MP no Debate

É preciso consolidar isonomia e sepultar cultura de privilégios

Autor

  • Roberto Livianu

    é procurador de Justiça em São Paulo doutor em Direito pela USP presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e ex-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.

26 de setembro de 2016, 17h03

Spacca
“Camarotização da sociedade brasileira” foi o tema da redação da Fuvest em 2015, diretamente relacionado à cultura de privilégios, sendo certo que Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre já se debruçaram sobre a dura realidade de segregação ou apartheid social.

Segundo o site de etimologia Origem da Palavra, a palavra privilegium (“lei aplicada a apenas uma pessoa”) vem do latim, de privus (“individual, pessoal”) mais lex, (“lei”). E, de fato, a ideia do privilégio caracterizou as relações de poder absolutistas, representando indiscutivelmente herança monárquica em tempos democráticos.

A questão não é nova e se contrapõe diretamente ao princípio da igualdade de todos perante a lei, em momento crucial da nossa ainda breve história republicana, no qual aqueles que se consideravam intocáveis, detentores de expressivas parcelas de poder político e econômico estão sendo processados, alguns presos e outros já até cumprem pena.

E vale relembrar que nos termos da Constituição Federal cabem ao Ministério Público os importantes papeis de defesa da ordem jurídica e do regime democrático, que não combina com a cultura de privilégios. Nestes tempos de afirmação do princípio da isonomia, como classificar uma PEC que, na contramão da história, possa pretender estender em pleno século XXI, a absurda benesse elitista do foro privilegiado aos ex-figurões do poder?

Ninguém pode pretender estar acima da lei no sistema democrático. É imoral, antiético, desrespeitoso ao povo. Na Espanha, na Suíça, na Holanda e nos Estados Unidos, para ficar em alguns poucos exemplos não existe foro privilegiado. Em Portugal, exige-se apenas autorização legislativa para o processo. Na Itália existe o foro privilegiado exclusivamente para o Presidente da República. No Brasil, existe até para Prefeitos de Municípios com cerca de 1000 eleitores, como Borá no interior de São Paulo.

Na República Velha, o voto não era um direito universal. Só a elite tinha direitos políticos. Não votavam as mulheres nem os pobres. Apenas os homens que fossem ricos. Era o chamado voto censitário. Neste contexto, na Carta de 1891, três anos após a abolição da escravidão, o Presidente e seus Ministros, os Ministros do STF e os Juízes Federais receberam foro privilegiado em matéria criminal, com inspiração no processo penal romano.

Já disse Ortega y Gasset que o homem só pode ser entendido com suas circunstâncias, e, naquele momento histórico é compreensível o elitismo constitucionalizado e até a nobre preocupação de proteção a algumas figuras públicas consideradas relevantes para o Estado.

Hoje, apesar de ainda padecermos de má distribuição de renda e desigual acesso à justiça e às oportunidades econômicas e sociais, há quase 28 anos vivemos sob a vigência de uma Carta Republicana que consagrou direitos fundamentais, especialmente o direito às diversas liberdades e à isonomia.

Cada vez mais, apesar da resistência patética e do esperneio vão e desesperado daqueles que não querem abrir mão de suas anacrônicas reservas de poder, cada um de nós vem percebendo e acreditando que privilegiar indevidamente autoridades ofende o senso mais elementar de justiça. Desrespeita cada um de nós e o conjunto de princípios de nossa ainda imatura república democrática.

A prerrogativa de foro por função, mais conhecida como foro privilegiado, subverte princípios processuais fundamentais e a própria organização do sistema de justiça. Tribunais são estruturas concebidas para reapreciar causas, no julgamento dos recursos, e não, para colher provas e instruir processos, e, com certeza a morosidade aumenta muito o risco da expectativa social de punição ser fulminada pela prescrição e vem junto o amargo sabor da impunidade e o incomensurável custo social de não punir o crime, que esgarça significativamente o tecido social.

O argumento da menor independência dos juízes de primeiro grau, que poderia ser válido nos tempos do coronelismo mais primário, hoje se fragilizou — Sergio Moro é um bom exemplo. Além disso, o foto privilegiado pode subverter o princípio do duplo grau de jurisdição quando o STF julga, como a ação penal 470 (mensalão), já que a instância competente é a primeira e única, sem possibilidade de questionamento e revisão da decisão.

Pode colocar em risco o princípio do juiz natural (juiz aleatório), que busca evitar a figura do juiz de encomenda, previamente sabido. Isto fica mais sério ainda quando lembramos que o STJ e STF são compostos por juízes escolhidos politicamente, que poderão ter de julgar quem os escolheu e nomeou, o qual, ainda que indevidamente, pode esperar gratidão (áudios divulgados há alguns meses escancararam isto para a perplexidade geral da nação).

Na mesma linha, entendo igualmente descabido e insustentável o privilégio da prisão especial (mais reservada) durante o processo penal para os detentores de diploma superior e de outros predicados especiais relacionados na lei. Representa a injusta e desarrazoada concessão de camarotes.

É momento de solidificar e consolidar a cultura da isonomia cidadã e sepultar a odiosa cultura dos privilégios, verdadeiros esconderijos tortuosos e sombrios, negadores da igualdade de todos perante a lei.

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    é promotor de Justiça em São Paulo e doutor em Direito pela USP. Atua na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos, é membro do MPD e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.

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