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As ideias jurídicas peculiares: até onde vai o Direito retrô?

8 de abril de 2017, 8h00

Por Flavio Quinaud Pedron

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Nosso ponto de partida: no livro O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares (originalmente escrito em 2011 por Ransom Riggs e lançado em adaptação cinematográfica dirigida por Tim Burton), somos apresentados a um mundo ficcional habitado por crianças com habilidades especiais das mais diversas, chamadas de peculiares (super força, invisibilidade, levitação etc.), que habitam não apenas um local especial, um orfanato, como ainda um tempo especial. Isso mesmo, a Srta. Peregrine, responsável pelo cuidado das crianças e por gerir o orfanato que dá título ao livro/filme é, também, uma pessoa peculiar; ela é capaz de controlar o tempo cronológico, possibilitando esconder os protagonistas em um loop, uma fenda no tempo, de modo que estão destinados a repetir sempre o mesmo dia, e, com isso, nunca envelhecerem.

Mas o que a obra tem em comum com o cenário atual da Teoria e da Dogmática do Direito brasileiro?

Ao que parece, estamos em um caso curioso de loop, condenados a repetir anos e anos, em sequência, uma versão caricaturada do que na Alemanha, durante o curso da República de Weimar, logo após o fim da Primeira Guerra, período do debate sobre os Métodos Jurídicos (ou a crise da Ciência Jurídica e da Teoria do Estado)[1]. Na história alemã, temos a constatação da insuficiência das teorias e das tradições básicas da Teoria do Direito: de um lado o já insustentável Jusnaturalismo, do outro o Positivismo Jurídico; e, se não bastasse, a ascensão de uma postura cético-realista assumida por um conjunto de teorias decisionistas. Assim, apela-seou para uma linha de raciocínio jurídico (quer no jusnaturalismo, quer no positivismo jurídico) fundada em uma ordem ainda presa àquilo que Ronald Dworkin denominará por aguilhão semântico[2] ou o advento de posturas céticas[3], que abdicam pressupostos de legitimidade democrática em troca de uma funcionalidade do Direito.

Assim, no contexto histórico do Direito alemão, vamos assistir o esforço monumental de diversos juristas em desenvolver teorias tentando superar a crise e dar respostas para os problemas que estavam vivenciando sem, contudo, serem capazes de perceber que a própria crise era produto de um esgotamento dos paradigmas jurídicos tradicionais por eles assumidos. Dessa forma, tal como Cronos (Χρόνος), o esgotamento das tradições jurídicas presas ao aguilhão semântico pareceria devorar seus filhos e, porque não, a si próprio.

Apenas com a percepção de que tais teorias semânticas não eram suficientemente capazes de fornecer respostas aos novos problemas e, dessa forma, o próprio paradigma necessitava ser rompido, iniciando-se todo um esforço de volta a zero, para (re)construir a Ciência Jurídica a partir de um novo horizonte de sentido.

Mas apenas com o pós Segunda Guerra que tal constatação atingirá a Teoria do Direito alemã, impulsionando-os para uma revolução jurídica que ficou conhecida como pós-positivismo.

O que se mostra peculiar, no curioso caso brasileiro, é que — talvez por adesão consciente a alguma forma de postura retrô/hipster da parte de nossos juristas; talvez por ignorância de debates acerca de tradições jurídicas — a prática jurídica atual (quer pela via de uma jurisprudência lotérico-defensiva, quer por uma dogmática submissa à primeira[4]) parece ainda ignorar toda o conjunto de aprendizados históricos que são possíveis se assumir a partir da experiência alemã.

E a partir desse desprezo histórico, vamos nos perceber como se presos no tal loop, condenados a repetir as discussões de um direito passado, em total descompasso com os temas em discussão nos principais fóruns jurídicos mundiais.

É peculiar imaginar que, após um pouco mais de um século após a experiência estrangeira, ainda estejamos discutindo a possibilidade de redução de complexidade pela via de um curioso sistema de julgamentos de teses, a que denominados por precedentes à brasileira. Ou que tenhamos um judiciário que ainda reluta e se debata para não assumir que tem o compromisso democrático — o que não se trata se uma opção! — de fundamentar adequadamente seus provimentos por meio de razões e não mais de impressões, ou naquilo que tomou em seu café da manhã.Igualmente, vemos que esses juristas nacionais ainda se mostram vacilantes em abraçar uma teoria normativa sobre os princípios jurídicos, reduzindo-os, na maioria das vezes, a um uso retórico — pois quando querem afirmar que uma norma é importante, a rotulam como princípio — abraçando, com isso, um panprincipiologismo[5].

O que parece também muito assentado em nosso senso (in)comum jurídico é o que fato de que Teoria e Prática se assentarem em zonas opostas, quase sempre, inconciliáveis. A teoria é desvalorizada pela defesa de uma praxis descomprometida com a construção de um paradigma democrático. Ao passo que por prática se assume um culto estratégico-narcísico de reprodução de entendimentos, enunciados, súmulas do Judiciário nacional, que, contudo, não se entende comprometido e vinculado a seus próprios julgamentos marcando uma verdadeira jurisprudência lotérica[6].

Resumo da ópera: mesmo obras de ficção no campo da Literatura e do Cinema parecem perder para a criatividade do Direito brasileiro, que (re)inventa o tempo todo as velhas fórmulas sob novos rótulos para se mover sem sair do lugar[7]; ou seja,com isso tentamos ainda sustentar a insustentável tradição de teorias positivistas sob novas roupagens. A pergunta é até quando essa moda retrô jurídica vai durar? Até quando vamos continuar nos negando a ruptura dos velhos e insuficientes paradigmas?


[1] Esse cenário, bem como os principais argumentos de diversos pensadores da Teoria do Direito nesse contexto histórico são reconstruídos no cap. 2 do livro: PEDRON, Flávio Quinaud. Mutação Constitucional na Crise do Positivismo Jurídico. Belo Horizonte: Arraes, 2012. Remetemostambém a leitura de duasoutrasobras: (1) CALDWELL, Peter C. Popular sovereignty and the crisis of German Constitutional Law: the Theory and Practice of Weimar Constitutionalism. London: Duke University Press, 1997; e (2) JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (Org.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Trad. Belinda Cooper. Berkeley/London: University of California, 2002.
[2] Ou seja, a (equivocada) pressuposição de que todas as teorias do direito partem dos mesmos critérios e dos mesmos pressupostos para realizar suas afirmações.Segundo o autor: “Ou advogados, apesar das aparências, realmente aceitam, em linhas gerais, os mesmos critérios para decidir quando uma afirmação sobre o direito é verdadeira, ou não pode existir absolutamente nenhum verdadeiro acordo ou desacordo sobre o que é o direito, mas apenas a estupidez de pessoas pensando que divergem porque atribuem significados diferentes ao mesmo som” (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [Direito e Justiça], p. 56).
[3] O Ceticismo se apresenta tanto sobre a forma de um ceticismo interior, quando de um ceticismo externo. “O cético interior apresenta-se como uma posição dentro da atividade interpretativa, mas autônoma em relação à melhor interpretação de algo. Seu interesse é a própria substância das afirmações que contesta. Ele acredita que é possível interpretar; o problema é que ele objeta contra todas as demais interpretações que possam ser oferecidas sobre um objeto. Ninguém pode estar realmente certo sobre uma questão de direito, uma vez que não existem padrões objetivos de imparcialidade e justiça. Os vários ramos do direto são tão cheios de contradições intratáveis que não é possível dizer que, num caso correto, aquela seja a resposta correta. Há tantos e diferentes princípios num ordenamento jurídico que não podemos esperar coerência alguma deles, nem almejar uma única resposta correta” (MEYER, Emílio Peluso Neder. A decisão no controle de constitucionalidade. São Paulo: Método, 2008. [Professor Gilmar Mendes, n. 9], p.325, grifos no original).Por sua vez, chama-se de ceticismo exterior aquele voltado para a atividade interpretativa, buscando aniquilá-la. Dworkin considera que as afirmações não podem sem comprovadas, e, com isso, ele nega que uma interpretação possa ter fundamentos (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [Direito e Justiça], p.98) e validade objetivos. Dworkin (Justice for Hedgehogs. Harvard: Harvard University, 2011, p.31) chama também de arquimedianismo  essa expressão do ceticismo, de modo que o arquimediano coloca-se como um observador externo à prática (Direito, Moral, Política etc.), e a analisa sob tal condição, esquecendo-se – ou pretendendo ignorar, mais possivelmente – que tais práticas sociais éticas somente podem ser realmente apreendidas – ensina a hermenêutica de Gadamer – através de um olhar do participante. Como consequência, os céticos externos afirmam a possibilidade de desenvolverem uma leitura das práticas sociais livre de valores pessoais ou culturais do observador (DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Harvard: Harvard University, 2011, p.32; DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [Direito e Justiça], p.98). Diante da suposta falta de parâmetros, esses céticos afirmam que não poderá nunca haver uma resposta correta, mas apenas a resposta que aquele responsável pela decisão quiser.
[4] Vide voto do ex-Min. Eros Grau em seu voto na Rcl. 4335/AC.
[5] STRECK, Lenio. O que é isso: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010; ver crítica em THEODORO JR; NUNES; BAHIA; PEDRON. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro: GeN/Forense, 2016, cap. 2.
[6] THEODORO JR; NUNES; BAHIA; PEDRON. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro: GeN/Forense, 2016.
[7] Um caso típico é o ressurgimento da adoção de uma leitura avessa da teoria de mutação constitucional apenas para mascarar e fornecer uma capa de legitimação ao decisionismo que impera no STF. Sobre mais dessa crítica ver: PEDRON, Flávio Quinaud. Mutação Constitucional na Crise do Positivismo Jurídico. Belo Horizonte: Arraes, 2012.