Opinião

Discurso feminino precisa incluir a preocupação com o patrimônio da mulher

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1 de abril de 2017, 6h19

No Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março, observei com interesse as várias manifestações públicas a respeito da data, feitas por autoridades públicas e religiosas, pela imprensa, por entidades civis e por diversos grupos de mulheres do mundo inteiro, e me interessei também pela leitura de dois pequenos livros que me chegaram às mãos: Guia Prático do Feminismo – Como Dialogar com um Machista, de Marcella Rosa (Belo Horizonte: Letramento, 2016), e Mulheres, Retratos de Respeito, Amor-Próprio, Direitos e Dignidade, de Carol Rossetti (Rio de Janeiro: Sextante, 2015).

O primeiro, um texto literário, é uma imaginária conversa interessante entre uma mulher com um machista (alguém do sexo masculino), que não se acha machista. O segundo, peça artística pontuada por perspicazes chamadas de interesse sociológico, é uma coletânea de desenhos, sequenciais, com recados específicos dados a todos, a partir de muitas situações do universo feminino. Em ambos os livros, escritos por mulheres muito jovens, a linguagem é simples, direta e atual, a conversa abrangente de muitas questões comuns do dia a dia, e o tempo e o espaço do diálogo e das figuras é o tempo e o espaço das mulheres do Brasil e do mundo de hoje, principalmente das moças do Brasil de hoje. Os problemas, entretanto, são todos eles muito antigos.

Por tudo que ouvi e li nesses dias, compreendo que continua não sendo fácil conectar o hoje de nossa sociedade com esse universo tão curioso da alma feminina, com suas múltiplas expectativas de vida plena e total intolerância a qualquer forma de opressão. Continua — e com que intensidade! — a renhida luta que move durante séculos a mulher, em busca da plenitude de sua condição humana, que ainda se vê hostilizada por um modelo mundial que lhe cerceia os movimentos e ainda exige dela um comportamento que não se ajusta ao grau de civilidade que ela pensou já ter obtido.

Sempre nos acostumamos a ver o personagem feminino estaticamente posto num espaço onde sua presença é garantia de harmonia, ternura e tranquilidade. Mas esse espaço, entretanto, mesmo quando existe, é geograficamente posto para dentro de casa: fora da casa, a mulher não é sempre considerada como sendo esse ser repleto de virtudes, ainda que ela as tenha todas. O mais curioso, entretanto, é que até mesmo esse espaço histórico e geográfico de comando da “dona de casa” está ruindo.

Por isso, deixando de lado o tema “mulher e civilidade” a partir da História e da Sociologia, vou me ater a fazer algumas poucas considerações a respeito dessa mesma realidade no Direito Civil, realçando alguns pontos que demonstram a sorrateira involução do perfil de igualdade e respeito legitimamente expectado pela mulher no espaço civil da sociedade contemporânea. E mais: a diminuição constante e o enfraquecimento paulatino do patrimônio da mulher e das oportunidades de ele vir a ser por ela conquistado.

  • É imemorial o tempo de luta da mulher para provar a paternidade do filho que trouxe à luz. A história da jurisprudência brasileira mostra o quanto a mulher seguiu humilhada por provas contra a sua honra, todas as vezes que representou seus filhos nas numerosas investigações de paternidade julgadas improcedentes, por exceptio plurium concubentium, e todas as vezes em que teve seu casamento anulado e negada a paternidade de seu filho, por adultério. Com a prova da filiação genética, que hoje pode ser feita com facilidade, a questão foi superada. Nos dias de hoje, entretanto, se o filho buscar na Justiça a declaração de paternidade contra aquele que não o reconheceu, pode se surpreender com o reconhecimento judicial de que a paternidade afetiva de outro, que o ajudou a criar, fez desaparecer o vínculo biológico, natural e perene entre pai e filho! Ou seja, depois de tantos séculos de luta pelo reconhecimento da paternidade biológica, em tempos de paternidade afetiva, a biológica pode já não ter importância alguma.
  • Por séculos a mulher almejou ter igualdade com o marido na vida conjugal. Status obtido, apenas, pela Constituição Federal em 1988. Embora em muitas situações essa igualdade de fato não exista, muitas engrenagens jurídicas, entretanto, permitem que ela possa efetivamente ser exercida. O ordenamento jurídico, para preservação do patrimônio da família, impõe restrições aos cônjuges quanto à alienação de bens e formação de sociedade empresarial, por exemplo. Curiosamente, na atualidade, a jurisprudência das cortes superiores considera que não faz diferença alguma casar-se ou viver em união estável, criando, principalmente para a mulher e para seu patrimônio, situação de insegurança que juridicamente lhe custa caro, porque são muitos os casos em que o patrimônio da família está em nome apenas do companheiro e (pasmem!) as dívidas da empresa de que ela é sócia com o companheiro, apenas para constar do estatuto social, servirem tão somente para arrastá-la para a perda do pouco que amealhou, para honrar dívidas que não sabe como foram e para que fim foram feitas.
  • Em todos os Estados teocráticos, em que o casamento segue o ritmo das tradições religiosas, em que, muitas vezes, as mulheres relativamente aos maridos ocupam posição de inferioridade com relação — até mesmo — à guarda e à educação dos filhos, o sonho das mulheres que querem formar família é o casamento civil, porque somente essa instituição lhes daria um sonhado estado de igualdade civil, livre da dimensão de opressão a que a religião, muitas vezes, as reduz. No Brasil, entretanto — apesar de todas as modificações legislativas que trouxeram para o instituto um movimento de modernidade ­—, o casamento civil está satanizado, como uma velharia. Não há entre nós consciência civil da importância estrutural do casamento civil para a vida e patrimônio da família. O instituto recebeu a pecha de ser interferência indevida do Estado (que deve ser laico) na vida privada dos cidadãos e resquício de imposição religiosa.
  • O Supremo Tribunal Federal, com todo o respeito que nossa corte maior merece, tem a coragem de, a seu talante, contra a Constituição, dizer que o ser no ventre materno até os três meses de gestação não é ser humano e que o aborto nesses casos atenderia a interesses das mulheres. A mesma corte, entretanto, faz ouvidos moucos aos reclamos insistentes de numerosas mulheres que em processo de execução têm sua casa de morada — bem de família — levada à praça, por dívida decorrente de fiança prestada como garantia de obrigações locatícias. Há que se lembrar que muitas vezes a fiadora é mãe, mulher, companheira do locatário, consentindo com a fiança em razão desses laços de família: nesses casos, a corte não encontra solução diferente no texto frio da lei, nem realiza qualquer esforço hermenêutico para evitar que uma família perca seu teto, por ter prestado garantia que o credor desde sempre soube que não podia exigir, tal o estado de penúria da fiadora ou do casal de fiadores. Dois pesos e duas medidas de interpretação. A corte, nesses casos, não encontra argumento, não é coerente com o interesse de defesa das mulheres que buscam, apenas, a sobrevivência da família e dos seus filhos.
  • Frequentemente, vê-se mulheres idosas, aposentadas, com os proventos de aposentadoria retalhados para pagamento de empréstimos consignados, relativos a saques que, na maioria das vezes, foi feito por parentes que abusam de sua condição de vulnerabilidade. Ninguém levanta a voz em favor desses milhares de idosos, a maioria deles mulheres, que já não conseguem sobreviver com tão reduzidos e parcos proventos. Não está na pauta do Congresso nem tem sido preocupação da jurisprudência a pretensão de proteção da integralidade dos salários de aposentados e aposentadas, que recebem o mínimo para sobreviver e não podem ter o salário ainda mais reduzido.
  • Grandes seminários, simpósios e congressos — nas mais diferentes áreas, em que se discutem questões pontuais da vida econômica e política do Brasil — são encetados tendo como palestrantes apenas homens, embora o público ouvinte seja, em sua maioria, composto de mulheres que pagam caro (com o dinheiro de seu trabalho) para ouvir a maravilha das condutas que muitas vezes são contrárias aos seus interesses civis, principalmente contrárias às oportunidades de trabalho do público feminino.
  • Os políticos eleitos são, em sua grande maioria, homens, embora a maioria dos eleitores sejam mulheres: como pode uma sociedade civil viver em igualdade de gênero com a prevalência do pensamento político que aí está, sem diálogo, sem escuta das necessidades do povo? Nenhuma influência política da voz das mulheres nas Casas do Parlamento e no primeiro escalão do Executivo.

Temo que essa conjuntura não se altere e, talvez, se agrave. Basta passar os olhos na realidade da vida civil-política e econômica do país (naquilo que efetivamente interessa) para observar que a opinião pública recebe pouquíssima influência do pensamento feminino. Quando alguma oportunidade se tem, tudo corre num ambiente de falsidade e, por que não dizer, de cinismo: é uma flor para a mulher no Dia das Mães, outra no Dia da Mulher; a presença de mulheres dando suporte a falas de políticos cínicos que as ridicularizam, justamente no dia em que, dizem, é dedicado à sua homenagem.

Ao discurso feminino precisa ser agregada a preocupação com o patrimônio da mulher e da família por quem sempre ela se responsabiliza. É preciso conduzir a lógica das reivindicações para um agir civil, consentâneo com o efeito que se quer: o reconhecimento da dignidade, da força moral, da força política, de todos os componentes da sociedade civil e das mulheres em especial. A dignidade da mulher passa também em ter ela recursos para morar, viver, criar os filhos, principalmente quando se está sozinha nessa empreitada.

Francisco, o sumo pontífice, que tem a esplêndida função de ser a ponte da palavra de Deus conosco, diz que a mulher é mensageira da harmonia e da ternura, construtora da paz. Mas, exatamente, em que ambiente humano sobrará espaço para o exercício da harmonia e da ternura?

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