Tribuna da Defensoria

Mediação prevista pelo novo CPC não pode se tornar mecanismo de procrastinação

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27 de setembro de 2016, 12h55

O Código de Processo Civil continua recebendo o adjetivo “novo” quase sempre que é mencionado, sobretudo no cotidiano forense. E é justamente desse aspecto que esta coluna busca tratar, sob pena de se tornar uma arena de debates acadêmicos sem aplicação prática — quando a atuação do defensor público é, quiçá, a mais próxima da realidade do brasileiro.

Talvez grande parte dos aplicadores do Direito fique com a impressão de que o código não é tão novo assim, reconhecendo a legislação revogada nas linhas do diploma vigente (maior sinal disso é o estágio atual, que brevemente nos deixará, de manuseio dos códigos comparados). Alguns temas, contudo, não enganam: são inovações reais.

É o caso do incidente de resolução de demandas repetitivas e do de assunção de competência, da cláusula geral permissiva de negócios jurídicos e, como nos interessará hoje de forma especial, dos meios adequados de resolução de litígios, notadamente a mediação e a conciliação.

Inicialmente, aliás, vale a pena ressaltar um aspecto relevantíssimo: é tempo de esquecer a alcunha de métodos alternativos de resolução de litígios. Como bem notaram Franklyn Roger e Diogo Esteves, nesta coluna[1], e Helena Soleto Muñoz, titular da Universidad Carlos III de Madri, em sua exposição na recentíssima Jornada Ibero-americana de Direito Processual[2], mais preciso é batizá-los de métodos adequados de resolução de conflitos, uma vez que, efetivamente, certos imbróglios melhor se desfazem através deles. Exemplo chamativo é o da mediação, figura das que mais vêm recebendo atenção por parte dos tribunais, especialmente do ponto de vista organizacional.

Tal esforço, entretanto, claramente não atingiu o patamar esperado pelo legislador, que desenhou uma vacatio legis de um ano, esperançoso de que os centros de mediação que os tribunais deveriam criar (no artigo 165, o verbo está no imperativo, a propósito) já tivessem saído do papel. Doce ilusão: a prática vem mostrando que o que se tem feito é, quando muito, marcar a audiência de conciliação. Em alguns juízos, aliás, ocorrem até mesmo em paralelo à pauta ordinária, demonstrando a prioridade que (não) vem recebendo.

Esse quadro é colidente com as normas fundamentais do código de 2015, que, em seu artigo 3º, morada legal da inafastabilidade da jurisdição (leia-se “acesso à justiça”), estatuiu que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”. Outro verbo no imperativo, capaz de gerar reflexos práticos como a suspensão do feito enquanto perdurarem as tentativas[3].

Atento a esse cenário, o STJ e o CJF realizaram, há poucas semanas, a primeira Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Conflitos. Como é hábito, diversos enunciados emergiram daí[4], em sua maioria buscando resolver problemas pragmáticos pontuais, colaborando para melhor formar a cultura da desjudicialização dos litígios, com a formação nas faculdades[5], nas escolas[6] e até nos presídios[7], enquanto verdadeira política pública[8].

Veja-se, nessa linha, o enunciado 22[9], que demonstra que a noção de sucesso ou insucesso da prática da mediação não pode, em absoluto, ser tida a partir de uma análise quantitativa, mas sim qualitativa.

Não se trata, contudo, de estímulo cego à mediação pela mediação. Uma visão correta do interesse de agir recomenda, efetivamente, que se demonstre, já na exordial, a tentativa pretérita infrutífera de resolver o problema[10]. O enunciado 29 afasta a obrigação da audiência referida quando o feito houver sido precedido por tentativa de autocomposição, desde que (i) tenha versado sobre o mesmo objeto e (ii) sido conduzida por conciliador ou mediador capacitado[11].

Contudo, pode-se ir além: afigurando-se improvável uma solução consensual, ante os fracassos anteriores, não é recomendável sua designação pelo juiz. Estamos diante de uma hipótese de dispensa além daquela do artigo 334 §4º, que se limita ao desinteresse expresso de ambas as partes. Amplia-se a ideia para incluir as hipóteses em que uma das partes já demonstrou sua indisposição latente. Isso porque, em uma ponderação de valores cruciais almejados pelo código (a busca pela solução consensual e a duração razoável do processo), a balança poderá pesar, in concreto, para o mais célere andamento do processo.

Insere-se, aí, por exemplo, o típico caso no qual a inicial vem recheada de protocolos de ligações telefônicas entre o consumidor e o fornecedor, ou que diversos ofícios expedidos restaram ignorados. Deve-se repelir o uso abusivo das demonstrações de interesse na autocomposição curiosamente nascidas com o ajuizamento da ação. Durante meses, a parte refutou qualquer acordo, mas com a mera citação surge um súbito desejo pela pacificação social.

Essa postura hipócrita não raras vezes vem à tona no próprio dia da audiência, quando a parte ré, a única a insistir em sua designação, não apresenta qualquer proposta de acordo. Já se cogita, em tais casos, de uma penalidade, consistente na multa por litigância de má-fé. Afinal de contas, esse proceder é outra coisa que não opor resistência ao andamento do processo (art. 80, IV)[12]?

Em se tratando de assistidos da Defensoria Pública, o tom se torna ainda mais dramático, pois se o deslocamento de per si já é fatigante físico e moralmente para os litigantes mais instruídos, que dizer para a parcela da população mais afastada de uma digna educação em direitos? E mais: a hipossuficiência econômica acentua a via crucis percorrida até a sala de audiência de conciliação, redimensionando a decepção ante a postura de desinteresse do réu em uma solução juridicamente agradável.

A título de conclusão: não se busca diminuir o intento da codificação de priorizar a solução consensual do litígio, perseguindo meios adequados para desatar a teia processual. Jamais se negociará a mediação ou a conciliação quando existirem esperanças reais no atingimento de seus objetivos — isto é, quando forem reais meios para o acesso à justiça[13]. Em certos casos, porém, a má-fé fala mais alto, não devendo ser minimamente prestigiada na atmosfera cooperativa que o (novo) código buscou instaurar.


[1] SILVA, Franklyn Roger Alves; ESTEVES, Diogo. Os meios adequados de solução de controvérsias e a Defensoria Pública. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-ago-30/metodos-adequados-solucao-controversias-defensoria.
[2] Evento ocorrido nos últimos dias 14 a 16, em Porto de Galinhas (PE).
[3] Enunciado 21 da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Conflitos do CJF/STJ: “É facultado ao magistrado, em colaboração com as partes, suspender o processo judicial enquanto é realizada a mediação, conforme o art. 313, II, do Código de Processo Civil, salvo se houver previsão contratual de cláusula de mediação com termo ou condição, situação em que o processo deverá permanecer suspenso pelo prazo previamente acordado ou até o implemento da condição, nos termos do art. 23 da Lei n.13.140/2015”.
[4] A íntegra dos enunciados pode ser aqui.
[5] Enunciados 23 e 24: “Recomenda-se que as faculdades de direito mantenham estágios supervisionados nos escritórios de prática jurídica para formação em mediação e conciliação e promovam parcerias com entidades formadoras de conciliadores e mediadores, inclusive tribunais, Ministério Público, OAB, defensoria e advocacia pública” e “Sugere-se que as faculdades de direito instituam disciplinas autônomas e obrigatórias e projetos de extensão destinados à mediação, à conciliação e à arbitragem, nos termos dos arts. 2º, § 1º, VIII, e 8º, ambos da Resolução CNE/CES n. 9, de 29 de setembro de 2004”.
[6] Enunciado 27: “Recomenda-se o desenvolvimento de programas de fomento de habilidades para o diálogo e para a gestão de conflitos nas escolas, como elemento formativo-educativo, objetivando estimular a formação de pessoas com maior competência para o diálogo, a negociação de diferenças e a gestão de controvérsias”.
[7] Enunciado 38: “O Estado promoverá a cultura da mediação no sistema prisional, entre internos, como forma de possibilitar a ressocialização, a paz social e a dignidade da pessoa humana”.
[8] Enunciado 28: “Propõe-se a implementação da cultura de resolução de conflitos por meio da mediação, como política pública, nos diversos segmentos do sistema educacional, visando auxiliar na resolução extrajudicial de conflitos de qualquer natureza, utilizando mediadores externos ou capacitando alunos e professores para atuarem como facilitadores de diálogo na resolução e prevenção dos conflitos surgidos nesses ambientes.”
[9] “A expressão ‘sucesso ou insucesso’ do art.167, § 3º, do Código de Processo Civil não deve ser interpretada como quantidade de acordos realizados, mas a partir de uma avaliação qualitativa da satisfação das partes com o resultado e com o procedimento, fomentando a escolha da câmara, do conciliador ou do mediador com base nas suas qualificações e não nos resultados meramente quantitativos”.
[10] É a posição há muito defendida pelo  grande mestre Humberto Dalla, referência absoluta no tema (A mediação e a necessidade de sua sistematização no processo civil brasileiro. In: Revista Eletrônica de Direito Processual. Disponível em www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/download/23027/16438).
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/viewFile/18068/13322
[11] “Caso qualquer das partes comprove a realização de mediação ou conciliação antecedente à propositura da demanda, o magistrado poderá dispensar a audiência inicial de mediação ou conciliação, desde que tenha tratado da questão objeto da ação e tenha sido conduzida por mediador ou conciliador capacitado”
[12] Esse previsível escudo defensivo procrastinatório foi alertado por Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Guilherme Kronemberg Hartmann (A audiência de conciliação ou de mediação no novo código de processo civil. In: Revista de processo, v. 253, 2016. p. 170).
[13] Para um diálogo entre a mediação e o acesso à justiça, ver MAZZOLA, Marcelo. O novo CPC e uma visão contemporânea do acesso à justiça. Disponível em: http://jcrs.uol.com.br/mobile/index.php?materia=/_conteudo/2016/02/cadernos/jornal_da_lei/480434-o-novo-cpc-e-uma-visao-contemporanea-do-acesso-a-justica.html.

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