A pessoa criada e registrada por pai socioafetivo não precisa abrir mão da paternidade biológica e, portanto, nem de direitos como pensão e herança. Assim entendeu o Supremo Tribunal Federal, nesta quarta-feira (21/9), ao reconhecer simultaneamente ambas as formas de paternidade, por 8 votos 2, e negar pedido de um homem que alegava preponderância da socioafetiva sobre a biológica.
Como o recurso teve repercussão geral reconhecida, deve nortear outras decisões nos tribunais de todo o país. A tese que servirá de parâmetro ainda deve ser fixada pelo Plenário, na sessão da próxima quinta-feira (22/9).
O autor do recurso só foi “descoberto” pela filha quando ela tinha 16 anos. Como a jovem foi registrada por outra pessoa, ele afirmava não pretender fugir da responsabilidade, mas eximir-se dos efeitos patrimoniais, para impedir que a “conveniência” fizesse alguém optar pelo reconhecimento familiar apenas para obter possíveis efeitos materiais, já que a própria filha afirmou que não queria desfazer os vínculos com o pai socioafetivo.

Para o relator, ministro Luiz Fux, o princípio da paternidade responsável obriga que sejam acolhidos tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos como também aqueles originados da ascendência biológica.
Segundo o ministro, o reconhecimento pelo ordenamento jurídico de modelos familiares diversos da concepção tradicional não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica, num modelo engessado. “Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o Direito que deve servir à pessoa, não o contrário.”
“Não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos”, declarou.
Fux disse ainda que, enquanto o Código Civil de 1916 tinha seu conceito de família centrado no instituto do casamento — com a “distinção odiosa” entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos —, a partir da Constituição Federal de 1988 “o regramento legal passa a ter de se adequar às peculiaridades e demandas dos variados relacionamentos interpessoais, em vez de impor uma moldura estática baseada no casamento entre homem e mulher”.
Foi com essa visão, disse o ministro, que o Supremo já reconheceu a qualidade de entidade familiar às uniões estáveis homoafetivas (ADI 4.277).
Cinismo e cuidado obrigatório
Ao acompanhar o relator, o ministro Gilmar Mendes afirmou que a tese sustentada pelo pai biológico apresenta “cinismo manifesto”. Para o ministro Dias Toffoli, é importante reconhecer que as obrigações de quem tem um filho continuam ainda que outra pessoa o crie. O ministro Marco Aurélio, que também seguiu a maioria dos votos, destacou que o direito de conhecer o pai biológico é um direito natural.
“Amor não se impõe, mas cuidado sim e esse cuidado me parece ser do quadro de direitos que são assegurados, especialmente no caso de paternidade e maternidade responsável”, declarou a presidente da corte, ministra Cármen Lúcia.
Divergências
O ministro Edson Fachin votou pelo parcial provimento do recurso, ao entender que o vínculo socioafetivo “é o que se impõe juridicamente” no caso dos autos, tendo em vista que existe vínculo socioafetivo com um pai e vínculo biológico com o genitor. Portanto, para ele, há diferença entre o ascendente genético (genitor) e o pai, ao ressaltar que a realidade do parentesco não se confunde exclusivamente com a questão biológica.

Nelson Jr./SCO/STF
“O vínculo biológico, com efeito, pode ser hábil, por si só, a determinar o parentesco jurídico, desde que na falta de uma dimensão relacional que a ele se sobreponha, e é o caso, no meu modo de ver, que estamos a examinar”, disse, ao destacar a inseminação artificial heteróloga [doador é terceiro que não o marido da mãe] e a adoção como exemplos em que o vínculo biológico não prevalece, “não se sobrepondo nem coexistindo com outros critérios”.
Também divergiu o ministro Teori Zavascki. Para ele, a paternidade biológica não gera necessariamente a relação de paternidade do ponto de vista jurídico e com as consequências decorrentes.
“No caso há uma paternidade socioafetiva que persistiu, persiste e deve ser preservada”, afirmou. Ele observou ser difícil estabelecer uma regra geral e que deveriam ser consideradas situações concretas. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Clique aqui para ler o voto do relator.
RE 898.060
Comentários de leitores
17 comentários
Sobrou para quem não deveria
Daniel André Köhler Berthold (Juiz Estadual de 1ª. Instância)
A notícia atribui, ao Relator, Ministro Luiz Fux: “Não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo."
Muitas vezes, diz-se que "solução salomônica" é dividir ao meio (se o autor pede 100, e o réu nada quer pagar, "solução salomônica" seria mandar o réu pagar 50).
Na verdade, a ordem de Salomão, de dividir a criança, foi dada para descobrir quem era a verdadeira mãe (logo em seguida, uma das litigantes, para não pôr seu filho em risco, disse aceitar que ele ficasse com a outra; esta anunciou que concordava com a divisão e consequente morte da criança).
Ou seja, a ameaça de matar a criança não foi um ato de julgamento, mas de instrução, com o qual Salomão descobriu quem era a verdadeira mãe.
Sugiro a leitura do livro bíblico de 1º Reis, capítulo 3, versículos 16 a 28.
Os super filhos!
Márcio Martins Soares (Oficial de Justiça)
O STF criou a categoria dos super filhos: dois pais, dois sobrenomes, duas pensões e, duas heranças!! E os outros filhos do pai biológico, como ficam? Em clara e injustificável situação de inferioridade.
Isso sem falar nos prejuízos para a doação de sêmen!
Mandaram muito mal, Ministros! Estão jogando para platéia. De políticos populistas, já estamos cheios.
Negócio da china
Xarpanga (Advogado Autônomo - Civil)
ter um pai socioafetivo e um outro biológico virou um grande negócio. Atenção mães, o STF adverte: no momento de registrar opte por um pai socioafetivo, ou seja pai financeiro, sobretudo, se o pai biológico estiver passando por dificuldades financeiras à época do registro e não poder pagar a P.A. - 16 anos depois reivindique a paternidade biológica, pensão e direito à herança, na hipótese do pai biológico de ter melhorado sua situação financeira e adquirido bens materiais que possam ser objeto de demanda judicial.
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