Ambiente Jurídico

O acesso à Justiça em matéria
ambiental no cenário pós-Rio+20

Autor

  • Álvaro Luiz Valery Mirra

    é juiz de Direito em São Paulo doutor em Direito Processual pela USP especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França) coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

24 de setembro de 2016, 8h01

Spacca
O acesso à Justiça na área ambiental é um tema que tem experimentado importante evolução nos últimos 20 anos, tanto na esfera internacional quanto na órbita interna dos países, desde a sua consagração oficial no princípio n. 10 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, adotada em 1992, por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

Tanto isso é verdade que, pouco tempo depois da Rio-92, já em 1998, foi elaborada, na cidade de Aarhus, na Dinamarca, a convenção internacional sobre o acesso à informação, a participação do público nos processos decisórios e o acesso à justiça em matéria ambiental, convenção essa que, embora tenha sido adotada em um contexto regional específico — o europeu — está aberta à ratificação por parte de todo e qualquer Estado integrante do sistema das Nações Unidas.

Além disso, no ano de 2002, à época Cúpula Mundial de Joanesburgo sobre o Desenvolvimento Sustentável (a Rio+10) houve, também, uma semana antes desse evento, um grande simpósio de juízes para tratar da implementação, pela via do sistema judiciário, do direito ambiental; mais um sinal da importância do tema do acesso à justiça na área ambiental, na vertente do acesso ao sistema judiciário.[1]

E o próprio PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), vale ressaltar, vem desenvolvendo, ao longo dos anos, um relevante trabalho de conscientização e capacitação de juízes do mundo todo em relação ao direito ambiental e às questões relativas à proteção do meio ambiente, o que permite concluir que o acesso à justiça em matéria ambiental passou a fazer parte, definitivamente, das preocupações da ONU.[2]

Por essa razão, não é de estranhar que na Conferência do Rio de Janeiro de 2012 sobre o Desenvolvimento Sustentável (a Rio+20) novamente tenha se insistido na importância do acesso às instâncias judiciárias, como elemento indispensável à promoção do desenvolvimento sustentável. De fato, na Declaração do Rio de 2012, emitida na Conferência, ficou expressamente consignado que o desenvolvimento sustentável implica a participação ativa e concreta dos órgãos judiciários (item C, 43), impondo-se aos Estados a adoção de ações tendentes a promover o acesso à justiça em matéria ambiental (item E, 99), dentro do quadro institucional do desenvolvimento sustentável.

Mais recentemente, ainda, no âmbito da América Latina e do Caribe, essa questão também assumiu grande importância, levando a Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) a propor e coordenar a elaboração de um acordo regional precisamente sobre o acesso à informação, a participação pública e o acesso à justiça em assuntos ambientais.

Portanto, não há dúvida a respeito da relevância e da necessidade de um maior aprofundamento da questão do acesso à Justiça em matéria ambiental, no sentido da abertura mais ampla e do fortalecimento do acesso à Justiça, dentro do quadro institucional do desenvolvimento sustentável e da governança em matéria ambiental, que pressupõem, entre outros aspectos, o acesso ao sistema judiciário para a proteção do meio ambiente. O acesso à Justiça — nessa vertente do acesso ao sistema Judiciário — passou a ser uma questão institucional importante para a realização do desenvolvimento sustentável e diz respeito, muito de perto, ao tema da governança ambiental.

E certamente hoje, mais do que nunca, mostra-se imperativa essa discussão a respeito do fortalecimento do acesso à justiça em matéria ambiental, diante da realidade do Brasil e de boa parte dos países periféricos, em que se verificam, cada vez mais, a deficiência e o recuo mesmo na atuação dos poderes públicos no controle das atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente e na implementação das políticas públicas ambientais.

Por motivos variados, os quais não precisam ser aqui indicados em detalhe, o que se tem verificado na prática é que os poderes públicos não têm conseguido desempenhar a contento a tarefa de controlar as atividades lesivas ao meio ambiente e de executar e tornar concretos os programas de ação e as políticas públicas ambientais. Basta lembrar os problemas crônicos que envolvem o saneamento básico, a gestão dos resíduos sólidos, a implantação concreta das áreas naturais protegidas, o controle do uso do solo e do parcelamento irregular do solo, o controle da poluição do ar e da água, para ficar com os exemplos mais conhecidos.

Ademais, no caso brasileiro especificamente, tem-se assistido a um evidente retrocesso na legislação e na ação governamental na área do meio ambiente. Os casos mais recentes são as alterações havidas na legislação florestal, que, segundo se tem analisado, diminuíram o grau de proteção das florestas e demais formas de vegetação no país; a não consideração, na devida medida, da variável ambiental nas principais obras de infraestrutura realizadas no Brasil (construção de grandes barragens para fins hidrelétricos, construção e ampliação de portos e aeroportos, construção de estradas e anéis viários); as propostas recentes de mudanças no sistema de licenciamento ambiental, que se destinam a flexibilizar o já deficiente controle das atividades potencialmente degradadoras.

Frente a um quadro como o acima descrito, resulta claro que, cada vez mais, a via judicial aparece, em muitas circunstâncias, como a única via apta a permitir à sociedade civil a realização do necessário controle sobre as atividades e as omissões públicas e privadas lesivas ao meio ambiente. Com efeito, diante da inércia ou da tolerância do administrador e/ou do legislador, o Poder Judiciário surge, muitas vezes, como o único canal de que dispõe a sociedade civil para fazer valer o direito ao meio ambiente consagrado na Constituição Federal.

Daí a importância do reforço do acesso à justiça em matéria ambiental, que, nesse tema, deve ser, necessariamente, um acesso participativo à justiça, ou seja, um acesso à justiça aberto aos indivíduos, aos grupos, aos organismos e às instituições sociais secundárias que representam em juízo os interesses da sociedade na proteção do meio ambiente.[3]

Esse reforço do acesso participativo à justiça em matéria ambiental passa necessariamente, em primeiro lugar, pela abertura da titularidade do poder de agir em juízo, pela via das ações coletivas (no Brasil, notadamente, ação popular e ação civil pública), aos indivíduos e aos denominados entes intermediários que atuam como autênticos porta-vozes dos interesses da sociedade na proteção do meio ambiente e pelo fortalecimento da atuação destes em prol da preservação da qualidade ambiental.

Nesse ponto, há um aspecto importante que vale a pena destacar. Diversamente do que se passa, de uma maneira geral, nos países da Europa e nos Estados Unidos, onde entes intermediários habilitados a defender em juízo o meio ambiente são via de regra as organizações não governamentais, no Brasil e em vários outros países sul-americanos os entes intermediários legitimados a agir são não apenas as ONGs como também determinados entes estatais independentes. É o caso, por exemplo, do Defensor do Povo, na Argentina, na Colômbia e na Venezuela, do Ministério Público, no Brasil, no Uruguai, no Peru e no Paraguai, e da Defensoria Pública, mais recentemente no Brasil.

Trata-se de uma peculiaridade importante, já que se se atentar, por exemplo, para o tratamento dado à matéria na Convenção de Aarhus, antes referida, que é o principal modelo normativo de acesso à justiça em matéria ambiental, poder-se-á constatar que a abertura do acesso à justiça, na convenção, ficou concentrada nas ONGs e, em certos casos, nos indivíduos, sem qualquer referência expressa aos entes estatais independentes. Ocorre que, no Brasil, diversamente, como se sabe, quem mais atua perante os órgãos jurisdicionais em defesa do meio ambiente é o Ministério Público e, nos últimos tempos, a Defensoria Pública, que o fazem, no entanto, como autênticos Defensores do Povo, ou seja, como instituições estatais independentes, e não como órgãos do governo.

Outro ponto digno de menção é o de que o reforço do acesso à justiça passa, também, pelo reconhecimento da possibilidade de a sociedade civil controlar, por intermédio do Poder Judiciário, as omissões do Poder Público lesivas ao meio ambiente.

Isso implica, por exemplo, a admissão da imposição ao Estado de medidas de natureza injuncional — que no Brasil são tratadas como obrigações ou deveres de fazer — capazes de levar a Administração Pública a cumprir o dever imposto constitucionalmente de defender e preservar o meio ambiente e de implementar as políticas públicas ambientais, tarefa irrenunciável do Poder Público.[4]

Aqui a experiência brasileira na matéria é bastante rica e interessante. De fato, no Brasil, ao longo dos últimos anos, tem-se assistido à ampliação do controle, por intermédio do Judiciário, não só das ações como também das omissões do Poder Público, chegando, em não poucos casos, até mesmo à adoção de providências tendentes à implementação, pela via jurisdicional, de políticas públicas ambientais, inclusive com o controle sobre as disponibilidades financeiras do Poder Executivo. São vários os exemplos da jurisprudência, em que se tem manifestado o controle pela via judicial das omissões do Poder Público em terma de meio ambiente: saneamento básico, tratamento e destinação final de resíduos sólidos, fiscalização da ocupação irregular de áreas protegidas e até mesmo implantação de parques e áreas de proteção ambiental.

Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu, de maneira expressa, sobre a admissibilidade do controle judicial de políticas públicas na área ambiental, sem que se possa falar em violação ao princípio da separação dos poderes.[5]

Neste passo, cumpre lembrar um aspecto relevante. Quando se fala em controle jurisdicional de ações e omissões do Poder Público, está se falando, em verdade, de controle social realizado por intermédio do Poder Judiciário. Refere-se, na realidade, ao controle realizado pela sociedade, representada em juízo pelos entes intermediários, como é o caso do Ministério Público, da Defensoria Pública e das ONGs, que tem nos juízes e tribunais um dos veículos de sua expressão concreta, autorizado pelo sistema constitucional e infraconstitucional em vigor no Brasil.[6]

Não resta dúvida, porém, de que todo esse reforço do acesso à Justiça em matéria ambiental, tal como vem sendo preconizado, passa necessariamente, como não poderia ser diferente, pelo aperfeiçoamento dos órgãos jurisdicionais encarregados de dar vazão às iniciativas da sociedade civil na proteção do meio ambiente.

Isso implica, por um lado, um trabalho de sensibilização cada vez maior dos juízes no tocante às questões ambientais e, por outro lado, uma maior especialização dos magistrados, inclusive com a instituição de Cortes de Justiça especializadas em assuntos de meio ambiente, tanto em primeira quanto em segunda instância.[7] As experiências de vários países e, igualmente, do Brasil na especialização de juízos e tribunais na matéria, segundo consta, têm sido, em sua grande maioria, bem sucedidas e, por essa razão, comportam ampliação.

Como se pode perceber, o acesso à justiça em matéria ambiental, pese embora a sua evolução recente, aparece, ainda hoje, como um dos desafios a serem enfrentados pelo direito ambiental, merecedor de discussão mais aprofundada após a Rio+20, que enfatizou a relevância do tema.

O acesso à Justiça em tema de meio ambiente, segundo se viu, deve ser fortalecido e ampliado, na direção de um acesso verdadeiramente participativo, sobretudo se se considerarem os grandes temas da Rio+20, que foram o quadro institucional do desenvolvimento sustentável, a governança ambiental e a economia verde, a qual, sobretudo, não se sabe bem como será trabalhada pelos diversos Estados na sequência da Conferência.

Ressalte-se que muitos analistas temem que a ideia de fortalecer uma economia verde seja captada por vários países, e especialmente pelo Brasil, como a consagração definitiva da mercantilização da natureza e dos bens ambientais, com a consequente prevalência dos mecanismos de mercado e de compensação ambiental para a solução dos problemas do meio ambiente, em detrimento da aplicação dos princípios jurídicos da prevenção, da precaução, da intervenção estatal obrigatória e do controle social nessa matéria.

Nesse sentido, o reforço do acesso participativo à Justiça seria o necessário contrapeso institucional à adoção do modelo de uma economia verde, para o caso em que a mensagem da Conferência do Rio de 2012 no tema, naquilo que ela tem de positivo[8], seja desvirtuada ou mal trabalhada pelos países. O acesso participativo à Justiça em matéria ambiental, reforçado, seria, portanto, o mecanismo que permitiria à sociedade civil controlar as atividades públicas e privadas, na eventualidade de má interpretação ou desvio na implementação da nova concepção de economia verde que emergiu da Rio+20.


[1] FREITAS, Vladimir Passos de. Direito ambiental, da ação internacional à especialização dos tribunais. In: FREITAS, Vladimir Passos de (Coord.). Direito ambiental em evolução 4. Curitiba: Juruá, 2005, p. 341.
[2] FREITAS, Vladimir Passos de, op. cit., p. 341.
[3] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 174 e ss.
[4] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 473-476.
[5] STF – AgRg no RE n. 417.408/RJ – j. 20.03.2012 – rel. Min. Dias Toffoli.
[6] MIRRA, Álvaro Luiz Valery Mirra, op. cit., p. 378-386 e 461-470.
[7] FREITAS, Vladimir Passos de, op. cit., p. 344-356. No mesmo sentido, recomendação feita no “Apelo dos Juristas e das Associações de Direito Ambiental”, elaborado em Limoges, na França, no dia 01.10.2011, por ocasião da 3ª Reunião Mundial das Associações de Direito Ambiental – CIDCE, encaminhado aos Estados participantes da Rio + 20.
[8] Ver, no ponto, o relatório “Rumo a uma Economia Verde”, apresentado pelo PNUMA, assinado por Pavan Sukhdev e Achim Steiner, segundo os quais, sem pretender sufocar o crescimento e a prosperidade, a Economia Verde visa a restabelecer a ligação com a verdadeira riqueza, reinvestir em vez de simplesmente explorar o capital natural e beneficiar muitos em lugar de poucos, reconhecendo, ainda, a responsabilidade intergeracional das nações de manter um planeta saudável, funcional e produtivo aos jovens de hoje e aos que estão para nascer (cf. ARINI, Juliana e MARCONDES, Dal. A teoria sustentável, Carta Verde, Revista Carta Capital, 28.09.2011).

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  • é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

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