Segunda Leitura

Saúde e meio ambiente precisam aproximar-se na aplicação da Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

25 de setembro de 2016, 8h01

Spacca
Saúde e meio ambiente são temas de relevância máxima e que fazem parte de nossas vidas, muito embora, às vezes, de forma imperceptível. Por ser assim, ambos têm explícita proteção constitucional. No entanto, raramente eles seguem caminhos juntos, regra geral trilham vias paralelas.

O artigo 196 da Constituição dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Por sua vez, o artigo 225 afirma que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

O link entre os dois temas está no artigo 3º da Lei 8.080, de 1990, ao dispor que os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do país, tendo a saúde, como determinante e condicionante, entre outros, o meio ambiente. Vejamos quando e onde eles estão mais próximos e quais as dificuldades para que sejam implementados em conjunto.

Mas, antes, é preciso dizer que ambos fazem parte de políticas públicas. Maria Paula Dalari Bucci lembra que “a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados”[i]

No Brasil, políticas públicas devem atender, pelo menos, os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição, como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Não é pouca coisa, com certeza.

Políticas públicas não são exatamente uma novidade. É possível afirmar que a tentativa de Osvaldo Cruz, em 1904, de combater a malária no Rio de Janeiro, tornando obrigatória a vacina e, com isto, gerando uma rebelião popular, era uma tentativa de implementar uma política pública na área da saúde.

A novidade é as políticas púbicas serem trazidas para o sistema de Justiça. Foi a Constituição de 1988 que deu base a esse fenômeno, ao alargar os direitos sociais e dispor no artigo 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

A partir daí, ações começaram a ser propostas e o Judiciário passou a ter papel de controlador na implementação das políticas públicas. O que era assunto do curso de Gestão Pública passou a ser do interesse, também, do curso de Direito. E os antigos autores, que nos seus livros não dedicavam uma só linha ao assunto, viram-se obrigados a dele tratar, já que o tema entrou no rol dos mais importantes.

Por sua vez, a teoria da impossibilidade de revisão dos atos do Poder Executivo pelo Poder Judiciário caiu por terra, porque o Supremo Tribunal Federal decidiu ser legítima a intervenção deste  Poder na implementação de políticas públicas.[ii]

Vejamos agora as relações dos principais temas que vinculam saúde e meio ambiente. O saneamento, como ensina Nelson Gouveia, são os serviços “que apresentam mais nítida relação com a saúde, em particular a infantil, uma vez que são as crianças as que estão mais sujeitas a sofrer as graves conseqüências do ambiente não saneado”.[iii]

Os índices de saneamento ainda estão aquém do ideal. Para que se tenha uma ideia, na última pesquisa do IBGE, em 2008, o número de pessoas sem acesso à rede coletora de esgotos era de 1,2 milhões de habitantes na região sudeste, 3,2 no centro-oeste, 6,3 no sul, 8,8 no norte e 15,3 no nordeste, em um total de 34 milhões e oitocentas mil pessoas.

A ausência de saneamento significa contaminação da água e do solo, podendo gerar diversos problemas de saúde na população, como febre tifoide, disenteria, cólera, diarreia e hepatite. A omissão do Estado raramente tem chegado aos tribunais, porque sua complexidade desencoraja a propositura de ações. Todavia, a necessidade de outorga para a perfuração de poços de captação de águas subterrâneas, sempre sujeitas à contaminação por fossas ou outras atividades, tem sido exigida pela jurisprudência.[iv]

Moradia, direito assegurado a todos no artigo 6º da Constituição, é outro ponto importante. A moradia em si não afeta a saúde nem causa dano ambiental. O problema está na falta de moradia e consequente fixação de pessoas em áreas de preservação permanente. Populações que vivem em encostas de morros sujeitas a deslizamentos, mangues ou próximas de rios são alguns exemplos.

Na cidade de São Bernardo do Campo (SP), promoveu-se loteamento irregular. Diversas pessoas ocuparam área na beira da represa Billings, uma das principais fontes de água da região metropolitana de São Paulo. Proposta ação civil pública, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que elas deveriam deixar o local, porque sua permanência afetaria o abastecimento de água de um número muito maior de pessoas, e que “no conflito entre o interesse público e o particular há de prevalecer aquele em detrimento deste quando impossível a conciliação de ambos”.[v]

A decisão, teoricamente, está perfeita. Mas de nada adiantou. Até hoje, passados dez anos, a sentença não foi executada, porque não há local para realocar mais de 200 famílias que lá residem. A solução para este e outros casos semelhantes só é fácil nas discussões em salas de aula.

Poluição atmosférica é outra espécie de dano ambiental que afeta diretamente a saúde. Essa é mais insidiosa, porque passa despercebida. A Organização Mundial de Saúde calcula em mais de um bilhão e quinhentos milhões de habitantes de áreas urbanas, que estão expostos a níveis de poluição além do recomendável.  

Indústrias, veículos ou até mesmo atividades portuárias sujeitam os moradores de zonas urbanas a problemas de saúde que podem significar redução do tempo de vida. E não apenas em grandes cidades como São Paulo, mas também em municípios localizados em plena Amazônia, como Rio Branco, no Acre, onde em 24 dias do mês de agosto houve 1.851 casos de doenças respiratórias registrados na Unidade de Pronto Atendimento.[vi] 

Resíduos é outro tema que vincula de forma grave saúde e meio ambiente, sendo o consumo em excesso uma das facetas do problema. A Lei 12.305, de 2010, trata da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Muito embora de boa redação, não conseguiu eliminar os maiores problemas existentes. A maior parte dos resíduos é lançada em lixões ou até mesmo nas ruas, rios e terrenos baldios.

O “assoreamento de rios, o entupimento de bueiros com conseqüente aumento de enchentes nas épocas de chuva, além da destruição de áreas verdes, mau-cheiro, proliferação de moscas, baratas e ratos, todos com graves conseqüências diretas ou indiretas para a saúde”.[vii]

Os municípios conseguem adiar a regra prevista no artigo 18 da Lei 12.305, de criação de plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos. Há dezenas de ações judiciais propostas, mas nem sempre as decisões são cumpridas, pois a implantação de aterros sanitários é complexa.

A poluição visual, consistente não apenas na arquitetura das cidades, mas também no desaparecimento de paisagens e na destruição de monumentos históricos, que dão às pessoas o sentido de enraizamento, afetam a saúde mental. Aí está um aspecto raramente estudado, mas de fácil percepção no aumento dos índices de violência na periferia das grandes cidades.

As ações judiciais envolvendo dano ao meio ambiente e efeitos diretos na saúde de pessoas têm na relação de causalidade o grande empecilho. Não é tarefa fácil demonstrar o vínculo, porque na maioria das vezes há dúvida de caráter científico. A perícia raramente tem conclusão clara.

Este não é um problema brasileiro. O filme A qualquer preço, do diretor  Steven Zaillian, com John Travolta, trata de caso real passado em Wobun, EUA. A discussão trava- se na existência ou não de relação de causalidade entre as atividades de um cortume que poluía o solo e a água e leucemia surgida em habitantes da comunidade. Em casos que tais, a prova poderá ser indireta, por exemplo, provando a existência do dano ambiental e a existência de índices maiores de doenças nos habitantes da localidade em comparação com outras da região.

Em suma, saúde e meio ambiente precisam aproximar-se e, muito embora enorme o desafio, há que se procurar soluções que levem à melhoria da qualidade de vida da população, valendo-se o Direito do apoio das áreas interdisciplinares.

 


[i] BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 11-19).

[ii] STF,  RE 658171 DF, 1ª. Turma, RelatorMinistro Dias Tófoli, j. 18.2.2014

[iii] GOUVEIA, Nélson. Saúde e meio ambiente nas cidades: os desafios da saúde ambiental. In:  Acesso em 24/09/2016.

[iv] STJ, AgRg no AREsp 263253 RS 2012/0251336, 1ª. Turma, Relatora Ministra Regina Helena Costa, j. 21/05/2015.  1

[v] STJ, STJ, REsp/SP 403.190/SP, 2ª. Turma, Relator Min.  João Otávio Noronha, j. 27/06/2006.

[vii] GOUVEIA, Nelson, op. cit., p. 56.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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