Opinião

Denúncia de Lula e o processo kafkiano à brasileira

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17 de setembro de 2016, 7h22

A clássica obra do Franz Kafka, escritor tcheco de língua alemã e origem judia, O Processo, conta a história de Josef K., bancário que é processado sem saber o motivo. A figura de Josef K. é o paradigma do perseguido que desconhece as causas reais de sua perseguição, tendo que se ater apenas às elucidações alegóricas e falaciosas vindas de variadas fontes. “Sem motivo Josef K. é capturado e interrogado em seu aniversário de 30 anos. As circunstâncias são grotescas, ninguém conhece a lei e a corte permanece anônima. A "culpa", descobre Josef K., torna-se-lhe inerente, sem que ele possa fazer algo contra isso. Obstinadamente, mas sem sucesso, ele tenta lutar contra o crescente absurdo e envolvimento, ignora todo aviso de resistência e é por fim executado um ano depois nos portões da cidade." A obra deu origem ao termo “processo kafkiano”, segundo o dicionário Aurélio, kafkiano equivale a situação absurda, opressiva, digna de figurar na obra de Kafka.

A história do processo penal está relacionada com o poder mais primitivo: o poder punitivo. Como é próprio do Direito, além de constituir instrumento e manifestação de poder, o processo, também, reflete valores sociológicos, éticos e políticos. Portanto, é inegável a relação existente entre o direito processual e a ideologia dominante em determinado país. [1]

Na concepção do processo penal democrático e constitucional, a liberdade do acusado, o respeito à sua dignidade, os direitos e garantias fundamentais são valores que se colocam acima de qualquer interesse ou pretensão punitiva estatal. Em hipótese alguma pode o acusado ser tratado como “coisa”, “instrumento” ou “meio”. De tal modo, não se pode perder de vista a formulação kantiana de que o homem é um fim em si mesmo.

Hodiernamente, o processo penal não pode ser tomado como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas, também, como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Como bem adverte Aury Lopes Jr.,

há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forme rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal).[2]

Não é despiciendo ressaltar que no processo penal garantista e democrático o princípio da presunção de inocência — correlato ao princípio da jurisdicionalidade (jurisdição necessária) — ocupa um lugar especial dentre os princípios processuais garantistas. Segundo Ferrajoli, o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade “fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”. [3]

Desprezando todos os princípios fundamentais e elementares do processo penal e do direito penal os procuradores da República da força tarefa da operação "lava jato" ofertaram contra o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, a ex-primeira-dama Marisa Letícia e mais seis pessoas, denúncia que remete ao processo kafkiano, processo kafkiano à brasileira. A denúncia exibida à imprensa com toda pompa pelo procurador Deltan Dallagnol no final do dia 14 de setembro denota uma situação absurda e opressiva, típica de um processo autoritário, inquisitório e kafkiano.

Qualquer promotor de Justiça recém-aprovado em concurso público sabe que a denúncia deve fazer imputações de fatos certos e determinados, além da descrição do fato típico com todas as suas circunstâncias, necessário que seja individualizada a conduta de cada um dos imputados. É imprescindível que o acusado saiba exatamente dos fatos a ele imputado para que assim possa exercer amplamente seu direito de defesa.

Os procuradores da República da força tarefa capitaneada pelo senhor Deltan Dallagnol ao invés de seguirem o caminho da discrição, da imparcialidade, da racionalidade e da prudência que deveria nortear o Ministério Público, optaram por seguir a trilha da ostentação, do sectarismo, da irracionalidade e da leviandade.

Transformaram um procedimento penal em um espetáculo deprimente e de completo desrespeito aos acusados.

Segundo a lição de Hélio Tornaghi,

Levando em conta que o acusado é parte no processo e exatamente a parte fraca, contra a qual se pede a aplicação da lei, as ordenações amantes da justiça procuram cercá-lo de todas as garantias. Não se trata apenas de liberalismo e muito menos de liberalidades; por isso não falei em ordenações liberais e sim em ordenações que prezam a justiça, porque o Estado não poderá estar certo de haver feito justiça e, por isso mesmo, não tranquilizara o homem de bem, se não der ao acusado a maior e mais ampla, a mais ilimitada possibilidade de defender-se. Entre as grandes conquistas da humanidade, inscritas nas Constituições modernas figura essa. [4]

Do reconhecimento do respeito à dignidade humana decorre que o homem não pode, em hipótese alguma, ser submetido a pena ou a tratamento degradante ou cruel, quer seja durante o curso do processo penal, na fase de cognição ou durante a execução da pena. “Mesmo na fase de investigação preliminar, em que há mero procedimento administrativo, o investigado/acusado é sujeito de direitos”. [5]

O decano do Supremo Tribunal Federal ministro Celso de Mello já salientou que:

O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal Federal não pode demitir‐se, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor deque a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.

No que se refere ao processo penal do espetáculo, Rubens Casara assevera que:

não há espaço para garantir direitos fundamentais. O espetáculo não deseja chegar a nada, nem respeitar qualquer valor, que não seja ele mesmo. A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento… No processo espetacular desaparece o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir da atividade das partes, substituído pelo discurso dirigido pelo juiz: um discurso construído para agradar às maiorias de ocasião, forjadas pelos meios de comunicação de massa em detrimento da função contramajoritária de concretizar os direitos fundamentaisO caso penal passa a ser tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser consumida. A consequência mais gritante desse fenômeno passa a ser a vulnerabilidade a que fica sujeito o vilão escolhido para o espetáculo. [6]

Num jogo de cena, de imagens e retóricas os procuradores da Força Tarefa deixam de apresentar o essencial em qualquer acusação: a prova. Aliás, eles admitem que não há prova, mas que sobra convicção. Fazem afirmações tão impactantes quanto irresponsáveis e insensatas. Confundem, propositalmente, evidência com prova.

No dizer de Salah H. Khaled Jr. “

a evidência jamais deve ser tida como verdadeira, enquanto a prova — identificado como rastro remanescente do passado — permite em alguma medida essa referência, ainda que de forma tênue e insuficiente para caracterizá-la sob o signo da verdade correspondente, pois este regime de verdade, não é adequado para o processo penal (…) Portanto, não é aceitável tomar como verdadeira a evidência em uma estrutura acusatória, pois é uma exigência do devido processo legal que em âmbito processual a prova deva ter um alto grau de correção, superando a mera evidência.[7]

Embora alguns setores da mídia e “juristas” de ocasião já tenham se apressado em dizer que para denunciar não é necessário prova, mas apenas indícios, é fundamental dentro da opção constitucional pelo processo penal democrático no qual todos, sem exceção, devem ser tratados dignamente, e que de igual modo impõe limites ao exercício do poder punitivo, que haja justa causa, ou seja, “suporto probatório mínimo da prática do crime por uma determinada pessoa”.[8] É a justa causa, no dizer de Casara e Melchior, que demonstra “a seriedade da acusação, que impede acusações levianas ou imputações temerárias, despidas de suporte fático”.[9] Uma condição de garantia contra arbitrariedades, autoritarismo e abuso do direito de acusar.

Diante de tudo, não resta dúvida de que os procuradores da força tarefa abandonaram os princípios norteadores do Estado democrático de direito que tem como postulado o respeito à dignidade da pessoa humana, para atuarem como agentes político-partidários guiados pelo autoritarismo, pelo desprezo às garantias constitucionais e atropelando a própria democracia que tem sido golpeada aqui e acolá.


1 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

2 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

3 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

 

4 TORNAGHI, Helio. A relação processual penal. São Paulo: Saraiva, 1987.

5 CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR , Antonio Pedro: dogmática e crítica. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 464.

6 CASARA, R. R. Rubens. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

7 O caráter alucinatório da evidência e o sentido da atividade probatória: rompendo com a herança inquisitória e a filosofia da consciência. In Verdade e prova no processo penal: Estudos em homenagem ao professor Michele Taruffo. Ada Pellegrine Grinover…(et al); coordenador Flavio Cardoso Pereira. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2016.

8 CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR , Antonio Pedro: dogmática e crítica. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 443.

9 Idem.

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