Diário de Classe

O processo penal e os "Estados de Exceção Vingativos" — o caso Adriana Ancelmo

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1 de abril de 2017, 8h00

Spacca
A decisão da ministra do Superior Tribunal de Justiça Maria Thereza de Assis Moura que concedeu liminar para restaurar a conversão da prisão preventiva de Adriana Ancelmo (ex-primeira-dama do estado do Rio de Janeiro) em prisão domiciliar gerou muita polêmica no decorrer desta semana. O tema, por si só, desperta uma plêiade de paixões que dispensam mais comentários. Todavia, penso que há questões importantes para o Direito que se projetam a partir desse caso e que merecem reflexão mais acurada. A principal delas está ligada ao dever do Poder Judiciário de fazer cumprir a lei — no caso, a legislação processual penal — ainda que, em situações específicas, suas determinações se mostrem contrárias à opinião pública. Nos rastros desse problema, porém com um colorido, por assim dizer, filosófico, depreende-se uma outra possível reflexão: o que se pode esperar da missão básica do processo penal que está ligada, necessariamente, ao cultivo político e prudente da Justiça em detrimento de formas violentas e passionais de vingança? É possível aumentar a complexidade do problema introduzindo-o no contexto de uma sociedade de massas atropelada constantemente por um fluxo desencontrado de informações e que parece demandar, cada vez mais, uma retribuição rápida e eficaz contra os malfeitos, os quais, por sua vez, já estão devidamente (pré)julgados pela mídia em geral.

Excepcionalidade da prisão preventiva e a imperatividade (?) da conversão em prisão domiciliar
É sabido que, a partir da Lei 12.403 de 2011 (na verdade, nosso sistema constitucional de garantias fundamentais já apontava para isso desde 1988), foi reforçada a determinação de que a prisão preventiva é excepcional e só pode ser adotada quando não houver outra medida cautelar que possa substituí-la (CPP, artigo 282, parágrafo 6º). Por sua vez, o artigo 318 do mesmo diploma prescreve que o juiz, ainda quando seja o caso de decretar a prisão preventiva, poderá convertê-la em prisão domiciliar, o que se aplica, entre outros, aos casos em que a pessoa recolhida cautelarmente à prisão seja mulher com filho de até 12 anos incompletos (artigo 318, inciso V do CPP). Desse modo, em sendo a prisão preventiva excepcional e podendo ela ser substituída por outra medida de natureza acautelatória, não seria dever — legal — do juiz assim determinar?

Aliás, se estavam presentes os requisitos do artigo 318, inciso V no momento de decretação da preventiva, é possível dizer que houve constrangimento ilegal na manutenção da prisão preventiva pelos quatro meses em que, no caso específico, esta foi mantida. Vale dizer, uma vez que o dispositivo supracitado já estava em vigor (a lei que o incluiu no texto do artigo 318 é de março de 2016), no momento de decretação da prisão preventiva, deveria o juízo singular tê-lo aplicado de plano.

Todavia, o juízo singular responsável pelo processo demorou quatro meses para dar vigência à prescrição legal e, quando o fez, justificou sua aplicação no fato de que os filhos da ex-primeira-dama estavam privados da convivência simultânea da mãe e do pai, uma vez que ambos cumprem prisão preventiva.

De se notar: esse motivo não espelha nenhum dos requisitos presentes no artigo 318. Todavia, o fato de a pessoa que sofre a prisão ser mulher e mãe de um filho menor de 12 anos, sim.

Uma decisão teratológica?
O Ministério Público Federal, então, impetrou um mandado de segurança perante o Tribunal Regional Federal da 2ª Região pedindo que, liminarmente, fosse concedido efeito suspensivo ao recurso em sentido estrito que pretendia reformar a decisão do juízo singular que converteu a prisão preventiva em prisão domiciliar. O relator do referido writ, desembargador federal Abel Gomes, conheceu do mandado de segurança e deu provimento à liminar requerida, entendendo que a decisão a quo era, de algum modo, teratológica. Neste ponto, já se inicia minha “angústia jurídica”: afinal, onde está a “teratologia”? Na conversão da preventiva em domiciliar, parece-me que não há que se falar em teratologia, já que, ao que tudo indica, está presente, no caso, o requisito do artigo 318, V do CPP. Agora, se pensarmos no motivo amplamente divulgado de que a conversão dar-se-ia em razão dos filhos do casal estarem privados do convívio simultâneo de pai em mãe, e isso oferecer dificuldades à sua criação, aí posso até concordar.

Ora, não existe tal requisito na lei. No mais, equitativamente, tal motivo se mostra equivocado e, portanto, não poderia ser afirmado como um “argumento de princípio”. Explico: de que modo seria possível universalizar — forma igualitária — o critério de filhos privados da convivência simultânea de pais presos preventivamente para todos os “clientes” de nosso sistema penitenciário que partilham dessa mesma condição? Ou será que apenas o “ex-primeiro casal” do estado do Rio de Janeiro poderia ser incluído nessa circunstância…?! Portanto, esse não é o melhor argumento para a decisão que converteu a preventiva em domiciliar. Ao contrário, ele está equivocado. O correto seria, simplesmente, fazer cumprir o que prescreve o artigo 318, V do CPP.

Mas, ao que tudo indica, a “teratologia” visualizada pelo desembargador relator foi outra. Para ele, o problema é semântico e está ligado à expressão “poderá”, que aparece no caput do artigo 318 do CPP. Argumenta, então, que o termo poderá "não remete a decisão judicial apenas ao que passa a achar o magistrado de uma hora para outra, nem lhe é uma 'permissão' vazia de conteúdo silogístico à luz do mundo do processo e do direito". Confesso que me falta agudeza analítica para compreender na inteireza o que essa frase quer dizer. De todo modo, parece-me que o principal problema da decisão para o desembargador federal relator é seu caráter inopinado; repentino, pois, segundo ele, o termo “poderá” não autorizaria uma decisão “há qualquer tempo”, exarada em face de uma simples mudança de opinião por parte do órgão julgador.

Sem embargo, penso que, novamente, a discussão aqui é levada para um ponto equivocado. Se nossa intenção for analisar a questão desde a perspectiva jurídica, a pergunta que se coloca é: afinal, na hipótese vertente, o que significa cumprir a lei? É obvio que a locução utilizada pelo caput do 318 parte da expressão poderá. Pelo singelo motivo de que cabe ao juiz analisar se, no caso por ele conduzido, estão presentes os requisitos ali discriminados (para corroborar essa afirmação, temos o próprio parágrafo único do artigo 318 que exige a apresentação de provas que demonstrem cabalmente a existência dos requisitos da lei no caso analisado). Em uma hipótese na qual tais requisitos não possam ser reconhecidos e comprovados, evidentemente, o eventual pedido de conversão da prisão preventiva em domiciliar deverá, por força da lei, ser denegado. Por outro lado, nos casos em que tais requisitos estejam efetivamente presentes e devidamente comprovados, o juiz estaria autorizado a negar o pedido de conversão? Nessa situação, penso, a resposta seria negativa.

E assim seria por uma questão de coerência entre os pressupostos legais incorporados ao CPP em suas últimas reformas. Note-se: a prisão preventiva é medida excecionalíssima e só pode ser adotada nas hipóteses em que não haja outro meio disponível. Essa premissa, por si só, joga por terra o argumento de que a conversão da prisão preventiva em domiciliar não poderia ser deferida porque o crime que ensejou a primeira é grave. Ora, em um contexto como esse, a gravidade do crime é quase que um requisito essencial para decretação da preventiva. Vale dizer, não sendo demonstrada a tal “gravidade do crime”, deve-se adotar medidas cautelares diversas da prisão. Sendo ainda mais claro: sempre que houver determinação de prisão preventiva, deverá estar demonstrada de forma concreta e singularizada a “gravidade do crime”. Se a lei autoriza a conversão, isso se dá “apesar de”… ainda que o crime a ser apurado pelos meios de persecução criminal seja considerado grave. Nesse passo, o artigo 318 afirma que será possível converter a prisão preventiva — que, para ser decretada, passou por todo filtro anterior — em prisão domiciliar nas hipóteses excepcionais por ele estabelecida. Logo, se tais possibilidades estão presentes, cabe ao órgão julgador determinar a conversão.

Necessidade de universalização da conversão quando presentes os requisitos legais
E temos logo que superar a balela de que estamos aplicando isso apenas para os privilegiados, e não para a parcela mais pobre da “clientela” do sistema prisional. Ora, é indultável que tal critério deve ser o mesmo, seja quem for investigado(a) ou acusado(a) e esteja sob a tutela cautelar de nosso sistema prisional. A indiferença do Estado para com as questões particulares de cada pessoa é aqui um requisito essencial.

Nessa seara, é importante consignar que o Superior Tribunal de Justiça tem dado efetividade ao disposto no artigo 318 do CPP também para os acusados ou acusadas da prática de crimes que estão mais ligados ao “andar de baixo”, e não aos clientes de “colarinho branco”. Veja-se, nesse sentido, a liminar proferida pelo ministro Rogério Schietti Cruz no HC 351.494 (registre-se que, de minha parte, não assevero a posição professada pelo ministro de que o disposto no artigo 318 do CPP traria para o órgão julgador uma faculdade, e não uma obrigação. Como afirmei acima, parece-me que essa não é a melhor interpretação a ser conferida à lei processual. De todo modo, a referida decisão é ilustrativa para mostrar que a conversão há de ser adotada em caráter de universalidade, independentemente das características pessoais da “clientela”).

Cabe alguma anotação também com relação à decisão do STJ. Como se sabe, o que levou a ministra Maria Thereza a decidir pela restauração da conversão efetuada pelo juízo singular foi a jurisprudência “mansa e pacífica” do STJ que não reconhece a possibilidade de impetração de mandado de segurança para dar efeito suspensivo ao recurso em sentido estrito. Todavia, já tive oportunidade de escrever, em livro produzido em parceria com Lenio Luiz Streck, que, em hipóteses excepcionais, o manejo do mandado de segurança não só é possível como necessário para a efetivação de uma resposta adequada para o caso concreto[1]. Importante frisar que tal medida já era defendida há muito tempo por Lenio e, por força de nossas discussões e pesquisas que entabulamos por ocasião do livro que citei, decidimos por incorporá-la às nossas reflexões. Ocorre que a articulação do mandado de segurança em tais hipóteses está condicionado à demonstração de que, no caso analisado, está-se diante de uma proteção deficiente, ou seja, a outra face da proporcionalidade. Poderia ter lugar, por exemplo, em um caso de conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar que estivesse justificada em um motivo não adequado aos requisitos do artigo 318 do CPP; ou ainda, que aplicasse uma medida cautelar diversa da prisão em hipóteses claras e necessárias de prisão preventiva. Contudo, para o conhecido caso do Rio de Janeiro que deu origem à minha coluna de hoje, nenhuma dessas circunstâncias estão presentes. Pelo contrário, ao que tudo indica, a pessoa que estava a sofrer a prisão preventiva preenchia um dos requisitos do artigo 318 do CPP. Portanto, a liminar proferida pela ministra do STJ deveria deixar muito claro e evidente que a conversão tem lugar para fazer cumprir a lei processual penal em vigor, verdadeiro motivo que deu ensejo a todo imbróglio.

Epílogo: entre a vingança e o cultivo político da justiça
Por derradeiro, cabe uma palavra acerca daquela reflexão mais “filosófica” anunciada no início deste texto. Lembrando novamente de meu querido Lenio Streck, que sempre se refere às tragédias gregas para descrever o modo como as comunidades humanas buscam superar a violência exponencial gerada pelo ímpeto vingativo que surge a partir do ilícito a partir do cultivo político da justiça no ambiente de tribunais, é preciso saber se ainda é possível, no nosso contexto atual de "lavas jato", "carnes fracas" e congêneres, pensar no Direito como uma forma de gestão da ira e, consequentemente, como redutor da violência no campo dos “justiçamentos”.

A passagem da afirmação da vingança para uma cultura do julgamento é retratada, entre outras, na trilogia atrida de Sófocles, mais especificamente na sua peça de encerramento, Eumênides. Nela, as deusas da vingança, antigamente extremamente cruéis e chamadas de Eríneas, são transformadas e rebatizadas como as Eumênedis, ou seja, aquelas que são bem-intencionadas; benevolentes. Nas palavras de Peter Sloterdijk, “a tendência para a transformação dos nomes é inconfundível: onde havia a compulsão à vingança deve passar a existir de maneira compensatória uma justiça prudente”[2].

Certamente, para as multidões, a compreensão desses pressupostos é sempre muito difícil. Novamente com Sloterdijk, “a história de vingança bem construída oferece o sublime ao povo”[3]. Assim, uma retribuição mais rápida e espetaculosa funciona sempre melhor do que o desconforto gerado pela cultura civilizacional que se expressa por meio do Direito. E, nessa toada, vamos vivenciando esses “Estados de Exceção Vingativos”[4]. De todo modo, não dá para repreender o povo por isso. O problema começa quando o Judiciário, que deveria fazer o inverso, parece ter cedido aos encantos políticos da ira, passando a compor o coro com a multidão apaixonada e com sede de vingança.

É um sintoma. Segundo consta, a ministra Luislinda Valois, dos Direitos Humanos, encaminhou oficio para a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, pedindo que o critério adotado para o caso Adriana Ancelmo seja aplicado a todas as hipóteses semelhantes em que mulheres, mães de filhos pequenos, tenham por decretada sua prisão preventiva. Por que é necessário esse ofício? Isso já não está na lei e a lei, por definição, não deve valer para todas (e todos)? Perguntas retóricas, evidentemente.


[1] Cf. STRECK, Lenio Luiz. TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. O que é isto – as garantias processuais penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, passim.
[2] SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo: ensaio politico-psicológico. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 71.
[3] Idem, Ibidem, p. 72.
[4] Idem, Ibidem, p. 77.

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