, Roberto. Da segurança alimentar: da produção agrária à proteção do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 88.
[11] SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e processo: o direito à proteção e promoção à saúde entre a tutela individual e transindividual. In; Revista de processo v. 199. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 13-40.
[12] MARQUES, Cláudia Lima, BENJAMIN, Antônio Hermann e MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed. São Paulo: RT, p. 245.
[13] REsp 1.328.916/RJ, RECURSO ESPECIAL. 1. Ação de reparação por danos materiais e compensação por danos morais, ajuizada em 26.11.2009. Recurso especial concluso ao Gabinete em 26.04.2012. 2. Discussão relativa ao dever do fabricante de indenizar consumidor que adquire embalagem de pão de forma e encontra no interior de uma das fatias corpo estranho compatível com fio de espessura capilar. 3. A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho, expondo o consumidor ao risco concreto de lesão à sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão completa de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral, dada a ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. 4. Hipótese em que se caracteriza defeito do produto (art. 12, CDC), o qual expõe o consumidor a risco concreto de dano à sua saúde e segurança, em clara infringência ao dever legal dirigido ao fornecedor, previsto no art. 8º do CDC, ensejando a reparação por danos patrimoniais e morais (art. 6º do CDC). 5. Recurso especial provido.
[14] GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção ambiental. Coimbra, 2007.
[15] ARAÚJO, FERNANDO. A Hora dos Direitos dos Animais, Coimbra, Almedina, 2003.
[16] SINGER, Peter. Libertação Animal. Porto, Via Óptima, 2000.
[17] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Os quatro evangelhos e o Código Civil. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 104. São Paulo. Jan/Dez 2009, p. 143. Após dissertar sobre a correta situação dos animais no plano do direito civil, leciona com profundidade: “Finalmente, cumpre lembrar que uma das imagens de Jesus com animais, bem enraizada no mundo católico, é a do menino Jesus no presépio, tendo de cada lado o boi e o burrinho […] A meu ver, a força da imagem do presépio resulta de sua profunda correspondência ao amor à vida”.
[18] NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998.
[19] FRANCIONE, Gary L. e GARNER, Robert. The animal rights debate: abolition or regulation? (Critical perspectives on animal: theory, culture, science. New York: Columbia University, 2010.
[20] No Brasil o abate humanitário está restrito aos experimentos científicos, nos termos da Lei Federal nº 11.794/08. Já na Europa, desde 1993, vige a Directiva 93/119/CE relativa à protecção dos animais no abate e/ou occisão.
[21] GRANDIM, Temple e Johnson Catherine. O bem-estar dos animais: proposta de uma vida melhor para todos os bichos. Trad. Ângela Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
[22] FERRAJOLI, Luigi. Por uma carta de bens fundamentais. Revista Sequência. v. 60. Florianópolis: UFSC, 2010, p. 48.
[23] NAIM-Gesbert, Eric. Les dimensions scientifiques du droit del’evironnment: contribuition à l’étude dês rappoorts de la science et du droit. Bruxelles: Bruylant, VUB PRESS, 1999.
[24] BENJAMIN, Antônio Herman. O estado teatral e a implementação do direito ambiental. Disponível em http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/30604/Estado_Teatral_Implementa%C3%A7%C3%A3o.pdf.
[25] TEPEDINO, Gustavo. Quem fiscaliza o fiscal? In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 489-491.
[26] BERTEN, André. Modernidade e desencantamento: Nietzsche, Weber e Foucault. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 15.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça em Minas Gerais e diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Tem doutorado e mestrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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