Opinião

Modulação não pode ser a "katchanga" da União

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

3 de abril de 2017, 9h00

Semana passada, o Supremo Tribunal Federal firmou, por 6 x 5, a constitucionalidade, formal e material, “da contribuição social do empregador rural pessoa física, instituída pela Lei 10.256/2001, incidente sobre a receita bruta obtida com a comercialização de sua produção”. Na oportunidade, o ministro Gilmar Mendes discorreu sobre a modulação de efeitos em matéria tributária, quando pedida pela União Federal. Foi a senha para um debate necessário.   

Para o ministro, “o caos financeiro que muitas vezes pode decorrer de um conjunto de déficits até eventualmente ocasionados a partir de decisões do próprio Judiciário certamente é um daqueles caos que recomenda algum tipo de providência”. Na sequência, arrematou: “É esse o dado que, me parece, — sei que isso não vai me causar muito a simpatia dos tributaristas — recomenda, tendo em vista essa racionalidade, modulação de efeitos”.

Aparteando-o, o ministro Luiz Fux recordou que, ainda na Comissão de Elaboração do novo Código de Processo Civil, por ele presidida, “uma das motivações de se inserir a modulação da modificação jurisprudencial foi exatamente esse questão relativa ao Direito Tributário”.

Veio do ministro Ricardo Lewandowski, todavia, a reação mais enfática. “Nós recebemos memoriais em que esses números são veiculados, mas não há nenhuma estatística, não há nenhum dado da Fazenda mais consistente, trata-se apenas de mais um argumento para impressionar a corte”.

Desenvolvendo seu raciocínio, o ministro Lewandowski recordou o caso dos planos econômicos, no qual “uma alta autoridade monetária disse que haveria um trilhão de retração do crédito”. Para o ministro, “são números que, data venia, não batem, não tem nenhuma correspondência com a realidade, até por serem tão dissonantes um dos outros”. O contraponto estava enfaticamente feito.

Essa descrença também foi demonstrada pelo ministro Luís Roberto Barroso. “Eu não me impressiono demais com números, não, até porque, frequentemente, eles são inflados”, afirmou.

Com a continuidade da discussão, a ministra Cármen Lúcia, presidente da Suprema Corte, encorpou as manifestações e registrou: “(…) A responsabilidade para ver o quadro, como um todo, não é nossa, porque diante da agressão a um direito do contribuinte, nós temos pouco a fazer às vezes, enquanto colaboração, uma vez que fazemos Direito, não fazemos milagre”.     

Após a reação coletiva, o próprio ministro Gilmar Mendes admitiu: “Nós estamos de acordo que, de fato, também o Estado tem de trazer números consistentes”. Contudo, ressaltou a necessidade de se considerar os impactos que disputas tributárias geram não somente sobre o Estado, mas na iniciativa privada.

A discussão é mais do que oportuna e as manifestações mostram certo desgaste desfrutado pela União Federal em razão desse exercício de anúncio do apocalipse sempre que o Supremo reafirma direitos fundamentais dos contribuintes contra práticas estatais inconstitucionais.  

O artigo 148 da Constituição Federal confere à União o poder de instituir empréstimos compulsórios em nome do “interesse nacional”. Reticente pelo trauma coletivo que invocações ao “interesse nacional” geram no Brasil, a União não costuma invocar o dispositivo. Não precisa. Usa, hoje, a modulação.

Ela invoca o instituto quando busca, na verdade, milagres que a Suprema Corte não tem capacidade institucional, nem competência constitucional, para obrar. Como anotou a ministra Cármen Lúcia, “fazemos o Direito. Não milagre”.  

Há previsão legal para a modulação. O artigo 27 da Lei 9.868/99 dispõe: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o STF, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. O artigo 11 da Lei 9.882/99 tem redação semelhante, mas voltada à arguição de descumprimento de preceito fundamental. 

Há ainda o CPC/2015, cujo artigo 927, § 3º, diz: “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”. É o dispositivo mencionado pelo ministro Luiz Fux, cuja origem residiria nas disputas tributárias. 

A modulação está aí. Mesmo assim, é preciso cautela. Em nome do “interesse nacional” tiraram as nossas liberdades em 1964. Foi invocando o “interesse nacional” que confiscaram as nossas poupanças em 1993. Agora, em nome desse mesmo interesse, requerem frequentemente o direito de violarem a Constituição até o dia que lhes aprouver. Não é o normal das coisas. 

Esse uso que a União Federal está dando à modulação lembra a estória que o professor Lenio Streck conta, com menção ao saudoso professor Luis Alberto Warat. De tão famosa que ficou, ela ganhou várias versões.  

Existia um cassino que aceitava todos os tipos de jogos. Chegou um sujeito esperto e desafiou o croupier, propondo-lhe o jogo da “Katchanga”. O desafiante distribuiu dez cartas e começou “comprando” duas cartas. O desafiado aprendera duas regras: 1) a “Katchanga” se joga com cartas; 2) é possível iniciar “comprando” duas cartas. O sujeito esperto pegou cinco cartas, devolveu três; o croupier fez o mesmo. Eram novas regras, pensou. O desafiante, então, colocou suas cartas e gritou “Katchanga!”, puxando todo o dinheiro da mesa. O croupier notou que havia uma sequência de três cartas e as outras desconexas. Supôs que era uma nova regra. Dobraram a aposta. Quando o desafiado conseguiu fazer uma sequência igual àquela que dera a vitória ao sujeito esperto, este atirou as cartas e gritou: “Katchanga!”. Surpreso, o derrotado passou a achar que a regra vinha de duas sequências do jogo. Dobraram a aposta. Depois de muitas derrotas, o croupier compreendeu que a regra estava em gritar primeiro “Katchanga!”. Simples. Por honra, desafiou o espertinho. Apostou o cassino. O sujeito esperto pegava três cartas, devolvia seis, colhia outras três…, e ia jogando. Quando o croupier percebeu que o desafiante jogaria as cartas e diria “Katchanga”, ele gritou antes: “Katchanga!”. Foi quando o sujeito esperto atirou as cartas e gritou: “Katchanga Real!”. Vencedor, ele catou a escritura do cassino e partiu.

Não havia regras no jogo. Fosse qual fosse a jogada, quem levaria a melhor era o sujeito mais esperto. Não pode ser essa a lógica a guiar uma disputa arbitrada pela Suprema Corte. Surpreender o tribunal, da tribuna, anunciando que, ou se permite que o Estado cobre tributos de modo inconstitucional, ou um grande buraco negro engolirá o país, é desmerecer a jurisdição constitucional.   

Essas surpresas constrangem o Supremo e assustam os empreendedores que se dedicam a, ao lado da comunidade, gerar prosperidade no país. Quando o Brasil é reputado, pela comunidade internacional, uma nação difícil de se confiar, não são as pessoas que esbanjam poder ou as que vivem em conforto que sofrem. É a imensa parcela da população que leva uma vida repleta de privações e necessidades. Segurança jurídica, notadamente quanto às posições da Suprema Corte, é um catalisador de prosperidade que irradia seus efeitos intensamente sobre a parcela mais necessitada da nossa comunidade.

Além do mais, é simplesmente injusto impor ao tribunal que arque com um ônus gerado por uma conduta que ele não criou. O próprio ministro Gilmar Mendes afirmou isso quando desenvolvia suas ideias relativas à modulação. É que o STF não estabelece fórmulas para se arrecadar tributos. Também não tem a chave do cofre, não nomeia ministros — sequer os seus —, não elege parlamentares, não comanda o Banco Central, não imprime moeda, nem controla as Forças Armadas. Ruy Barbosa dizia isso. O tribunal vive da sua reputação. Sobrevive graças à respeitabilidade que goza perante à comunidade cuja vida é por ele diretamente afetada por meio de seus julgamentos.

Exatamente por isso deve, a Fazenda, sempre que invoca essa fórmula mágica da modulação, provar, exaustivamente, as razões de segurança jurídica ou de interesse social que justificariam uma carta em branco para que siga violando a Constituição ou seja perdoada pelo mal já causado. A decisão deve gerar, objetivamente, grave e irreversível comprometimento de direitos fundamentais. Não sendo esse, o caso, o pedido pela União não passa de uma retórica que, como se viu, tem cansado a Suprema Corte.

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