Opinião

Não cabe lamento judicial de magistrado ao receber a denúncia

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27 de setembro de 2016, 8h34

A “lava jato” brinda-nos com mais uma “pérola jurídica”, quando o magistrado ao receber a denúncia contra Lula e dona Marisa, destacou:

Lamenta o Juízo em especial a imputação realizada contra Marisa Letícia Lula da Silva, esposa do ex-presidente. Muito embora haja dúvidas relevantes quanto ao seu envolvimento doloso, especificamente se sabia que os benefícios decorriam de acertos de propina no esquema criminoso da Petrobras, a sua participação específica nos fatos e a sua contribuição para a aparente ocultação do real proprietário do apartamento é suficiente por ora para justificar o recebimento da denúncia também contra ela e sem prejuízo de melhor reflexão no decorrer do processo”. 

Erra-se duas vezes, pois não cabe o falacioso lamento judicial ao receber a denúncia, pois o sentimento pessoal do magistrado não deve vir para os autos, mesmo quando verdadeiro; por outro lado, deveria ter rejeitado a inicial acusatória por inépcia e absoluta atipicidade da imputação contra dona Marisa. Deixaria de ser falácia se viesse acompanhada de sua rejeição, o que não ocorreu. O magistrado é soberano no ato processual de receber ou rejeitar a denúncia, claro, desde que fundamentada. Devia tê-la rejeitado de plano por total inadequação típica. O simples “saber” ou ter conhecimento da existência de algum fato criminoso praticado por outrem não transforma ninguém em coautor desse crime, como demonstraremos adiante.

Trata-se, a rigor, em um error in judicando do magistrado, e não apenas de um simples error in procedendo, o que torna a situação muito mais grave ao olhar atento dos especialistas em matéria processual penal, da qual, aliás, o magistrado é um dos maiores experts do país, pois é doutor em processo penal. Só aos acusados não é dado errar, pois a punição impõe-se com todo rigor da lei, mas o magistrado pode apenas pedir “desculpas ao STF” por eventuais erros cometidos, como já ocorreu nessa operação, como se fora uma novel espécie de escusa absolutória.

A doutrina, nacional e estrangeira, destaca os seguintes requisitos par a configuração do chamado “concurso de pessoas” na prática de crimes, ou seja, a concorrência de mais de um indivíduo na realização de uma conduta delituosa. Esse concurso de pessoas divide-se em coautoria e participação estrito senso. Vejamos, a seguir, sucintamente, quais são esses requisitos

Requisitos do concurso de pessoas
Para o aperfeiçoamento do concurso eventual de pessoas é indispensável a presença de elementos de natureza objetiva e subjetiva, além de alguns outros.

a) Pluralidade de participantes e de condutas
Esse é o requisito básico do concurso eventual de pessoas: a concorrência de mais de uma pessoa na execução de uma infração penal. Embora todos os participantes desejem contribuir com sua ação na realização de uma conduta punível, não o fazem, necessariamente, da mesma forma e nas mesmas condições. Enquanto alguns praticam o fato material típico, representado pelo verbo núcleo do tipo, outros limitam-se a instigar, induzir, auxiliar moral ou materialmente o executor ou executores praticando atos que, em si mesmos, seriam atípicos.

b) Relevância causal de cada conduta
A conduta típica ou atípica de cada participante deve integrar-se à corrente causal determinante do resultado. Nem todo comportamento constitui “participação” punível, pois precisa ter “eficácia causal”, provocando, facilitando ou ao menos estimulando a realização da conduta principal. Assim, no exemplo daquele que, querendo participar de um homicídio, empresta uma arma de fogo ao executor, que não a utiliza e tampouco se sente estimulado ou encorajado com tal empréstimo a executar o delito. Aquele não pode ser tido como partícipe pela simples e singela razão de que o seu comportamento foi irrelevante, isto é, sem qualquer eficácia causal.

c) Vínculo subjetivo entre os participantes
Deve existir também, repetindo, um liame psicológico entre os vários participantes, ou seja, consciência de que participam de uma obra comum. A ausência desse elemento psicológico desnatura o concurso eventual de pessoas, transformando-o em condutas isoladas e autônomas. Somente a adesão voluntária, objetiva (nexo causal) e subjetiva (nexo psicológico), à atividade criminosa de outrem, visando à realização do fim comum, cria o vínculo do concurso de pessoas e sujeita os agentes à responsabilidade pelas consequências da ação.

d) Identidade de infração penal
Para que o resultado da ação de vários participantes possa ser atribuído a todos, tem que consistir em algo juridicamente unitário. Não é propriamente um requisito, mas consequência jurídica diante das outras condições. Alguém planeja a realização da conduta típica, ao executá-la, enquanto um desvia a atenção da vítima, outro lhe subtrai os pertences e ainda um terceiro encarrega-se de evadir-se do local com um produto do furto. Respondem todos por um único tipo penal ou não se reconhece a participação ou o próprio concurso na empresa criminosa.

Autoria de crime
O conceito de autoria pode abranger todos os intervenientes no crime, quando partimos de um sistema unitário de autor, ou pode estar limitado à conduta dos agentes principais, se partimos de um sistema diferenciador de autor. Neste tópico trataremos, especificamente, da autoria como conceito restrito, nos termos do sistema diferenciador, adotado pela Reforma Penal de 1984.

Um sistema verdadeiramente diferenciador de autor caracteriza-se, fundamentalmente, pela adoção do princípio de acessoriedade da participação, pois é através deste princípio que podemos entender a participação como uma intervenção secundária, cuja punibilidade se estabelece em função de determinados atributos da conduta do autor. Além disso, a adoção desse princípio conduz à necessidade de estabelecer critérios de distinção entre as condutas de autoria e as condutas de participação, tema que será analisado nos tópicos seguintes. A autoria dentro de um sistema diferenciador não pode circunscrever-se a quem pratica pessoal e diretamente a figura delituosa, mas deve compreender também quem se serve de outrem como “instrumento” (autoria mediata).

Teoria do domínio do fato
Trata-se, a rigor, de uma elaboração superior às teorias até então conhecidas, que distingue com clareza autor e partícipe, admitindo com facilidade a figura do autor mediato, além de possibilitar melhor compreensão da coautoria. Essa teoria surgiu em 1939 com o finalismo de Welzel[1] e sua tese de que nos crimes dolosos é autor quem tem o controle final do fato. Mas foi através da obra de Roxin, Täterschaft und Tatherrschaft inicialmente publicada em 1963, que a teoria do domínio do fato foi desenvolvida, adquirindo uma importante projeção internacional, tanto na Europa como na América Latina. Depois de muito tempo, Claus Roxin reconheceu que o que lhe preocupava eram os crimes cometidos pelo nacional-socialismo. Na ótica do então jovem professor alemão, quem ocupasse uma posição dentro do chamado aparato organizado de poder e desse o comando para que se executasse um crime, teria de responder como autor e não só como partícipe, ao contrário do que entendia a doutrina dominante na época. No entanto, a teoria do domínio do fato ganhou ao longo dos anos uma dimensão muito maior do que a simples referência aos crimes cometidos à época do nacional-socialismo, alcançando sofisticado desenvolvimento com os trabalhos levados a efeito pelo aclamado professor Claus Roxin.

Nem uma teoria puramente objetiva nem outra puramente subjetiva são adequadas para fundamentar a essência da autoria e fazer, ao mesmo tempo, a delimitação correta entre autoria e participação. A teoria do domínio do fato, partindo do conceito restritivo de autor, tem a pretensão de sintetizar os aspectos objetivos e subjetivos, impondo-se como uma teoria objetivo-subjetiva. Embora o domínio do fato suponha um controle final, “aspecto subjetivo”, não requer somente a finalidade, mas também uma posição objetiva que determine o efetivo domínio do fato. Autor, segundo essa teoria, é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato. Mas é indispensável que resulte demonstrado que quem detém posição de comando determina a prática da ação, sendo irrelevante, portanto, a simples “posição hierárquica superior”, sob pena de caracterizar autêntica responsabilidade objetiva. Autor, enfim, é não só o que executa a ação típica (autoria imediata), como também aquele que se utiliza de outrem, como instrumento, para a execução da infração penal (autoria mediata). Como ensina Welzel, “a conformação do fato mediante a vontade de realização que dirige de forma planificada é o que transforma o autor em senhor do fato”[2]. No entanto, não só a vontade de realização resulta decisiva para a autoria, mas também a importância material da parte que cada interveniente assume no fato. Em outros termos, para que se configure o domínio do fato é necessário que o autor tenha controle sobre o executor do fato, e não apenas ostente uma posição de superioridade ou de representatividade institucional, como se chegou a interpretar na jurisprudência brasileira. Ou seja, é insuficiente que haja indícios de sua ocorrência, aliás, como é próprio do Direito Penal do fato, que exige um juízo de certeza consubstanciado em prova incontestável.

A teoria do domínio do fato reconhece a figura do autor mediato, desde que a realização da figura típica apresente-se como obra de sua vontade reitora, sendo reconhecido como o “homem de trás”, e controlador do executor. Essa teoria tem as seguintes consequências: 1ª) a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamentam sempre a autoria; 2ª) é autor quem executa o fato utilizando outrem como instrumento (autoria mediata); 3ª) é autor o coautor que realiza uma parte necessária do plano global (“domínio funcional do fato”)[3], embora não seja um ato típico, desde que integre a resolução delitiva comum. Ou, dito de outros termos, numa linguagem roxiniana[4], o domínio do fato pode ser exercido das seguintes formas: (i) pelo domínio da ação, que ocorre quando o agente realiza pessoalmente o fato típico, agindo, por conseguinte, como autor e não como simples partícipe (instigador ou cúmplice); (ii) pelo domínio da vontade, que ocorre quando o executor, isto é, o autor imediato, age mediante coação ou incorrendo em erro, não tendo domínio de sua vontade, que é controlada ou dominada pelo “homem de trás”, que é o autor mediato, como veremos adiante. Assim, o “homem de trás” tem o domínio da vontade e o controle da ação, sendo o verdadeiro autor, ainda que mediato; (iii) pelo domínio funcional do fato, que ocorre na hipótese de coautoria, em que há, na dicção de Jescheck, uma exemplar divisão de trabalho, quando o agente realiza uma contribuição importante, ainda que não seja um ato típico, mas se revele necessária no plano global.

Coautoria
Coautoria é a realização conjunta, por mais de uma pessoa, de uma mesma infração penal. Coautoria é em última análise a própria autoria. É, portanto, a atuação consciente de estar contribuindo na realização comum de uma infração penal. Essa consciência constitui o liame psicológico que une a ação de todos, dando o caráter de crime único. A resolução comum de executar o fato é o vínculo que converte as diferentes partes em um todo único. Todos participam da realização do comportamento típico, sendo desnecessário que todos pratiquem o mesmo ato executivo.

Participação em sentido estrito
A participação em sentido estrito, como espécie do gênero concurso de pessoas, é a intervenção em um fato alheio, o que pressupõe a existência de um autor principal. O partícipe não pratica a conduta descrita pelo preceito primário da norma penal, mas realiza uma atividade secundária que contribui, estimula ou favorece a execução da conduta proibida. Não realiza atividade propriamente executiva. A norma que determina a punição do partícipe implica uma ampliação da punibilidade de comportamentos que, de outro modo, seriam impunes, pois as prescrições da Parte Especial do Código não abrangem o comportamento do partícipe.

Nosso CP consagra duas espécies de participação, a saber:

a) Instigação: ocorre a instigação quando o partícipe atua sobre a vontade do autor, no caso, do instigado. Instigar significa criar na mente de outra pessoa a ideia de cometer um crime, bem como animar, estimular, ou reforçar uma ideia existente. O instigador limita-se a provocar ou reforçar a resolução criminosa do autor, não tomando parte nem na execução nem no domínio do fato. Induzir significa suscitar uma ideia. Tomar a iniciativa intelectual, fazer surgir no pensamento do autor uma ideia até então inexistente; b) Cumplicidade: essa é a participação material, em que o partícipe exterioriza a sua contribuição através de um comportamento, de um auxílio. Pode efetivar-se, por exemplo, através do empréstimo da arma do crime, de um veículo para deslocar-se com mais facilidade, de uma propriedade etc. Essa contribuição pode ocorrer desde a fase da preparação até a fase executória do crime.

Por fim, qualquer que seja a forma ou espécie de participação, é indispensável a presença de dois requisitos: eficácia causal e consciência de participar na ação de outrem. É insuficiente a exteriorização da vontade de participar. Não basta realizar a atividade de partícipe se esta não influir na atividade final do autor. Não tem relevância a participação se o crime não for, pelo menos, tentado.

Para concluir, a simples ciência da realização de uma infração penal caracteriza, no máximo, “conivência”, que não é punível, a título de participação, pelo direito penal, se não constituir, pelo menos, alguma forma de contribuição causal, ou, então, constituir, por si mesma, uma infração típica. Tampouco será responsabilizado como partícipe quem, tendo ciência da realização de um delito, não o denuncia às autoridades, salvo se tiver o dever jurídico de fazê-lo, como é o caso da autoridade pública.

O cidadão comum não é obrigado a denunciar ou dedurar ninguém pela prática de qualquer crime às autoridades, e o fato de saber que alguém praticou ou está praticando algum crime e não denunciar não transforma ninguém em autor ou partícipe desse crime. As autoridades públicas tem o dever de denunciar eventual conhecimento de crimes, o cidadão comum não têm esse dever. Isso é elementar, meu caro Watson, em todos os países democráticos de direito. Somente concorre para o crime quem tem o dever jurídico de informar (artigo 13, § 2º do CP) a autoridade competente, que não é o caso de dona Marisa, e muito menos trair o marido para denunciá-lo de qualquer coisa.


[1]. Jescheck, Tratado, cit., p. 897, especialmente a nota n. 28.

[2]. Welzel, Hans, Derecho Penal alemán, Santiago, Ed. Jurídica, 1970, p. 145.

[3]. Esse conceito é de Roxin, apud Mir Puig, Santiago, Derecho Penal, Barcelona, Ed. PPU, 1985, p. 313.

[4]. Roxin, Claus. Autoria y domínio del hecho en Derecho Penal, Madri, Marcial Pons, 2000, p. 147.  

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