Ambiente Jurídico

A preservação do meio ambiente por meio de medidas cautelares penais

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1 de abril de 2017, 8h05

Spacca
Como se sabe, o Direito Ambiental tem por meta a proteção do direito fundamental, indisponível e intergeracional relativo à fruição do meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, nos exatos termos do que dispõe a CF/88 (artigo 225, caput).

Evidentemente que, em razão da natureza especialíssima do direito material à proteção do meio ambiente, o Direito Processual Ambiental, seja ele civil ou penal, necessita desempenhar, com eficiência, o seu papel instrumentalizador da aplicação das normas protetivas do meio ambiente, removendo os ilícitos ou os danos violadores dessas normas, sob pena de se frustrar a efetividade e a utilidade da prestação jurisdicional acerca do cumprimento do texto constitucional.

Conforme registrado pelo ministro Herman Benjamin[1], o Direito Ambiental há de ser algo mais que a disposição metódica de normas e padrões de comando e controle inaplicáveis ou inaplicados (= law on the books), ou, noutra perspectiva, deve ir além da asséptica análise teórica que daí se construísse. De fato, quem se contentar com um tal isolado e abstrato estudo do Direito Positivo Ambiental estará apequenando, a um só tempo, a disciplina jurídica e o seu objeto. À ordem pública ambiental legislada haverá que se acrescentar o matiz implementador.

Registre-se que, no âmbito do Direito Penal e Processual Penal Ambiental, informado sobretudo pela Lei 9.605/98, a normatização é voltada tanto para a aplicação da sanção de natureza penal quanto para a reparação dos danos causados ao meio ambiente. Ou seja, busca-se no bojo do processo penal ambiental não somente punir criminalmente a ação delituosa, mas, sobretudo, assegurar a proteção concreta do bem jurídico ambiental.

Nesse cenário, ressaltando a preocupação da Lei 9.605/98 com a reparação dos danos ambientais, o professor Gilberto Passos de Freitas[2] leciona:

E como um reforço a esta regra, a Lei dos Crimes Ambientais em várias oportunidades, dando ênfase à importância jurídico-penal da reparação do dano, a ela expressamente se refere quando trata da suspensão condicional da pena (art. 17), da transação penal (art. 27) e da suspensão condicional do processo (art. 28), estabelecendo-a como condição para a concessão de tais benefícios. Além disso, prevê referido diploma a espontânea reparação do dano como circunstância atenuante da pena (art. 14, II) e como modalidade de pena de prestação de serviços à comunidade estabelecida para a pessoa jurídica (art. 23, II).

Não resta dúvida que os dispositivos em comento têm sua origem alicerçada no princípio da reparação do dano ambiental, um dos objetivos básicos da Política Nacional de Meio Ambiente (artigo 4º, VII, da Lei 6.938/81), e na tríplice responsabilização das condutas lesivas ao meio ambiente (artigo 226, parágrafo 3º, da CF/88), devendo ser privilegiados os instrumentos que possam, a um só tempo, alcançar os diversos fins colimados pela legislação ambiental, pois, como bem observado pelo doutrinador Alex Fernandes Santiago[3], a reparação é essencial, imanente a qualquer discussão sobre a proteção do meio ambiente, e de nada serviria levar infratores à cadeia e abandonar as florestas desmatadas, os rios poluídos, e assim sucessivamente.

Logo, a necessária interlocução das responsabilidades civil e penal nos instrumentos previstos na Lei 9.605/98 reforça a proteção do bem jurídico ambiental, em profícua simbiose que caracteriza o denominado Direito Ambiental Penal Reparador[4].

O tratamento conjunto das esferas civil e penal relacionadas aos danos ambientais ainda tem a virtude de racionalizar a atuação do Ministério Público e diminuir o acionamento do Poder Judiciário, uma vez que na seara penal é possível, a um só tempo, a resolução completa da situação, evitando a instauração paralela de inquéritos civis ou a propositura de ações civis públicas para tratar do mesmo fato. É esse, inclusive, o posicionamento do STJ[5], que recentemente decidiu: "Na esfera ambiental, o tópico da composição do dano em sede penal ganha relevo, pois, pelo caráter difuso das condutas lesivas (a poluição ambiental a todos prejudica de alguma maneira), revela-se ainda mais necessária a efetiva reparação das áreas degradas como forma de pronta solução dos conflitos".

Entretanto, mais importante que a reparação dos danos ambientais é a sua prevenção, o que nos faz pensar ser necessário voltar nossas atenções para um “Direito Ambiental Penal Preventivo”.

Relembre-se que o Direito Penal objetiva, precipuamente, a prevenção da ocorrência dos delitos e ofensas aos bens e interesses juridicamente por ele tutelado, razão pela qual nos parecem evidentes a relevância e a necessidade da utilização de medidas cautelares no âmbito do processo penal ambiental, a fim de que a efetividade das normas ambientais seja alcançada na prática, evitando que ilícitos se protraiam no tempo e que situações de perigo se convertam em danos, causando lesão a direitos intergeracionais e erodindo a confiança da sociedade nas instituições.

Sobre o viés preventivo da tutela ambiental, vale a transcrição da lição de Herman Benjamin[6]:

É de todo evidente que, dentre todos os instrumentos de proteção ambiental, os preventivos mostram-se como os únicos capazes de garantir, diretamente, a preservação do meio ambiente, posto que a reparação e a repressão pressupõem dano manifestado, vale dizer, ataque ao equilíbrio ecológico já ocorrido. Os primeiros têm os olhos voltados para o futuro. Já os outros dois alimentam-se do passado que, não raras vezes, não mais pode ser reconstituído. Consequentemente, o conceito de implementação, em matéria ambiental, não pode fugir às exigências de prevenção do dano ambiental.

A fim de melhor compreensão de nosso pensamento sobre a utilização das cautelares penais ambientais, imaginemos os seguintes casos:

a) um cidadão implanta e põe em funcionamento um grande empreendimento potencialmente poluidor (uma indústria química, por exemplo) sem as devidas licenças ambientais, praticando, pois, a conduta descrita no art. 60 da Lei 9.605/98.

b) em seguida, um agente público concede para essa mesma empresa uma licença para o desenvolvimento das atividades, mas de forma flagrantemente nula (dispensa de EIA/RIMA expressamente exigido, colocando em risco a qualidade do ar, a saúde dos moradores do entorno e a conservação de bens culturais situados nas proximidades), praticando, pois, a conduta descrita no art. 67 da Lei 9.605/98.

Chegando tais fatos ao conhecimento do Ministério Público, e não havendo a possibilidade de transação penal ou suspensão condicional do processo (com as necessárias cláusulas de cessação das atividades potencialmente danosas, até regularização, e suspensão dos efeitos da licença ilicitamente concedida), haveria necessidade de se lançar mão, obrigatoriamente, de uma ação civil pública para promover a suspensão das atividades de tal empresa e os efeitos da licença ilegalmente concedida?

Ou tal medida poderia ser requerida pelo Ministério Público no âmbito do próprio processo criminal, evitando que um possível delito mais grave, como aquele previsto no artigo 54 da Lei 9.605/98, que trata da poluição, se consumasse?

Parece-nos que esta última alternativa seria plenamente viável, além de ser a mais indicada, afinal de contas, de que adiantaria o curso do processo penal simplesmente objetivando a imposição de uma sanção penal aos autores se o bem jurídico tutelado pela legislação ambiental continuaria sendo violado, com possibilidade de concretização de maior lesão aos interesses da coletividade?

Segundo a abalizada doutrina de Luiz Guilherme Marinoni, o direito é uma situação juridicamente tutelada, assumindo relevância no instante em que é ameaçado de lesão ou é violado. Quando o direito é violado e surge ao seu titular o direito à sua tutela, pode aparecer uma situação de perigo capaz de obstaculizar a sua efetividade. Nesse momento, para assegurar o exercício dinâmico do direito ou o modo pelo qual se realiza ou é tutelado, ou seja, a tutela prometida ao direito em sua dimensão estática, deve ser utilizada a tutela cautelar, que é a tutela de segurança jurisdicional do direito[7].

Ora, a prestação da tutela jurídica adequada não é responsabilidade apenas do processo civil, posto que os cânones da efetividade do processo são orientadores de toda e qualquer prestação jurisdicional, abrangendo, com maior razão, as consequências derivadas dos crimes lesivos ao meio ambiente em suas diversas facetas (natural, cultural e urbanístico), posto que violam direito indisponível, difuso e intergeracional.

Nesse sentido, comungando da mesma linha de raciocínio, Herman Benjamin[8], a quem novamente nos recorremos, destaca que:

Todas as disciplinas jurídicas que cuidam da questão do meio ambiente apresentam em comum esse desafio: abarcar também os riscos e não somente os danos, pois o prejuízo ambiental é, comumente, de difícil identificação (condutas fluidas e temporalmente protráteis), de larga dimensão e irreparável. Penalmente, isso implica utilização, frequente e legítima, de tipos de perigo abstrato. As sanções, por sua vez, precisam estar ajustadas ao objetivo dissuasório. Em verdade, sem sanções penais (e administrativas) eficientes, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado seria só mais uma declaração formal, esvaziada de qualquer sentido jurídico. Demais disso, a norma penal está numa melhor posição, quando comparada com a civil, para enfrentar os riscos ambientais, atuando na fase do perigo, antes que a degradação ocorra.

Por isso, a fim de se alcançar o verdadeiro desiderato da legislação ambiental, para além dos tipos penais de perigo previstos sobretudo na Lei 9.605/98, ganha extremo relevo no processo penal ambiental a utilização do poder geral de cautela do juiz, cujo fundamento legal básico reside no artigo 3º do CPP ("A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito") combinado com o artigo 301 do novo Código de Processo Civil ("A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito") ou, sendo o caso de cautelar alternativa à prisão, diretamente no artigo 319 do CPP.

Sobre o poder geral de cautela do Poder Judiciário em sede do processo penal, Rogério Pacheco Alves[9] nos ensina que:

Seja no crime, seja no cível, sempre que houver uma concreta possibilidade de esvaziamento do exercício da função soberana de julgar, deve o Magistrado servir-se de mecanismos que razoavelmente o habilitem a garantir a sua jurisdição. E tal possibilidade vai encontrar no Poder Geral de Cautela um dos seus mais poderosos instrumentos também na seara processual penal.

Tal posicionamento doutrinário, a propósito, tem sido acolhido pacificamente pela jurisprudência pátria[10].

Assim, quanto às hipóteses que acima expusemos, ante a flagrante ilegalidade do funcionamento da empresa sem licenciamento ambiental e da concessão arbitrária e ilícita da licença pelo servidor público, caracterizado restaria o fumus boni iuris. De outra sorte, o funcionamento de empresa de grande potencial poluidor constitui evidente perigo de dano ao bem jurídico ambiental, cuja tutela é orientada pelo brocardo in dubio pro natura, restando caracterizado o segundo elemento necessário para a adoção de medida cautelar: o fumus boni iuris.

Logo, seria plenamente viável o requerimento pelo Ministério Público e o deferimento pelo Poder Judiciário, no bojo do processo penal versando sobre a prática dos delitos dos artigos 60 e 67 da Lei 9.605/98, de medida cautelar determinando a suspensão das atividades da empresa e os efeitos da licença ilegalmente concedida, a fim de assegurar a própria finalidade da ação penal ambiental que, como já expusemos, não objetiva apenas a imposição de sanções restritivas de liberdade.

De se ressaltar, em assomo, que a Lei 9.605/98 prevê a suspensão parcial ou total de atividades como pena restritiva de direitos (artigo 8º, III), devendo ser utilizada sempre que as atividades não estiverem obedecendo às prescrições legais (artigo 11), o que demonstra a preocupação da Lei de Crimes Ambientais com o acautelamento do bem jurídico ambiental em situações de mera violação da normatização, independentemente da comprovação de dano concreto.

Ora, se tal medida está prevista como pena a ser aplicada ao fim do processo, óbvio que ela pode ser antecipada, não como sanção, mas como medida cautelar voltada a assegurar a tutela jurídica do bem ambiental, em casos onde o fumus boni iuris e o periculum in mora sejam devidamente demonstrados.

Mutatis mutandis, o STF entende que:

A retenção de passaporte pelo magistrado de primeiro grau tem clara natureza acautelatória, inserindo-se, portanto, no poder geral de cautela, o qual é depreendido de normas processuais dispostas no art. 3º do CPP, e do art. 798 do CPC. 2. 'se o direito brasileiro admite a decretação da prisão temporária e preventiva, entre outras medidas constritivas da liberdade de locomoção da pessoa, no momento anterior ao trânsito em julgado de sentença condenatória, com muito mais razão revela-se admissível a imposição de condições para o acusado durante o processo, como a entrega do passaporte, a necessidade de obtenção de autorização judicial para empreender viagens ao exterior, entre outras' (HC 94.147/RJ, rel. min. Ellen Gracie, DJE 13/6/2008). Ordem indeferida (STF; HC 101.830; SP; 1ª Turma; rel. min. Luiz Fux; Julg. 12/4/2011; DJE 4/5/2011; Pág. 21).

Enfim, como é de natureza pública incondicionada a ação penal em relação a todos os crimes ambientais (artigo 26 da Lei 9.605/98), toca aos membros do Ministério Público brasileiro o dever de se valerem das medidas cautelares penais necessárias ao desempenho de seu múnus na tutela do meio ambiente, contribuindo para a efetiva implementação do farto arcabouço jurídico que o ordenamento brasileiro nos oferece para o cumprimento de tal mister.

Do Poder Judiciário, parafraseando Piero Calamandrei, só podemos esperar que, na vida prática, ele propicie aquela tutela que em abstrato a lei nos promete. Só se juiz for capaz de pronunciar em favor do meio ambiente a palavra da Justiça, poderemos perceber que o direito não é apenas uma sombra vã.


[1] O Estado Teatral e a Implementação do Direito Ambiental. BDJUR, p. 4-5
[2] FREITAS, Gilberto Passos de. Ilícito Penal Ambiental e Reparação do Dano. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 128-129.
[3] Fundamentos de Direito Penal Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey. 2015. p. 349.
[4] Direito Ambiental Penal Reparador é expressão utilizada pelo desembargador Eládio Lecey, em seu artigo Direito ambiental penal reparador: composição e reparação do dano ao ambiente: reflexos no juízo criminal e a jurisprudência. Revista de Direito Ambiental. vol. 45/2007. p. 92 – 106.
[5] Recurso Especial 1.524.466 – SC (2015/0073284-0) – j. 8 de novembro de 2016 – rel. ministro Napoleão Nunes Maia Filho.
[6] A implementação da legislação ambiental: o papel do Ministério Público. In: BENJAMIN, Antônio Herman V. (Coord.). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1993.p. 365.
[7] Tutela de urgência e tutela de evidência. Soluções processuais diante do tempo da justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2017. p. 81.
[8] Crimes contra o meio ambiente: uma visão geral. Ministério Público e Democracia. 12º Congresso Nacional do Ministério Público. Livro de Teses, Tomo II, p. 393.
[9] O poder geral de cautela no processo penal. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro. nº 15. Jan-jun. 2002. p. 237.
[10] Nesse sentido: PROCESSUAL PENAL. IMPOSIÇÃO DE CONDIÇÕES JUDICIAIS (ALTERNATIVAS À PRISÃO PROCESSUAL). POSSIBILIDADE. PODER GERAL DE CAUTELA. PONDERAÇÃO DE INTERESSES. ART. 798, CPC. ART. 3º, CPP. (STF; HC 94.147-8; RJ; Segunda Turma; Relª Min. Ellen Gracie; Julg. 27/05/2008; DJE 13/06/2008; Pág. 99). Além das cautelares penais expressas – todas elas com mero fim de garantia para reparação dos danos do crime -, o poder geral de cautela é ínsito à jurisdição. Ou seja, como decorrência do constitucional direito de ação, pode o juiz criar medidas inominadas de cautela, sempre que necessárias à melhor solução do justo – sob pena de prejuízo aos próprios fins do processo (TRF 4ª Região – MS 200404010515490 UF: PR – J. 28/06/2005 – Rel. Néfi Cordeiro).

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça em Minas Gerais, especialista em Direito Ambiental, secretário da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente, professor de Direito do Patrimônio Cultural, integrante da Comissão de Memória Institucional do Conselho Nacional do Ministério Público e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos) Brasil.

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