Opinião

Teste de integridade proposto pelo MPF sacrifica garantias e direitos fundamentais

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28 de setembro de 2016, 6h14

A realização de “teste de integridade” dos agentes públicos no âmbito da Administração Pública é uma das mais polêmicas possibilidades inseridas entre as “10 Medidas Contra a Corrupção”.  Apesar de contar com mais de dois milhões de assinaturas, não se deve esquecer que a opinião pública aprecia fatos e ações hiperbólicas e amiúde desqualifica o que não parece obviedade. Portanto, em que pese a boa intencionalidade do Ministério Público Federal em sua louvável e bem-sucedida cruzada contra a corrupção, não custa contribuir para a informação e o debate, ferramentas essenciais ao Estado Democrático de Direito, cujos atos de poder devem ser normatizados e pautados pela clareza, racionalidade e credibilidade. 

Pelo projeto, órgãos públicos — corregedorias, ouvidorias e controladorias, com ciência do Ministério Público — poderiam aplicar nos seus agentes, sem o seu conhecimento, o referido teste que, na modalidade aleatória ou na dirigida, consistiria na simulação de situações construídas com o propósito de testar a conduta moral e a capacidade delitiva do servidor contra a Administração Pública.

Embora o objetivo do teste seja “criar, preventivamente, a percepção de que todo o trabalho do agente público está sujeito a escrutínio e, a qualquer momento, a atividade pode estar sendo objeto de análise, inclusive sob o ponto de vista de honestidade”, é difícil supor que a justificativa para a sua aplicação não parta “da premissa da desconfiança sobre os servidores em geral, mas sim da noção de que todo agente público tem um dever de transparência e accountability, sendo natural o exame de sua atividade”.

A honestidade ou a capacidade de resistência a pressões instauradas por dilemas éticos que o “teste de integridade” pretende aferir se dá em contexto artificialmente engendrado pelo próprio Estado e em momento determinado, podendo culminar com a punição da suposta intenção delitiva do agente ou, pior, instaurar uma perniciosa técnica de poder sobre as condutas e subjetividades.

Todavia, estudos apontam que a desonestidade além de comportar vários graus, não sofre tanta influência quanto se pensa da probabilidade de flagrante e punição. Tende-se a trapacear não essencialmente com base na análise racional do custo-benefício de situações, mas até o limite que permite o proveito da ação sem arranhar muito a autoimagem. Ademais, sucumbir às tentações é comportamento levado a efeito por uma maioria que, felizmente, se atém a limites mais modestos de trapaça que se distanciam da imensa flexibilidade dos padrões morais dos grandes desonestos (Ariely, 2012).

Originalmente concebido na esfera da Common Law, mais precisamente na década de noventa no Departamento de Polícia de Nova Iorque, o integrity test foi posteriormente adotado na Austrália e no Reino Unido. A exemplo de outros institutos que temos importado ou insistido em incorporar ao nosso sistema jurídico, trata-se de uma pragmática medida voltada para uma possibilidade e claramente destinada a inibir delitos, haja vista estimular o sentimento de vigilância entre os agentes, cientes de que eventuais vantagens indevidas ofertadas podem se constituir provas flagrantes para fins disciplinares e para instrução de ações cíveis, administrativas e penais.

Análogo ao polígrafo, o “teste de integridade” guarda semelhanças com o flagrante preparado, cuja ação é decisiva para a prática do crime flagrado e colide com a Súmula 145/STF que enuncia que “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. Não custa lembrar que, no nosso sistema penal, a pena é limitada pela culpa aferida através da prática de uma conduta objetiva e subjetivamente típica, antijurídica e culpável. Ainda assim, como nenhum direito é absoluto, mesmo sendo fundamental, nada impede que uma norma venha a contemplar o flagrante como eventualmente benéfico para fins de prevenção de crimes de improbidade e corrupção.

Como se não bastasse o sacrifício de garantias e direitos fundamentais em prol de um combate mais célere ou efetivo contra a corrupção, há de se considerar os riscos de tal teste se converter em instrumento de investigação de crimes pretéritos, punição de crime impossível, estímulo à desconfiança e hostilidade no ambiente de trabalho, assédio moral e teste de caráter de viés lombrosiano, ou seja, em violação da dignidade humana perpetrada por um Estado policialesco e ardiloso.

É fato que a corrupção pode ser combatida por outros meios juridicamente existentes, realidade corroborada pelos resultados que vem sendo alcançados pela "lava jato". Mas os fins perseguidos, por mais nobres e socialmente relevantes, não devem justificar o uso de meios desvirtuados. A autoridade ilimitada concedida ao Estado cedo ou tarde o transforma em poder arbitrário.

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