Opinião

Direito ao silêncio no interrogatório processual não dá direito à mentira

Autor

  • Hugo Campitelli Zuan Esteves

    é advogado graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná e pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina especialista em Direito Constitucional. É cursista da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (núcleo Londrina).

19 de setembro de 2016, 6h33

Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso. (Bertold Brecht)

O interrogatório do acusado insere-se em contexto relativamente complexo no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente sob o enfoque do princípio da busca da verdade e do princípio do nemo tenetur se detegere, que parece estar a reclamar uma releitura de seus contornos.

Isto porque, como está previsto hoje, o interrogatório é ato obrigatório, compõe necessariamente a instrução processual, mas o acusado tem em seu favor o direito ao silêncio, ou seja, pode deixar de responder às perguntas que lhe são formuladas.

Não se trata de questionar o direito ao silêncio em si mesmo, mas de analisar se é compatível com a melhor interpretação permitir ao acusado – quando e se quiser – abrir mão do silêncio, pedindo para ser interrogado, caso em que teria a obrigação de dizer a verdade, o que impediria versões falsas e mendazes, que são campo fértil para o erro judicial e, portanto, para a ineficiência da prestação jurisdicional penal.

De início, o que se observa é que os direitos fundamentais apenas limitam a pretensão punitiva e a intervenção estatal, mas não a inibem. Estão, na verdade, a exigir comprovada legitimidade para que a pretensão punitiva ocorra no ambiente garantista, mas não estão a impedir que o direito de punir do Estado seja exercitado.

Contundente limitação significa que o sacrifício da liberdade individual tem que estar amplamente legitimado. Contemplada pelo ambiente garantista, a intervenção penal deve observar de maneira estrita os direitos fundamentais no curso do processo penal, o que não se confunde com impunidade, gerando um processo penal equilibrado e contribuinte à paz social.

Por outro lado, costuma-se dizer, não sem muitas críticas, que o processo penal tem por objetivo a busca da verdade (doutrina clássica acrescenta: verdade real). Mesmo para os que assim pensam, o sistema de garantias individuais no processo penal, à luz das bases constitucionais que o suportam, deve ser o fundamento para a busca dessa verdade.

Todavia, modernamente tem sido negado o princípio da verdade real como orientador da busca da prova. A doutrina tem mencionado que o modelo processual brasileiro se aproxima mais de um sistema acusatório e não inquisitorial, sendo que a busca da verdade real estaria muito mais ajustada a este último, porquanto o mito fundante seria efetivamente essa busca da verdade a qualquer custo, inclusive legitimando a produção de provas em descompasso com a ordem constitucional, que exige a produção de provas com base no garantismo.

Há autores que negam peremptoriamente que o processo penal deva buscar a verdade, visto que no sistema acusatório a verdade não é fundante, sendo a sentença um mero ato de crença, de convencimento do juiz.[1]

Outros, como Eugênio Pacelli de Oliveira, apresentam posição intermediária. Embora neguem a busca da verdade real como função do processo penal, visto que tal pretensão estaria em sintonia com o modelo inquisitivo e não acusatório, admitem a necessidade da busca de certa verdade, que pode ser processual ou corresponder simplesmente a uma certeza jurídica.[2]

Por outro lado, Fernando da Costa Tourinho Filho reafirma que o processo penal busca a verdade real, antagonizando com os citados autores mais modernos: “A função punitiva do Estado deve ser dirigida àquele que, realmente, tenha cometido uma infração; portanto o Processo Penal deve tender à averiguação e descobrimento da verdade real, da verdade material, como fundamento da sentença.”[3]

Há outros, ainda, como Habermas, que afirmam que o que deve prevalecer é uma teoria consensual (discursiva da verdade), pela qual a verdade seria uma pretensão de validez, isto é, seriam verdadeiros os enunciados que podemos fundamentar, baseados no melhor argumento, e que possam conseguir o assentimento de todas as pessoas.[4]

De todo modo, com apoio na obra de Paulo Mário Canabarro Trois Neto, deve-se aceitar a existência de um princípio da busca da verdade que permeie o processo penal, já que, sem alguma verdade – possível – apta a fundar a decisão judicial, o desfecho do processo penal é a injustiça.[5]

Sem a busca da verdade – e o atingimento daquela racional e materialmente possível –, o processo penal se torna absolutamente aético, seja para condenação de um inocente, seja para absolvição de um culpado. Nessa esteira, a verdade processual deve ser vista sob um enfoque da ética.[6]

Não sendo atingida a verdade utopicamente desejada, não se pode falar em processo penal ético, justo, que tenha eficiência, mas em uma falácia tendente a produzir injustiças, seja para punir inocentes, seja para impedir a responsabilização do culpado.

Como ensina Luigi Ferrajoli, “se uma justiça penal integralmente ‘com verdade’ constitui uma utopia, uma justiça penal completamente ‘sem verdade’ equivale a um sistema de arbitrariedade.” [7]

Insista-se que a verdade não pode ser alcançada a qualquer preço e que certamente a busca da verdade está limitada pelos princípios gerais inerentes à prova, permeados pelo respeito à dignidade da pessoa humana. A busca da verdade precisa observar o devido processo legal e as garantias fundamentais.

Por tal motivo, é imperioso que o interrogatório – caso seja pretendido pela defesa (e apenas por ela) – tenha conexão direta com a verdade e não seja, como pretendem alguns (e até como se verifica na prática, em regra), uma oportunidade excepcional para o réu mentir e tentar se furtar à sua responsabilidade penal.

Portanto, é essencial reconhecer que o interrogatório do acusado, se realizado, isto é, se afastado o direito ao silêncio pelo próprio interesse do réu (que manifesta o desejo de ser interrogado), deve ser permeado pela verdade e não pela mentira, porquanto se trata de ato processual inerente a um Processo Penal que deve buscar a verdade e não a sua negação.

Se o processo penal contemplar atos que na sua essência jamais perseguem ou visam à verdade, tal qual a admissão de um interrogatório mentiroso, certamente cai por terra a sua necessária faceta ética e a eficiência que dele se espera, sendo que as funções do Direito Penal e do Direito Processual Penal estariam fatalmente fadadas ao insucesso.

Se de um lado há evidente arbitrariedade na produção de provas sem a observância dos princípios constitucionais inerentes ao Processo Penal, por outro há inegável abuso ao se deferir a uma das partes, no caso o réu, o direito a usar da mentira para convencimento do juiz.

Ademais, se o Estado tem que ser contido para limitar sua ânsia de aplicar o Direito Penal, da mesma forma o autor de um fato criminoso não pode, para além de seu desvio de comportamento, receber graciosamente a oportunidade de subverter a finalidade do processo mentindo, criando versões falsas.

Portanto, o interrogatório mentiroso constitui ato processual que está em desacordo com a busca da verdade que norteia, sim, o processo penal, não sendo, por óbvio, admissível. Elevar o direito ao silêncio a um pretenso direito a mentir constitui prática que ofende o Processo Penal, cuja pretensão é de reconstituir a verdade possível e, com base nela, ofertar uma sentença justa.

Se o Estado estimula a mentira e a aceita como estratégia válida de defesa, certamente se torna injusto, aplicando inadequadamente o Direito Penal e acabando por incutir na consciência coletiva a pouca importância que dedica aos valores éticos e sociais, afetando a crença na justiça penal e propiciando que a sociedade deixe de respeitar tais valores.

A problemática reside unicamente na ausência de previsão legal à conduta do acusado mentiroso, pois “não se trata de um direito de mentir, mas, simplesmente, da não punição da mentira”.[8]

Trata-se do evidente descrédito que a palavra do réu possui na instrução processual, justamente pela impunidade da mentira. A exortação da mentira como um direito, difundida e defendida ao longo dos anos no Brasil, provocou inconteste desprestígio à versão do acusado.

Assim, ainda que esteja declarando a verdade, o acusado padece do estigma de mentiroso, falseador de versões, consequência que contrasta com o sistema de garantias, já que francamente prejudicial aos interesses do réu.

Exigir a existência do interrogatório e, simultaneamente, oferecer o direito ao silêncio, longe de servir aos interesses do acusado só o coloca em posição negativa, desacreditada. Trata-se de incorreta interpretação do direito ao silêncio.

Ainda que não possa constituir fundamento da sentença, o exercício do silêncio opera, no íntimo do juiz, efeitos que não são passíveis de contenção. Se a lei obriga que o réu compareça perante o juiz para ser interrogado, porém, ali chegando, o acusado se recusa a responder às perguntas de mérito, a impressão que passará ao juiz é a pior possível. Como a sentença será fruto do convencimento do julgador, trata-se de situação amplamente desfavorável ao acusado.

Nesse particular, Guilherme de Souza Nucci, francamente apoiador do direito à mentira, à luz de sua experiência como juiz, evidencia o problema que o exercício do direito ao silêncio, nos moldes brasileiros, produz no espírito do magistrado, que trabalhará com suspeitas em seu íntimo.[9]

Ora, o fato de o juiz não poder externar o convencimento que o silêncio produziu no seu espírito obviamente não é capaz de retirar a influência negativa ocorrida. Deixada de lado a hipocrisia, sabe-se bem que em um processo com a prova controvertida é perfeitamente possível defender robustamente uma posição ou outra, absolvição ou condenação.

Numa situação como esta, o silêncio do acusado trabalhará silenciosamente no espírito do julgador, movendo-o para decidir pela condenação. Daí uma das razões para o desacerto da interpretação do direito ao silêncio.

Conquanto não tipificado o crime de perjúrio no Brasil, não se pode admitir que a mentira seja um mecanismo aceito no ordenamento jurídico como meio de defesa, sendo a única conclusão possível a de que o interrogatório não pode ser um ato obrigatório

Diante disso, é valido o ensinamento de Eugênio Pacelli de Oliveira de que o direito ao silêncio se manifesta no não comparecimento injustificado à audiência.[10]

Guilherme de Souza Nucci[11], por sua vez, deixa claro que a imprescindibilidade do ato gira em torno do oferecimento do juiz ao acusado de oportunidade para que este seja ouvido.

De mesma forma, quando o acusado for devidamente intimado e não apresentar justificativa pertinente, a sua ausência no interrogatório deverá ser interpretada como mero exercício do direito ao silêncio, a não ser que o juiz entenda ser necessário realizar sua qualificação formal, que não pode ser abrangida por este princípio, única hipótese em que o réu pode ser conduzido coercitivamente.

Se já existir a qualificação, não há que se falar em uso de força física para que o réu compareça ao ato para tratar sobre o mérito. Isto porque o réu possui o tão afirmado direito de nada dizer.

Também neste sentido, é deveras louvável o entendimento de que, na verdade, o melhor seria se o acusado sequer fosse intimado para o ato do interrogatório. Ou seja, que a intimação, assim como a realização do interrogatório, também se tornasse dispensável. Isto porque, como dito, o seu não comparecimento injustificado, atualmente, poderá – e deverá – ser interpretado como exercício do direito ao silêncio.

Assim, a regra seria que não houvesse a realização de interrogatório e isto não afetaria o convencimento íntimo do juiz. Acontecendo somente quando a defesa requerer, a realização do interrogatório, neste caso, sim, daria elementos que verdadeiramente poderiam afetar o juiz.

Destarte, o direito ao silêncio deve ser interpretado como o direito à realização facultativa do interrogatório e não mais como a exigência de comparecimento ao ato para, então, silenciar-se. O acusado, então, não trabalhará com a hipótese obrigatória do interrogatório, devendo, todavia, quando requerer que o ato aconteça, declarar somente fatos verdadeiros.

De tal modo, o interrogatório, numa visão mais aprofundada e garantista do direito ao silêncio, deve ser ato excepcional, que ocorra a critério exclusivo da defesa.

Não se trata, em verdade, de colisão entre o eficientismo e o garantismo. Trata-se, em verdade, de uma colocação escalonada entre tais direitos fundamentais, com prevalência, inclusive, para o garantismo.

Na sequência, caso quisesse ser interrogado, o acusado seria compromissado a dizer a verdade, medida que atenderia aos ditames da eficiência da Justiça Penal, na vertente da busca da verdade, cumprindo outro direito fundamental (da proteção penal eficiente).

Anote-se que a tipificação do interrogatório falso como infração penal viria, inclusive, a ampliar o prestígio de tal ato. Trata-se, então, do correto equilíbrio entre os direitos fundamentais, porquanto observada a superioridade e a precedência da garantia individual ao silêncio.

Referências
ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 3. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1994.

COUCEIRO, João. A garantia constitucional do direito ao silêncio. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. rev. e atual. até 31 de dezembro de 2005 – 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2007.

MORAES, Maurício Zanoide de. Interrogatório: uma leitura constitucional. Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. atual. de acordo com as Leis nº. 12.403, 12.432, 12.461, 12.483 e 12.529, todas de 2011, e Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011 São Paulo: Atlas, 2012.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

TROIS NETO, Paulo Mário Canabarro. Direito à não autoincriminação e direito ao silêncio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.


[1] LOPES JR, 2013, p. 575.
[2] OLIVEIRA, 2012, p. 323-324.  
[3] TOURINHO FILHO, 2009, p. 17.
[4] HABERMAS apud TROIS NETO, Paulo Mário Canabarro. Direito à não autoincriminação e direito ao silêncio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 56.
[5] TROIS NETO, 2010, p. 56.
[6] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 7.
[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 38.
[8] TOURINHO FILHO, 2009, p. 554.
[9] NUCCI, 2011, p. 434.
[10] OLIVEIRA, 2012, p. 373.
[11] NUCCI, 2011, p. 422-423.

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    é advogado, graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná e pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina, especialista em Direito Constitucional. É cursista da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (núcleo Londrina).

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