Interesse Público

Garantias existem para atrair bons servidores, não para serem privilégios

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29 de setembro de 2016, 8h00

Spacca
Recentemente, o ex-Presidente Lula, em performances notáveis, externou opiniões interessantes a respeito do concurso público e dos  servidores públicos que ocupam cargos efetivos. No primeiro ato, sentenciou:

"Eu, de vez em quando, falo que as pessoas achincalham muito a política, mas a posição mais honesta é a do político. Sabe por quê? Porque todo ano, por mais ladrão que ele seja, ele tem que ir pra rua encarar o povo e pedir voto. O concursado não. Se forma na universidade, faz um concurso e tá com um emprego garantido para o resto da vida"[1].

Abstendo de analisar o contexto no qual o discurso foi proferido e a colocação peculiar a respeito da “profissão mais honesta”, as palavras refletem o sentimento disseminado de que o servidor público é um privilegiado, sobretudo em razão da estabilidade, que lhe garantiria emprego para o resto da vida.

A estabilidade é atributo do vínculo jurídico existente entre o Estado e o ocupante de cargo efetivo. Esse atributo, em síntese, limita as possibilidades de desfazimento do vínculo às hipóteses estatuídas na Constituição da República. A despeito do entendimento que parece prevalecer no senso comum, a estabilidade não configura privilégio do agente público, tampouco mera benesse concedida por parte do Estado. Nas palavras precisas da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha:

“A estabilidade jurídica do vínculo administrativo firmado entre o  servidor e a pessoa estatal tem como finalidade, primeiramente, garantir a qualidade do serviço prestado por uma burocracia estatal democrática, impessoal e permanente. Tanto conjuga o profissionalismo que deve predominar no serviço público contemporâneo (e profissionais não são descartáveis, até mesmo porque Estado se aprende e não da noite para o dia) com a impessoalidade, que impede práticas nepotistas e personalistas na Administração Pública. Por isso é que a estabilidade não pode ser considerada uma garantia do servidor, mas, antes, uma segurança para  o cidadão. Ela confere estabilidade ao próprio serviço público e à Administração Pública, marcando uma qualidade que dá segurança à sociedade quanto à continuidade das atividades que lhe são essenciais”[2].

A estabilidade, com efeito, é uma das garantias reconhecidas pelo regime jurídico público aos servidores ocupantes de cargos efetivos — aqueles que ingressaram nos quadros da Administração por concurso público. Essas garantias objetivam justamente assegurar o desempenho eficiente e impessoal do servidor público das mudanças de estilo, humor, prioridade e probidade dos agentes políticos. A Constituição assegura ao servidor estável, dentre outros, os direitos de não ser exonerado (artigo 41, parágrafo 1º); de não ter a sua remuneração reduzida (artigo 37, inciso XV) ou corroída pela inflação (artigo 37, inciso X), além de aposentadoria em condições mais favoráveis do que as vigentes para os trabalhadores em geral.

Sem meias palavras, a Constituição fornece todas as garantias para que o servidor efetivo trabalhe para bem servir a sociedade, sem se preocupar com perseguições ou retaliações em razão de eventualmente contrariar pedidos e ordens que ofendam o interesse público. O servidor público que atenta contra o público o faz por falta de caráter, não por falta de regras protetivas.

Em razão de sua natureza instrumental, a estabilidade não é privilégio. Não pode ser escudo dos que se recusam a trabalhar ou dos que não querem se dedicar a bem servir a sociedade. Por essa razão, o servidor estável pode perder o cargo mediante processo administrativo ou sentença judicial transitada em julgado. Infelizmente, não houve (nem parece existir) qualquer preocupação do legislativo em regulamentar a possibilidade de perda do cargo por procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar (artigo 41, parágrafo 1º, inciso III). Trata-se de importante instrumento para retirar do serviço público os agentes que apresentam desempenho abaixo do que se espera e do que os cidadãos necessitam.

A despeito das prerrogativas, cuja finalidade é proteger o interesse público, podem existir privilégios que não encontram justificativa semelhante. Um privilégio reside na possibilidade de afastamento remunerado, nos três meses anteriores ao pleito, dos servidores públicos candidatos em eleições[3]. Em não existindo regra similar nos vínculos empregatícios em geral, a regra materializa privilégio injustificável justamente no processo eleitoral, campo de vigência soberana e indiscutível do princípio da igualdade. Além disso, a possibilidade de afastamento remunerado acaba por estimular agentes à espera de uma oportunidade lícita para, ignorando princípios éticos, se dedicarem ao ócio ou a outros afazeres diferentes do serviço público que os remunera[4].

Essa breve digressão sobre prerrogativas e privilégios traz à tona a segunda declaração do ex-presidente Lula. Nesse segundo ato, averbou: "Queria dizer para meus algozes: vocês têm um concurso, mas não foram escolhidos para serem deuses”[5]. Colocação extremamente feliz, novamente independente do contexto em que foi proferida. Servidor público existe para servir o público, não para servir-se dele. Prerrogativas, como a estabilidade, existem para atrair pessoas vocacionadas e preparadas; não foram feitas para os servidores que querem se locupletar ou que não querem se dedicar — para estes, a lei já prevê remédios que estão prontos para serem aplicados.


[1] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/09/lula-reage-denuncia-do-mp-em-longo-pronunciamento.html
[2] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p.252
[3]  De acordo com a Lei 8.112/90: “Art. 86.  O servidor terá direito a licença, sem remuneração, durante o período que mediar entre a sua escolha em convenção partidária, como candidato a cargo eletivo, e a véspera do registro de sua candidatura perante a Justiça Eleitoral.  § 1o  O servidor candidato a cargo eletivo na localidade onde desempenha suas funções e que exerça cargo de direção, chefia, assessoramento, arrecadação ou fiscalização, dele será afastado, a partir do dia imediato ao do registro de sua candidatura perante a Justiça Eleitoral, até o décimo dia seguinte ao do pleito.  § 2o  A partir do registro da candidatura e até o décimo dia seguinte ao da eleição, o servidor fará jus à licença, assegurados os vencimentos do cargo efetivo, somente pelo período de três meses”.
[4] http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/10/29/mpf-investiga-mais-de-mil-servidores-publicos-por-candidaturas-fraudulentas-em-mg.htm
[5] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-digo-aos-meus-algozes-voces-tem-um-concurso-mas-nao-foram-escolhidos-para-serem-deuses,10000077737

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