Tribuna da Defensoria

Autonomia da Defensoria — inconsistência da Súmula 421 do STJ

Autor

  • Bruno de Almeida Passadore

    é mestre em Direito Processual Civil pela USP. Defensor Público Auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná. Presidente da Comissão de Prerrogativas da da Defensoria Pública do Estado do Paraná.

20 de setembro de 2016, 11h10

Retomando o tema da semana passada, momento em que fizemos breve análise histórica sobre a alteração do regime jurídico da Defensoria Pública desde o texto originário da Constituição de 1988, iremos analisar algumas implicações deste posicionamento perante o Supremo Tribunal Federal, bem como a inconsistência do teor do enunciado sumular 421 do Superior Tribunal de Justiça, o qual estabelece a tese de suposta “confusão” entre os cofres da Defensoria Pública e da fazenda pública a que vinculada.

Pois bem, como já abordado, resta conferida à Defensoria Pública, além da autonomia funcional e administrativa, autonomia financeira, tanto assim que o artigo 168 da Constituição Federal determina o repasse duodecimal das parcelas orçamentárias pelo ente federativo à instituição, tratando-se de um dever de repasse prioritário de quantias — não estando, portanto, sujeito a qualquer tipo de programação financeira ou fluxo de arrecadação — já que se trata de valores destinados ao órgão autônomo e não ao Executivo do ente federado, não tendo este qualquer poder de gestão sobre tais quantias[1]. Consagra-se, nesta linha, a já abordada divisão de cofres entre Defensoria Pública e Poder Executivo da unidade federativa com a qual se relaciona, decorrente da aludida autonomia institucional.

Análise bastante ilustrativa acerca da questão, se deu no âmbito de ação constitucional em que o Supremo Tribunal Federal analisou dispositivo da Lei Orçamentária Anual do Estado do Paraná para o exercício financeiro do ano de 2015. Neste diploma legislativo, estabeleceu-se a possibilidade de abertura de créditos suplementares pelo Poder Executivo local a partir do orçamento da Defensoria Pública — algo, vale apontar, bastante comum em secretarias estaduais locais. Assim, o artigo 16 da Lei Estadual paranaense 18.409/2014, estabeleceu:

Art. 16. Fica o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplementares no orçamento da Administração Geral do Estado – Recursos sob Supervisão da Secretaria de Estado da Fazenda, até o montante de R$ 90.000.000,00 (noventa milhões de reais), utilizando para cobertura do crédito orçamentário, recursos da Defensoria Pública — grifos adicionados.

Autorizava-se, portanto, para o exercício financeiro de 2015, que o executivo local invadisse o orçamento da instituição e lá buscasse até 90 milhões de reais para abertura de créditos suplementares durante o curso do ano. Este tema, por sua vez, chegou ao Supremo Tribunal Federal, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.218/PR. A corte, lembrando a autonomia funcional, administrativa e financeira da instituição reconheceu que qualquer ingerência nos cofres da Defensoria Pública por parte do Poder Executivo violava referida autonomia e, assim, em medida cautelar, suspendeu os efeitos da aludida norma até julgamento final da ação[2]. Em suma, reconheceu-se que inerente à autonomia da Defensoria Pública a “divisão de cofres” em relação ao Estado do Paraná.

Por outro lado, nos idos dos anos 2000, percebeu-se o seguinte: se, diferentemente do que ocorre com os advogados públicos[3], toda verba sucumbencial oriunda de atividade defensorial deveria ser revertida à própria Defensoria Pública para o desenvolvimento de suas atividades, os honorários sucumbenciais eram destinados à própria instituição.

Como consequência, as procuradorias fazendárias criaram o seguinte raciocínio: por ser a Defensoria Pública órgão do estado — ou da união ou do DF, dependendo do caso —, seria incabível a condenação do poder público ao pagamento de verba honorária em favor da instituição, já que isto significaria pagar a si próprio, ou seja, ocorreria suposta confusão entre credor e devedor, a extinguir a obrigação por força do artigo 381 do Código Civil[4].

Referida tese, passou a ressonar nos órgãos jurisdicionais locais, até se fazer prevalecer no Superior Tribunal de Justiça, dando origem ao enunciado sumular 421 do STJ, o qual estabelece: “os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra a pessoa jurídica de direito público à qual pertença”.

Por outro lado, e como já dito, a partir das alterações conferidas, principalmente pelas Emendas Constitucionais 45/2004 e 80/2014 e pela Lei Complementar 132/2009, a Defensoria Pública foi liberta de toda limitação oriunda de vinculações que já existiram em relação ao Poder Executivo, sempre no intuito de cumprir com seu mister constitucional. Assim, após a edição de referidos diplomas legais e constitucionais, a Defensoria Pública passou a ostentar autonomia plena, que não dispunha na formulação originária do constituinte de 1988.

Pois bem. Analisando os casos que deram origem ao enunciado 421 do STJ, conforme informação da própria corte[5], denota-se que o caso mais recente a que se refere é datado de junho de 2009, ou seja, até mesmo anterior à Lei Complementar 132/09, datada de outubro de referido ano.

Os casos que ensejaram a edição do enunciado sumular em questão são: Agravo Regimental no Recurso Especial 755.631/MG, julgado em 10/6/2008; Agravo Regimental no Recurso Especial 1.028.463/RJ, julgado em 25/9/2008; Agravo Regimental no Recurso Especial 1.039.387/MG, julgado em 3/6/2008; Agravo Regimental no Recurso Especial 1.054.873/RS, julgado em 11/11/2008; Agravo Regimental no Recurso Especial 1.084.534/MG, julgado em 18/12/2008; Embargos de Divergência no Recurso Especial 480.598/RS, julgado em 13/4/2005; Embargos de Divergência no Recurso Especial 566.551/RS, julgado em 10/11/2004; Recurso Especial 740.568/RS, julgado em 16/10/2008; Recurso Especial 852.459/RJ, julgado em 11/12/2007; Recurso Especial 1.052.920/MS, julgado em 17/6/2008; em finalmente, o Recurso Especial 1.108.013/RJ, julgado em 3/6/2009.

Neste sentido, não só possível, como estritamente necessária a realização do overrulling de tal posicionamento, em decorrência de toda alteração normativa ocorrida desde outubro de 2009. Acerca da questão, apontamos que não só a alteração legislativa (e mormente constitucional!) é causa de alteração de posicionamento consolidado nos tribunais, como, em referidos casos, esta alteração de entendimento pode ser realizada por qualquer órgão jurisdicional, e não apenas aquele prolator da posicionamento a ser seguido.

Assim, não há sequer como prevalecer eventual argumento no sentido de haver o dever de obediência de referido enunciado sumular do STJ pelos tribunais locais, ante o dever de obediência, em casos similares, do posicionamento das cortes superiores consolidados em súmulas — bem como em recursos repetitivos ou com repercussão geral reconhecida — aos moldes do previsto no artigo 489, §1º, VI do CPC-2015[6], cabendo, supostamente, apenas à corte superior fazer o overruling da tese estabelecida na súmula em análise.

Vejamos, a respeito os enunciados 322 e 324 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, ambos editados no encontro de Vitória realizado em maio de 2015:

A modificação de precedente vinculante poderá fundar-se, entre outros motivos, na revogação ou modificação da lei em que ele se baseou, ou em alteração econômica, política, cultural ou social referente à matéria decidida. (Grupo: Precedentes)

Lei nova, incompatível com o precedente judicial, é fato que acarreta a não aplicação do precedente por qualquer juiz ou tribunal, ressalvado o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, a realização de interpretação conforme ou a pronúncia de nulidade sem redução de texto. (Grupo: Precedentes)

Acerca da questão, a corte bandeirante, em caso já mencionado em texto da semana passada, ciente das alterações normativas e do posicionamento doutrinário aqui exposto, se manifestou neste sentido:

Revisitando o tema, tenho que as inovações legislativas posteriores à edição da Súmula 421, do C. STJ, não mais impedem a Defensoria Pública de receber honorários, quando vitoriosa em causa contra o próprio Estado de que é integrante. […]

A ideia de autonomia diz respeito, justamente, a esta especificação no orçamento […] e [s]e os orçamentos são distintos, e se as verbas auferidas têm destinação específica, não há como perpetuar-se a tese da confusão, que norteou a consolidação jurisprudencial.[7]

Há de se concluir, portanto, que o caso levado ao STJ para reanálise do contido na súmula 421, oriundo posicionamento do judiciário do Estado de Rondônia acerca do tema, merece culminar no cancelamento de aludido enunciado, ante a evidente inadequação de sua ratio com as alterações legais e constitucionais que ocasionaram substancial mudança do regime jurídico da Defensoria Pública tornando-a absolutamente incompatível com nosso ordenamento.


[1]  Neste sentido: Supremo Tribunal Federal, Mandado de Segurança 21.450/MT, Relator Ministro Octavio Gallotti, j.  08/04/1992. Vale apontar que esta ação versava sobre repasse orçamentário na forma de duodécimos ao Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grasso, e é anterior à Emenda Constitucional 45/2004 que conferiu autonomia à Defensoria Pública. O raciocínio desenvolvido em referido Mandado de Segurança, porém, mostra-se plenamente aplicável à atual conformação constitucional da Defensoria Pública.

[2] Aponta-se que, ante o decurso do ano de 2015, e, por consequência, do exercício financeiro do referido ano, aplicou-se entendimento consolidado na corte suprema no sentido de que, caso exaurida a eficácia normativa de lei orçamentária impugnada via ação constitucional, em virtude de decurso de exercício financeiro, esta restaria prejudicada (por todos: Supremo Tribunal Federal, Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 885/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 31/08/2001). Assim, julgou-se prejudicada referida ação constitucional em 15/02/2016.

[3] Frisa-se que há discussão acerca da vinculação de defensores públicos aos quadros da OAB e se este seriam, tais quais procuradores da fazenda pública, enquadrados na categoria de advogados públicos. Tal questão foge da presente discussão, por outro lado, apenas apontamos nosso posicionamento no sentido de defensores públicos não podem ser considerados advogados públicos. A título de exemplo, frisa-se que causaria perplexidade vedar ao defensor público perceber honorários sucumbenciais pela sua atuação (art. 46, III, art. 91, III e art. 130, III, todos da Lei Complementar Federal 80/94), valores que são revertidos à própria Defensoria Pública, sendo, por outro lado, legalmente estabelecido que o poder público não pode se apropriar dos honorários do advogado público, os quais não podem ser revertidos ao órgão do qual faz parte. Veja-se o contido no art. 85, §19, do CPC-2015: “§ 19.  Os advogados públicos perceberão honorários de sucumbência, nos termos da lei”. Igualmente, já houve discussão no âmbito do STF acerca da questão, sendo confirmado o direito do advogado público de perceber honorários em razão de suas atividades, e, por consequência, proibindo-se o órgão em que este advogado atua de se apropriar de aludidas verbas: Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n. 407.908/RJ, Relator Ministro Marco Aurélio, j. 13/04/2011. Igualmente, temos a seguinte consulta formulada no âmbito da OAB: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Recurso n. 2008.08.02954-05, Relator Conselheiro Federal Luiz Carlos Levenzon, j. 08/01/2010.

[4] “Art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor”.

[6] “§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: […] I – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

[7] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível 1020766-79.2014.8.26.0224, 10ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Marcelo Semer, j. 13/04/2015, p. 08/09. 

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    é Defensor Público do Estado do Paraná, titular da 44ª Defensoria Pública de Capital, com atribuição perante as Varas da Fazenda Pública de Curitiba. Mestre em Direito Processual Civil pela USP.

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