Concerto de versões

Impedir advogado de orientar clientes é cercear defesa, alertam criminalistas

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8 de abril de 2017, 6h39

Quando mandou soltar o executivo Flávio Godinho, o ministro Gilmar Mendes sugeriu que o Supremo Tribunal Federal discuta se o “concerto de versões” entre investigados, réus e seus advogados sobre fatos em investigação pode ser considerado obstrução à Justiça. Mas criminalistas ouvidos pela ConJur não têm dúvida: proibir que investigados conversem entre si ou consultem advogados para se orientar sobre o que podem ou devem falar a investigadores é o mesmo que criminalizar a defesa.

A decisão de Gilmar Mendes é da quarta-feira (5/4). Nela, o ministro afirma que ainda não dá para dizer que o direito de defesa garante a imputados a prerrogativa de combinar versões. Segundo ele, não há decisão sobre se o parágrafo 1º do artigo 2º da Lei das Organizações Criminosas, que prevê a prisão de quem “impede ou embaraça” investigações, pode ser aplicado a situações do tipo. “Mas parece que se desenha uma posição favorável à aplicabilidade, ao menos em casos de coação ou de tentativa de embaraçar uma postura colaborativa”, conclui o ministro.

Gilmar decidiu num Habeas Corpus impetrado pelo advogado Celso Vilardi. Ele chama atenção para o pedido, pois acredita que será nesse HC que o Supremo definirá se advogados podem orientar seus clientes sobre como se portar num interrogatório. Ele cita outro Habeas Corpus, julgado em 2006, já famoso, que envolveu o deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) e seu filho Flávio (clique aqui para ler o acórdão).

Uma das razões da prisão de Flávio Maluf foi a conversa que ele manteve com outro investigado naquele inquérito, na qual combinaram como explicariam um contrato ao Ministério Público Federal. O autor do HC, o criminalista José Roberto Batochio, afirma no pedido que a acusação criminalizou “um direito garantido constitucionalmente”, de combinar como deveriam se portar diante da investigação — no caso concreto, um investigado dizia ao outro para “só falar em juízo” (clique aqui para ler a inicial).

“O exercício desse direito constitucional agora virou crime? Não se sabia”, escreve Batochio, no HC. O advogado também reclama do fato de seu cliente ter sido procurado pelo delegado da Polícia Federal que tocava o caso. “Conversa do suspeito com a acusação é ‘negociação’; já entre indiciados, co-réus ou com a defesa é coação’! Não é formidável? Parece que uma parte é mais parte que a outra na surrealista e autoritária dialética processual de alguns.”

Precedente
Mas Gilmar, que não participou do julgamento de 2006, afirma que não é possível tratar aquela decisão como precedente. A explicação dele é que a decisão foi tomada por maioria de cinco votos e três deles não entraram no mérito do pedido. Apenas acompanharam o relator, ministro Carlos Velloso.

Velloso, em seu voto, diz que a tese da acusação de que a conversa entre dois advogados pode ser interpretada como aliciamento de um réu por outro esbarra no “direito de os corréus estabelecerem estratégia de defesa”. “Deixemos de lado, entretanto, essa controvérsia”, concluiu o ministro, para registrar no acórdão que “compreende-se no direito de defesa estabelecerem os corréus estratégia de defesa”.

Para o criminalista Alberto Zacharias Toron, a decisão no caso Flávio Maluf deixa claro que “não se pode proibir que corréus conversem, mesmo que seja sobre sua estratégia de defesa”. “Sou de opinião de que não pode proibir os réus de estabelecer suas estratégias. Admitir o contrário cerceia a defesa.”

A fala contundente contra essa a impossibilidade de se combinar a estratégia de defesa foi do ministro Marco Aurélio, no caso Flávio Maluf. “A situação não é excepcional. É excepcionalíssima!”, disse. “A entendermos que, no caso, os acusados não podem estabelecer uma estratégia, como disse da tribuna o Dr. Batochio, ter-se-á de caminhar também para idêntico trato em relação não mais à autodefesa, mas à defesa técnica e, quem sabe, também prender os senhores advogados”, previu.

Mas votou sozinho. Os ministros Nelson Jobim, Sepúlveda Pertence e Ellen Gracie apenas acompanharam Velloso, mas não falaram sobre o fato de a prisão preventiva de Flávio Maluf ter se baseado numa conversa que ele teve com outro investigado no mesmo caso. Jobim só disse que “temos de pensar e meditar muito se quisermos divergir do caro ministro Carlos Velloso”.

Teratologia
Vilardi não vê alternativa a responder “sim” à pergunta se advogados podem orientar seus clientes sobre o que eles devem ou podem falar a investigadores e à Justiça. “É uma questão de liberdade do advogado”, afirma.

O caso de Flávio Godinho vem do Rio de Janeiro e está sob os cuidados do juiz federal Marcelo Bretas, conhecido por suas posições irredutíveis e favoráveis à acusação. No despacho da preventiva, Bretas manda encaminhar os autos à Polícia Federal para que se instaure inquérito para investigar se o advogado presente à reunião que motivou a prisão de Godinho. E justifica a decisão no parágrafo 1º do artigo 2º da Lei das Organizações Criminosas, afirmando que o advogado havia tentado obstruir as investigações.

“É teratológico”, rebate Vilardi. “Se um advogado que conversa com seu cliente e orienta sobre o que ele deve fazer também estiver sob o risco de ser investigado, a segurança jurídica vai pro espaço. É inconcebível.” O criminalista também chama atenção para o silêncio da Ordem dos Advogados do Brasil no caso. “Lamento imensamente que a OAB não esteja verificando o que acontece neste caso. Não tivemos nenhum apoio da Ordem, que também não demonstrou nenhuma preocupação.”

A ConJur entrou em contato com a OAB, que não se pronunciou até a publicação desta reportagem.

Mas o caso de Flávio Godinho não é isolado. "Em boa hora alguém do Supremo percebeu o absurdo da situação", comenta Toron. Ele conta que acaba de conseguir um Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça permitindo que corréus  se falem durante o processo. A Justiça Federal de Mato Grosso havia proibido que eles se encontrassem para "conveniência da instrução penal". Só que os réus são um pai e duas de suas filhas, acusados de integrar organização criminosa.

A vitória de Toron foi gradual: primeiro o Tribunal Regional Federal da 1ª Região permitiu que as duas irmãs voltassem a se falar. Depois, a 6ª Turma do STJ liberou o pai.

À caça
O criminalista Fábio Tofic Simantob, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), concorda com Vilardi: não há como dizer que um advogado não pode orientar seu cliente sem criminalizar a defesa. Até porque, explica, não é o Judiciário quem deve dizer o que é ou não papel do advogado.

“É realmente difícil distinguir o que é uma reunião para combinar uma mentira e o que é uma reunião para combinar uma estratégia de defesa. Mas não é uma distinção que cabe ao Judiciário, porque o réu pode mentir”, afirma Tofic.

“O advogado é o primeiro juiz da causa”, diz. Isso significa que o defensor, assim que ouve a história de seu cliente, deve checar sua veracidade, inclusive com outros envolvidos. E se cada um dos presentes a determinada reunião conta uma versão dos fatos, cabe ao advogado decidir, com seu cliente, qual será a melhor forma de contar o caso.

De acordo com Tofic, o advogado que não decide contar apenas a melhor versão para a defesa de seu cliente ao Judiciário é um “mau profissional”. “É preciso acabar com essa tendência a criminalizar a defesa. Isso é totalitário! É como se o Judiciário quisesse estar em tudo, e não tem de estar.”

O presidente do IDDD também se incomoda com o discurso de que investigações devem ser livres. “Estamos falando de obstrução à Justiça ou de obstrução à sanha investigatória do Estado? Porque obstáculos à investigação existem vários: a defesa, a lei, a Constituição, o Estado Democrático de Direito”, reclama. “Sem isso, não é investigação, é caça.”

Direitos absolutos
Na liminar da quarta, Gilmar afirma que “uma resposta ainda está por ser dada”. Mas ele cita o caso do ex-senador Delcídio do Amaral como exemplo. Delcídio foi o primeiro senador preso em flagrante no exercício do mandato porque foi gravado oferecendo dinheiro a um executivo para que ele não fizesse acordo de delação premiada — ou, se fizesse, não o citasse.

“Tratava-se de decisão cautelar, mas que serve como indicativo de que o prerrogativa de influenciar outros investigados não é ilimitada”, escreveu Gilmar. O professor de Direito Penal e de Direito Constitucional Lenio Streck, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, concorda com o ministro. “Claro que não há um direito absoluto de os investigados combinarem versões. Se o Estado permitisse isso ficaria desmoralizado”, afirma.

Para ele, o cerceamento de defesa deve ser avaliado no caso concreto, já que é difícil falar em tese de questões tão delicadas. “Veja que nem Gilmar e nem Velloso entraram fundo nesse terreno”, diz. “Há que se ter muito cuidado. O fato de o Estado querer evitar que os suspeitos combinem o tipo de versão que darão não parece – per se – cerceamento de defesa. Mas, é claro, isso terá quer bem delineado, para que, sob pretexto de impedir concertos, venha-se a cercear a própria estratégia defensiva.”

* Texto atualizado às 14h45 do dia 8/4/2017 para correção.

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