Processo de impeachment

Impedimento e inabilitação política são penas principais e independentes

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22 de setembro de 2016, 7h00

A natureza política do processo de impeachment. A separação de Poderes e as Funções do Estado. O Senado como órgão jurisdicional. O Presidente do Supremo Tribunal Federal

Se há um consenso a respeito do processo de impeachment é seu caráter político. Essa conclusão decorre da própria Constituição. É que, nesses casos, ela conferiu ao Poder Legislativo a função atípica de natureza jurisdicional. O art. 52 de nossa Carta Política é claríssimo: “Compete privativamente ao Senado Federal; I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade”.

As funções típicas são, de um modo bem raso, assim definidas: o Executivo administra, o Legislativo legisla, e o Judiciário julga.  a cada Poder é conferida, nos limites definidos pela Constituição, parcela de competência do outro, no exercício atípico de atribuições. No processo de impeachment, o Senado funciona, portanto, no exercício dessa atividade anômala, como órgão jurisdicional.

Se jurisdição se exerce através do processo, e este é o instrumento por meio do qual os órgãos jurisdicionais atuam para eliminar os conflitos e fazerem “cumprir o preceito jurídico pertinente a cada caso que lhes é apresentado em busca de solução”[1], é dos parlamentares que se espera o pleno juízo do impedimento.

Embora cheio de particularidades, tal atribuição, no impedimento, não pode destoar daquelas genéricas da jurisdição: como poder de decidir e impor sua decisão; como função de promover a pacificação; e como atividade de exercer a função que a lei, na espécie, a Constituição, lhe comete[2].

Nesse contexto, como garantir às partes a fiel observância do devido processo legal se a jurisdição é atribuída a parlamentares, representantes do povo, desconhecedores dos princípios mais basilares da tecnicidade processualística? A Constituição nos responde no parág. único de seu art. 52, determinando que “funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal”.

A ele cabe a condução do processo, regulado pela Lei 1.079, de 1950. Compete-lhe, assim, a fiel observância dessa norma, bem como das subsidiárias aplicáveis à hipótese, consoante estipula seu art. 38: “(…) serão subsidiários desta lei, naquilo em que lhes forem aplicáveis, assim os regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, como o Código de Processo Penal”.

Seu papel é reservado ao de verificar, em atuação residual e circunscrita a aspectos estritamente procedimentais, sem ligação com o mérito da causa, se a ampla defesa está sendo devidamente assegurada, uma vez que os juízes naturais do feito são, exclusivamente, os 81 Senadores da República[3].

O destaque para votação em separado no processo deliberativo das Casas Legislativas.

Por se tratar, obviamente, de um processo ímpar, juridicamente complexo, com viés político, recorreu-se, inúmeras vezes, à aplicação dos dispositivos regimentais. Desde o tempo facultado aos senadores para discussão e encaminhamento, passando-se pelos prazos de diversos atos, até os mecanismos de votação em si, o RISF foi seguido à risca a fim de evitar-se qualquer alegação de nulidade ou de necessidade de repetição de etapas ou formalidades.

Uma das suas funções é a de regular a forma por meio do qual o Plenário expressa sua maioria. Trata-se de direito adjetivo, processual, e essencial para garantir a capacidade deliberativa da maioria e a defesa das prerrogativas das minorias. Esse codex é frequentemente invocado para exigir-se a observância a determinados ritos sempre quando não se tenha consenso.

O destaque para votação em separado (DVS) é um instrumento nele previsto para deliberação de “qualquer proposição”, nos termos do seu art. 312.

Ele consiste fundamentalmente em um “recorte” de uma parte da proposição para que ela seja apreciada separadamente, se, e é importante frisar bem isso, o texto principal for aprovado.

A sua razão de ser é a de permitir que sejam ouvidas todas as vozes parlamentares. Dentro dessa sistemática de um órgão colegiado que delibera por maioria, se inexistisse tal hipótese e todas as deliberações tivessem que ser sempre tomadas de forma global, as minorias nunca se expressariam, sendo sempre arrastadas, por consequência lógica, pela vontade da maioria no tocante à parte principal das matérias.

Originalmente, o RISF previu o pedido de destaque para votação em separado apenas aos senadores, individualmente. Entretanto, a norma primitiva exige que esse pleito seja submetido a escrutínio. Assim, primeiro se verifica se o Plenário aceita o referido pedido de destaque para, só então, se aprovado, seguir-se à deliberação da matéria principal, e, após, da matéria destacada.

Em março deste ano, por alteração regimental, o Plenário aprovou a inclusão de um parág. único ao art. 312 do RISF, importando a lógica da Câmara dos Deputados na qual as bancadas partidárias têm direito, em função do seu número de integrantes, a destaques automáticos, que independem de votação prévia quanto a seu cabimento ou não, “observada a seguinte proporcionalidade: I – de 3 (três) a 8 (oito) Senadores: 1 (um) destaque; II – de 9 (nove) a 14 (quatorze) Senadores: 2 (dois) destaques; III – mais de 14 (quatorze) Senadores: 3 (três) destaques.”

A primeira vez, durante o processo, em que o DVS foi invocado, foi no dia 9 de agosto, quando o Plenário, sob a Presidência da Sessão pelo Ministro Ricardo Lewandowski, reuniu-se para apreciar a Pronúncia da ex-Presidente Dilma Rousseff. Naquela ocasião, quatro desses destaques foram formulados ao parecer do Relator Antonio Anastasia: (1) aos trechos em que se abordavam as preliminares apresentadas pela defesa, (2) àquele em que se tratava das chamadas “pedaladas fiscais”, (3) ao  referente ao decreto de abertura de créditos suplementares de 27/07/2015, e (4) finalmente, ao do decreto de 20/08/2015.

Ao constatar que eles foram formulados por bancadas de partido (PT formulou dois a que tinha direito, PTB, um, e PDT, outro), o Presidente verificou a norma regimental e a eles conferiu a automaticidade que lhes era inerente. Em razão deles, portanto, ocorreram cinco votações, uma relativa ao parecer sem os trechos destacados e quatro delas relacionadas a cada um dos destaques.

O destaque da Sessão de julgamento. Proposição e Quesito. A previsão do art. 68 da Lei 1.079/50

Sobre a deliberação definitiva do julgamento, o roteiro proposto pelo Presidente do STF previa uma única votação acerca do seguinte quesito: “Cometeu a acusada, a Senhora Presidente da República, Dilma Vana Rousseff, os crimes de responsabilidade correspondentes à tomada de empréstimos junto a entidade financeira controlada pela União e à abertura de créditos sem autorização do Congresso Nacional, que lhe são imputados, e deve ser condenada à perda do cargo, ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de oito anos?”

Falava-se, abstratamente, em possível apresentação de destaque na votação final. No entanto, cogitava-se que ele pudesse recair sobre um dos crimes imputados, e não sobre uma das penas.Ocorre que, iniciada a sessão, a Bancada do PT apresentou requerimento de destaque para votação em separado da parte final do quesito supramencionado, correspondente a “ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de oito anos”.

Já se sabe que qualquer proposição pode ser destacada, nos termos do art. 312 do RISF, logo, cabia perquirir se aquele quesito poderia ser considerado uma “proposição”, a fim de poder ser objeto do DVS..

O art. 211 do mesmo Regimento, por sua vez, não traz um conceito de proposição, mas apenas um rol exemplificativo daquelas mais corriqueiras: “I – propostas de emenda à Constituição; II – projetos; III – requerimentos; IV – indicações; V – pareceres; VI – emendas”.

Encontra-se tal definição no art. 100 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, também eleito expressamente pela Lei 1.079/50 como norma de aplicação subsidiária no processo de impeachment. Segundo ele, “proposição é toda matéria sujeita à deliberação do Plenário”

Nesse preciso sentido, não haveria qualquer dúvida de que, em instantes, aquele quesito seria submetido à deliberação do Plenário. Logo, se estava diante de uma proposição sujeita, destarte, a um DVS.

Risco maior estar-se-ia correndo se fosse feito o contrário: acaso fosse descumprida a norma regimental, que até então vinha sendo fielmente observada, poderia ser invocada supressão indevida de direito parlamentar, passível, no limite, de anular-se a própria sessão, caso não se admitisse a prerrogativa da deliberação pleiteada.

A partir do destaque apresentado, portanto, primeiro o Plenário deliberaria quanto ao cometimento ou não de crime (texto principal) e, na sequência, sobre a aplicação ou não da pena de perda do cargo (texto destacado).

Caso a resposta à primeira parte do quesito recebesse mais de 2/3 (dois terços) dos votos “sim”, consoante quórum constitucional, passar-se-ia à parte destacada, relativa exclusivamente à pena de inabilitação.

Não é demais repisar a dicção do art. 68 da Lei 1.079/50:

“O julgamento será feito, em votação nominal pelos senadores desimpedidos que responderão ‘sim’ ou ‘não’ à seguinte pergunta enunciada pelo Presidente: ‘Cometeu o acusado F. o crime que lhe é imputado e deve ser condenado à perda do seu cargo?’

Parágrafo único. Se a resposta afirmativa obtiver, pelo menos, dois terços dos votos dos senadores presentes, o Presidente fará nova consulta ao plenário sobre o tempo não excedente de cinco anos, durante o qual o condenado deverá ficar inabilitado para o exercício de qualquer função pública.”

Observe-se que a lei especial prevê precisamente esse rito, o de deliberar-se primeiramente quanto ao cometimento do crime de responsabilidade e aplicação da pena de perda do cargo para, na sequência, decidir-se o quantum da pena de inabilitação. E mais: o citado artigo 68 continua vigente, uma vez que o STF não se pronunciou quanto à sua eventual não-recepção pela CF/88, a despeito das vezes em que a Lei 1.079/50 foi submetida à sua apreciação, mesmo em sua decisão mais recente, a ADPF 378. Evidentemente que a pena máxima na Carta de 88 foi fixada em oito anos e não em cinco, como previa a Lei sob a CF de 1946, no ponto, portanto, superada.

Em outras palavras, a divisão em duas votações era a forma prevista para deliberação na lei especial (que nunca teve sua recepção contestada), além de haver-se tornado obrigatória por força da norma regimental. .

Cumpre assinalar que se desmistifica, com esses esclarecimentos, o que erroneamente foi muito propalado de que se chegaria à anomalia de absolvição quanto à perda do cargo e de condenação à pena de inabilitação. Como visto, se a proposição principal (qual seja, a primeira parte do quesito, contendo o juízo acerca do cometimento do crime de responsabilidade, com afastamento do cargo) fosse rejeitada, estaria prejudicada a análise da proposição destacada.

A admissão do destaque e o conteúdo do parágrafo único do art. 52 da Constituição

A decisão do Presidente do Supremo Tribunal Federal em admitir o destaque nos termos do Regimento Interno em nenhum momento afrontou a Constituição.

Como ele não atuava ali como juiz constitucional, permitiu que o juiz natural da causa, o colegiado dos Senadores da República, fizesse sua interpretação constitucional e se pronunciasse sobre a pena que julgava adequada ao caso.

Ao manifestar-se pela segunda vez, o Plenário do Senado poderia ter, por maioria de 2/3 dos votos, igualmente condenado a ex-Presidente à pena de inabilitação. Não foi o destaque que limitou a aplicação de somente a pena de perda de mandato, mas sim a própria convicção dos juízes naturais do processo. Tudo o que a norma regimental garantiu, portanto, foi que o Plenário se manifestasse duas vezes. Bem se nota que, ao contrário do alardeado, em nenhum momento o RISF esteve acima da Constituição.

Cumpre ressaltar, ainda, que o referido  parág. único do art. 52 da CF traz uma palavra à qual não se deu a devida atenção: “limitando-se”. Vejamos:

“Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.”

Se a condenação deve limitar-se à perda do cargo com inabilitação, esse limite pode perfeitamente ser entendido como o máximo constitucional, como uma ordem de não ser ultrapassado, mas não estaria, necessariamente, sendo exigido que, entre a absolvição e a condenação a essa pena máxima, não se pudesse haver uma pena intermediária.

Além disso, o juiz, ao aplicar a lei, deve buscar individualizar a pena. Isso é dicção expressa do inciso XLVI do art. 5o da Constituição Federal. Como seria possível essa individualização se só se admitisse absolver ou condenar à pena máxima? Observe-se que esse debate já foi enfrentado por ocasião da lei de improbidade administrativa, que, igualmente, arrola uma série de sanções conjugadas com um “e”. A jurisprudência  firmou-se quanto à possibilidade de aplicar-se apenas algumas daquelas penas.

Nos recentes debates sobre o tema, apenas um único argumento foi levantado sobre o conteúdo desse preceito constitucional: o da interpretação gramatical da expressão “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”, na qual a preposição “com” exigiria uma articulação necessária das duas locuções por ela conectadas.

Ocorre que a interpretação meramente gramatical vem sendo progressivamente desautorizada, especialmente se considerada a realidade da dinamicidade da vida e das relações sociais.

É imprescindível considerar que a Constituição é um texto vivo, que será lido conforme a experiência da sociedade por ela regulada. Isso pode ser exemplificado com o mesmo parág. único do artigo 52. Até 1992, a ampla maioria da doutrina defendia que a pena de inabilitação era uma pena acessória da pena de perda do cargo. Essa era, inclusive, a visão do ex-ministro do STF Paulo Brossard[4], segundo a qual, havendo o Presidente da República renunciado ao mandato, o arquivamento do processo seria decorrência imediata.

A partir da decisão do Senado, que deu nova interpretação ao texto constitucional, foi possível a aplicação da pena de inabilitação, a despeito da renúncia do Presidente da República. Hoje, a  doutrina majoritária já se refere às duas penas como principais e autônomas, graças à interpretação produzida pelos juízes daquele precedente.

Parece-nos que, uma vez mais, estamos diante de outra possibilidade de interpretação, a partir de nova situação concreta, 24 anos mais tarde, sobre a qual a Suprema Corte foi instada a se manifestar, e que talvez leve à nova revisão da doutrina nacional sobre o tema.


[1] CINTRA, Antonio Carlos de Araujo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros. 21. Ed. p. 25.

[2] Idem, p. 140.

[3] Vide trechos das decisões proferidas pelo Presidente Ricardo Lewandowski nos recursos a ele direcionados durante a Comissão Especial do Impeachment. Esse, por exemplo, foi extraído do recurso denominado Doc. 27.

[4] BROSSARD, Paulo. O impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República. 3. ed. ampl. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 134-135.

Autores

  • Brave

    é ex-secretária geral da Presidência do Supremo Tribunal Federal; Chefe da Assessoria Especial da Presidência do Senado para fins de impeachment; Especialista em Processo Civil pelo UDF e Mestranda em Direitos Humanos pela USP.

  • Brave

    é secretário-geral da Mesa do Senado Federal e escrivão do processo de impeachment; ex-Advogado-Geral do Senado e ex-Consultor Jurídico do Ministério da Previdência Social; Mestre em Direito Público pela UFPE; Doutorando pela Universidad de Salamanca – Espanha.

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