Opinião

Única função do governo tem sido atacar os direitos sociais

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9 de abril de 2017, 17h18

A aprovação do PL 4.302, e sua transformação na Lei 13.429/2017, sancionada por Michel Temer, e publicada em edição extra, no fim da sexta-feira, 31 de março, exatamente 47 anos depois do golpe de 1964, era o que faltava para reconhecermos a ilegitimidade desse governo que assume o poder através de um golpe e não faz outra coisa, do que gastar todas as suas energias no desmanche do Estado Social. Pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), melhor representante do capital que Temer busca desesperadamente agradar, revela que o percentual dos que avaliam o governo como ruim ou péssimo subiu de 46% para 55%. Apenas 17% das pessoas entrevistadas confiam no governo, e 20% aprova o que está sendo feito. 

Considerando quem encomenda e divulga a pesquisa, não precisa tanto para percebermos que a ilegitimidade do atual governo, para além do seu vício de origem, já determina sua insustentabilidade. Por muito menos, Dilma foi crucificada pela mídia que insistentemente divulgava seus índices de aprovação e exortava a uma “solução final” para seu mandato. Dilma cometeu muitos erros. O PT também. Se chegamos ao ponto onde estamos, especialmente no que tange à reforma da previdência, é em larga medida porque esse partido não teve competência, vontade ou condições de alterar a política de destruição das garantias sociais iniciada por Fernando Henrique Cardoso.

Ocorre que o problema não é mais o PT. É hora de reconhecermos que o golpe de 2016 não está trazendo efeitos positivos, sequer sob a perspectiva do próprio capital. E que não é possível seguir compactuando com um governo cuja única função tem sido atacar, impiedosamente, os direitos sociais. 

O PL 4302 é de 1998, foi aprovado pelo Senado em 2002, por uma composição diversa da atual. Tem, portanto, vício de origem. Seu desengavetamento e sua aprovação a toque de caixa de seu em razão da dificuldade que o governo vinha enfrentando para aprovar o PLC 30. Esse outro projeto, de 2004, foi amplamente discutido em audiências públicas por todo o país, e rejeitado pela maioria absoluta da população de que dele tomou conhecimento. Foi incluído e retirado de pauta várias vezes. Para driblar a resistência do Senado, o governo articulou a aprovação, diretamente pela Câmara, do PL 4302. Um golpe, dentro do golpe. 

Terceirização é rebaixamento das condições de trabalho; é incentivo ao trabalho infantil ou em condições de escravidão. O material empírico que demonstra isso renova-se a cada dia. Em fevereiro do ano passado, a prestadora de serviços Higilimp desapareceu sem pagar salários, vale refeição e vale transporte atrasados há meses. Em outubro, empregados terceirizados que trabalham no município de Jequié, na Bahia, contratados através da empresa Terceira Visão, protestaram contra o atraso de mais sete meses no pagamento dos salários. Em Porto Alegre, mais da metade das demandas trabalhistas envolve terceirização e na grande maioria delas a prestadora de serviços já desapareceu ou comparece à audiência apenas para dizer que encerrou suas atividades ou não tem patrimônio para adimplir seus débitos.

Os trabalhadores, desesperados, se veem diante de grandes empresas, como instituições financeiras ou companhias telefônicas, que se negam a realizar acordos ou efetuar pagamento espontâneo dos salários não adimplidos, ao argumento de que não tem responsabilidade. Enquanto isso, essas pessoas de carne e osso seguem sua vida na miséria, fazendo empréstimos nessas mesmas instituições financeiras para as quais prestaram serviço, atrasando a conta de telefone e sujeitando-se aos juros abusivos que daí decorrem; pedindo dinheiro a amigos e parentes. Perdem seus empregos e nada recebem. Não recebem o valor do trabalho que realizaram, mas também lhes é negada a própria condição de trabalhador. A frase “eu nem sei se ele trabalhou ou não em favor da minha empresa”, repetida por prepostos de tomadoras dos serviços de limpeza, vigilância, TI, telemarketing, vendas, entregas, e tantas outras atividades, releva a face mais cruel da terceirização. O terceirizado, embora muitas vezes sequer conheça a sede da prestadora; embora tenha trabalhado, por meses ou anos, dentro da sede de uma ou mais tomadoras, não tem sequer o direito ao reconhecimento de que trabalhou, de que seu trabalho tornou possível aquele empreendimento, de que foi ele, e mais ninguém, quem levantou pela manhã, tomou um ou dois ônibus, colocou o uniforme e limpou, atendeu, vendeu, protegeu o patrimônio daquela empresa.

Chancelar simbolicamente o rebaixamento das condições de trabalho, de produção, de consumo e de convívio humano, através da Lei 13.429 é negar o projeto de sociedade contido na Constituição. A lei estimula a realização de contratos mais curtos, aumentando a rotatividade e, portanto, o uso de benefícios sociais como o seguro desemprego. Os acidentes e doenças do trabalho ocorrem com muito mais frequência entre os terceirizados, trazendo consigo consequências sociais e previdenciárias graves. Essas consequências, especialmente a redução da remuneração, tem efeitos diretos sobre o mercado de trabalho, pois a circulação de riqueza depende da existência de sujeitos capazes de consumir e, portanto, bem remunerados. 

A lei abre as portas para a existência de empresas sem empregados, pois permite que toda a força de trabalho necessária à consecução do empreendimento seja contratada por intermédio de terceiros. Essa distância (apenas formal) entre o empregado e o verdadeiro beneficiário da sua força de trabalho, provoca invisibilidade, descomprometimento, e, como consequência, a fragmentação da classe trabalhadora em prejuízo direto à organização sindical. 

O direito do trabalho e, portanto, as relações trabalhistas, foram construídas no tempo pela organização e resistência. Pulverizando os trabalhadores, atrelando cada setor da fábrica a uma empresa prestadora diferente, por exemplo, o capital consegue aniquilar essa “sensação de pertencimento” a uma mesma classe de trabalhadores, porque promove a concorrência interna e, com isso, elimina a possibilidade de resistência coletiva organizada.  É preciso perceber que qualquer redução de direitos sociais implica, em última análise, piora das condições sociais de vida de toda a população, o que significa dar muitos passos atrás em relação ao projeto de sociedade que instituímos com a Constituição de 1988, promover um retrocesso que certamente terá custos históricos que hoje sequer conseguimos projetar integralmente.

Quem perde são os trabalhadores, mas é também a sociedade que, especialmente em caso de terceirização em favor de ente público, acaba pagando a conta. Paga a conta com o aumento do número de benefícios sociais e previdenciários, com a redução do consumo, com a piora na qualidade dos produtos e serviços ofertados, e com a invisibilidade para a qual joga uma parcela significativa da sua população. A lição de Saramago é mais atual do que nunca: quando tratamos pessoas como animais, elas passam a guiar seus atos pelo extinto de sobrevivência, pois nada mais lhes resta de humano a preservar.

A terceirização não gera empregos. Ao contrário, pulveriza a classe trabalhadora, abre flancos para a defesa de “Pjotização”; promove redução de salários e aumento do número de acidentes. Os contratos temporários mais longos retiram do trabalhador a possibilidade de buscar novo posto de trabalho com um mínimo de dignidade (pois suprimido o direito ao aviso prévio). As pequenas e médias empresas não serão beneficiadas com a nova lei. Terão ainda maior dificuldade em competir com grandes empresas, que farão da terceirização (como já fazem) um modo de reduzir custos e promover uma concorrência predatória. A irresponsabilidade de uma reforma trabalhista sem peias, como a que está sendo promovida por Temer, tem efeitos que certamente serão sofridos pelas gerações futuras, que encontrarão um “mercado de trabalho” precarizado. 

Do mesmo modo, a reforma da previdência, cujo objetivo real parece ser a abertura de um novo nicho econômico para as empresas de previdência privada, é assustadoramente cruel com a classe trabalhadora. Aliada aos contratos precários previstos nos projetos em tramitação no Congresso, impedirão concretamente a obtenção da aposentadoria, a cumulação de benefícios, a percepção de auxílio em razão de doença profissional. A reforma acaba com a aposentadoria especial, atingindo especialmente os trabalhadores rurais, os professores, os industriários, os profissionais da saúde. Essa reforma, baseada em mentiras divulgadas por caras propagandas governamentais, não considera o fato de que a Seguridade Social no país é tão superavitária, que 30% dos recursos arrecadados são redirecionados para o pagamento de dívida pública.

Temer não tem compromisso com os brasileiros e brasileiras, nem legitimidade para exercer a presidência da República. É preciso reconhecer seu intuito exclusivo de promover o desmanche das garantias sociais tão duramente conquistadas e convocar imediatamente novas eleições. Apenas assim retomaremos o curso da democracia que perdemos definitivamente com o golpe de 2016. 

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