Diário de Classe

Só um cappuccino e respeito às garantias constitucionais, por favor

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24 de setembro de 2016, 8h00

Spacca
Café expresso e leite vaporizado. Esses são os dois únicos ingredientes que contém o clássico cappuccino. Não há cacau, canela, raspas de chocolate, nem chantilly. É por isso que tomar o verdadeiro cappuccino não é tarefa das mais simples no Brasil, onde é muito mais fácil encontrar suas variações — talvez mutações, seja a melhor palavra — do que a versão tradicional.

Francesco Piccolo, em La separazione del maschio (Einaudi, 2008), conta a origem desse fenômeno na Itália. Há poucos anos, alguém teve a ideia de polvilhar cacau no cappuccino. Como se o cappuccino, assim como era, já não bastasse mais. Tal ideia difundiu-se rapidamente. Então, ao pedirmos um cappuccino, os baristas começaram a perguntar um pouco de cacau?, com uma espécie “saleiro” (melhor seria “cacauzeiro”) em mãos, já em posição, bastando um simples sinal para que uma chuva de cacau agrida a espuma do nosso cappuccino. Eu sempre respondi: “não, obrigado”.

Entretanto, poucos foram aqueles a dizer “não”, uma vez que essa história de polvilhar cacau no cappuccino espalhou-se como uma pandemia, a ponto de se tornar um automatismo. Basta ir a uma cafeteria e pedir um cappuccino para que o sirvam com cacau, mesmo quando não se pede assim. Moral da história: dizer apenas um cappuccino, por favor não é mais suficiente. Agora, é necessário que se peça, expressamente, um cappuccino sem cacau.

Resumindo a história do cacau no cappuccino: primeiro, não o colocavam; depois, começaram a perguntar se queira que o colocassem; agora, você deve expressar que não o quer. Ir a uma cafeteria e pedir um cappuccino exige, portanto, muita atenção. Você deve estar sempre alerta, de olho no barista, desde o primeiro instante. Caso se distraia, lá vem seu cappuccino servido com cacau. Quem cala, consente, alguém pensará.

Aqueles que, como eu, integram a resistência contra o cacau no cappuccino (isso também ocorre, no Brasil, com a canela, o que é ainda pior) – o fazem por princípio.

Por que estou problematizando a “mutação” do cappuccino? Simplesmente porque o pacote das 10 medidas contra a corrupção (que, na verdade, não são dez, mas bem mais), encampadas pelo MPF, já está sendo colocado em prática, pouco a pouco, antes mesmo da aprovação do projeto de lei. Vejamos: já se prende visando à delação, já se admite provas ilícitas obtidas de boa-fé; já se reduz o uso do Habeas Corpus; já se inverte o ônus da prova; já se relativiza o princípio da presunção de inocência. Tudo isso, naturalmente. Como se o direito fosse assim, desde sempre. Será que a capacidade de nossa “memória constitucional” é, de fato, tão reduzida?

Tudo indica que sim, lamentavelmente. Trago um exemplo. Na semana passada, ao ministrar palestra na Casa do Saber, em São Paulo, o procurador da República Deltan Dallagnol, afirmou, com tom de desaprovação, que, “em razão da ditadura no Brasil, uma parte dos criminalistas rejeita qualquer sombra de redução dos direitos de defesa”. O ato falho consistente em comparar a resistência às suas ideias com a resistência à ditadura já foi devidamente anotado por Leonardo Sica. Isso não significa, contudo, que a premissa do membro da força-tarefa da operação “lava jato” esteja equivocada. Ele tem razão. É exatamente por causa da ditadura que tantos juristas (não somente advogados) se recusam a reduzir as garantias constitucionais do cidadão. Como disse Sica, o procurador federal “não compreende o valor da advocacia e do direito de defesa por desconhecer e desprezar ambos. Talvez despreze por desconhecer”.

E, nesse sentido, resgatando a recente e conturbada história constitucional brasileira de redemocratização, merece destaque a lição do professor Menelick de Carvalho Netto, em parecer juntado à ADC 43, que tramita no STF: “a Constituição de 1988 apresenta-se como momento decisivo de um processo de duro aprendizado institucional, que certamente condiciona a sua interpretação tal como condicionou o processo de sua elaboração. Em contraposição a um período em que pessoas desapareciam nas mãos do aparelho repressivo do Estado sem que nem mesmo lhes fosse explicitado por quais crimes estavam sendo perseguidas; em que o Estado sequer se dignava a reconhecer que tais desaparecidos algum dia estiveram sob sua custódia, a saída adotada pelo constituinte de 1988 foi a de constitucionalizar uma série nunca antes tão numerosa de direitos fundamentais no campo do direito penal e processual penal, na esperança de fornecer àqueles que forem criminalmente processados as garantias básicas que outrora eram negadas” (p. 12-13).

Como se vê, os direitos e garantias fundamentais asseguradas na Constituição brasileira são mais amplos do que aqueles encontrados em outros ordenamentos jurídicos simplesmente porque sua sistemática violação ao longo da história do Brasil, especialmente durante os regimes autoritários, também não encontra precedentes nas democracias consolidadas. Os regimes autoritários mais perversos continuam sendo aqueles que pretendem manter a aparência de um Estado de Direito.

Retomando a alegoria, se alguém pede apenas um cappuccino, mas lhe servem um cappuccino com cacau, ou canela, o que acontece? Pouca coisa. E no Direito? As consequências certamente são muito mais graves. Não é possível ignorar a tradição e a história, atribuindo, livremente, sentido às coisas. Em ambos os casos, todavia, a única saída talvez seja resistir, como o protagonista do romance de Francesco Picollo, e dizer ao barista/jurista: “Isso que vocês me trouxeram pode ser qualquer coisa, menos o que pedi. Por favor, eu quero apenas um cappuccino” (e o respeito às garantais constitucionais).

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