Opinião

Revolução digital no setor agribusiness pode gerar controvérsias jurídicas

Autor

  • Guilherme Cardoso Leite

    é advogado sócio do escritório Machado Leite e Bueno Advogados mestre em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

15 de setembro de 2016, 6h35

Em painel apresentado no Global Agribusiness Forum, em julho, na cidade de São Paulo, o CEO para o Brasil da Monsanto, Rodrigo Santos, afirmou que “a agricultura digital está para a lavoura assim como o aplicativo Waze está para o tráfego nas grandes cidades”[1]. Essa afirmação representa de modo bastante adequado uma agenda de desenvolvimento tecnológico que tem afetado diretamente o setor do agronegócio mundial: a agricultura digital.

A agricultura digital é um fenômeno recente, mas não se desconecta das contribuições advindas das revoluções acarretadas pela difusão da biotecnologia e pela implementação das técnicas da agricultura de precisão. Um olhar para o passado permite compreender que estes dois momentos proporcionaram ao produtor rural e às companhias que exploram o mercado dedicado ao setor agro produzir e armazenar uma grande quantidade de informações relacionadas à agricultura e à pecuária mundo afora. Tais informações têm se tornado a base prática para o adequado funcionamento da agropecuária digital, dependente que é da manipulação de dados e da interação algorítmica.

Inicialmente, o desenvolvimento e a difusão mais ampla da biotecnologia foram possíveis em decorrência do reconhecimento da possibilidade do registro de patentes no caso Diamond vs. Chakrabarty, julgado pela Suprema Corte norte-americana em 1981. Em tempos mais recentes, o aprimoramento dos mecanismos de automação relacionados à agricultura de precisão foi essencial para o aumento da produtividade a partir da captura e da utilização de dados climáticos e de qualidade do solo. Esses avanços se fizeram possíveis graças ao desenvolvimento de tecnologias de georreferenciamento. O plus nessa sequência de acontecimentos advém da ampliação dos recursos de tecnologia da informação que passam a ser empregados na atividade agrícola. Nesse sentido, destacam-se primordialmente a produção e gerência de megadados (big data), viabilizadas em grande parte pelo desenvolvimento da chamada computação em nuvem.

O termo big data ganhou popularidade a partir da definição de Doug Laney, no início dos anos 2000. Embora não exista uma definição bem acabada de big data, a expressão tem designado conjuntos de dados e informações veiculados na rede mundial de computadores, que são acessíveis à sociedade, às empresas e aos governos e que tendem a possuir relevante valor econômico, social, cientifico, político etc. A existência dessas informações e a sua circulação na internet são imensamente fortalecidas em sua utilidade com a aglomeração em “nuvens” de dados. Tem-se com isso um ambiente de rápida sinergia digital, que gera informações agregadas sobre vários assuntos, inclusive no setor agropecuário. O processamento das informações geradas e armazenadas pelo produtor rural e pelas companhias que exploram o setor agro utilizando megadados diferencia-se da simples automação mecânica da produção e tende a ser aplicado à maximização da produção agropecuária mediante uma massiva, rápida e flexível articulação estratégica entre dados coletados.

A despeito da arraigada concepção da agropecuária como sendo uma atividade bucólica e isolada dos grandes centros de informação e de negócios, não é difícil conceber que o agronegócio rentável hoje está imerso no ambiente das novas tecnologias e se utiliza de aplicativos para smartphones e tablets, robôs, inteligência artificial etc. para gerir dados e obter informações precisas no menor espaço de tempo possível. A compreensão desse cenário tecnológico atual possibilita projetar uma fazenda constantemente monitorada por drones com câmeras de alta resolução e invadida por agrobots que fazem o levantamento qualitativo do solo, a aniquilação de ervas daninhas e o controle de pragas; cujos pastos são ocupados por animais portadores de sensores com o objetivo de indicar ao fazendeiro a quantidade de ração ingerida, além do seu peso e condição de saúde e bem-estar atuais; que se utiliza massivamente de sistemas de GPS para coletar dados específicos do talhão trabalhado e para controlar a frota de tratores, acompanhada e comandada que é à distância pelo encarregado da operação ou mesmo pelo produtor rural; que aglomera vários tipos de informações para facilitar a interpretação de cenários negociais; dentre outras situações.

Um dado relevante a ser extraído do contexto da agricultura digital diz respeito à existência de uma considerável quantidade de plataformas ou softwares desenvolvidos para a coleta, o monitoramento, o armazenamento e a integração de dados. Tais sistemas informatizados de convergência tecnológica têm sido em grande parte apresentados por pequenas empresas de tecnologia da informação (startups) de países como o Brasil, os Estados Unidos e a Índia como produtos ou serviços que objetivam contribuir com a integração das informações obtidas junto aos produtores rurais de forma a maximizar os resultados no campo. Importantes companhias transnacionais que exploram o mercado do agronegócio — como é o caso da Monsanto, da Basf e também de bancos como o Rabobank — e que atuam no desenvolvimento de softwares — caso da Microsoft, da IBM e da Oracle — estão empenhadas em fomentar o desenvolvimento desses sistemas operacionais e, por isso, têm investido na aquisição ou no patrocínio dos projetos. Alguns desses investimentos contam com a expertise de aceleradoras de startups — citem-se a brasileira ACE, a norte-americana RocketSpace e a indiana CIIE Food & Agri-business Accelerator exemplificativamente — ou são internalizados à estrutura da holding — vale mencionar o exemplo da Climate Corporation e da AgConnections, respectivamente braços tecnológicos da Monsanto e da Syngenta para o atendimento à agenda da agricultura digital. No caso da Monsanto, existe ainda o ambicioso objetivo, já divulgado, de criar uma plataforma de negócios para o setor agro semelhante à Amazon: “Isso permitirá à companhia construir um ‘bazar’ virtual onde os fazendeiros poderão comprar serviços e dividir dados online com a Monsanto e outras companhias”[2].

Uma vez que máquinas, animais e solo são monitorados, a promessa de incremento na produtividade em auxílio e benefício do produtor rural representa uma visão meramente unilateral ou, quando menos, míope, porque desconsidera o fato de que as companhias que gerem os dados decorrentes da atividade rural passam a deter preciosas e qualificadas informações submetidas ao tratamento de megadados. Na verdade, informações valiosas tornam-se disponíveis e podem ser utilizadas pelas empresas desenvolvedoras e por suas patrocinadoras para induzir comportamentos relacionados à produção e ao consumo, às vezes até mesmo contra os interesses dos produtores rurais.

O cenário exposto pela agricultura digital demonstra, portanto, não somente o aproveitamento inteligente de tecnologias avançadas, mas também uma considerável fragilidade do produtor rural. Essa fragilidade está evidenciada na possibilidade de que o produtor rural venha a ser conduzido em suas decisões pelas definições estabelecidas por companhias exploradoras do mercado do agribusiness, na medida em que gozam de informações privilegiadas sobre o produtor rural de forma individualizada ou regionalmente considerado. Essa observação é pertinente também quando se tem em vista as definições de políticas públicas adotadas ou a serem adotadas pelos governos. Alguns exemplos dessa exposição do produtor rural a esses efeitos da agricultura digital devem ser mencionados: a obsolescência tecnológica de implementos agrícolas passa a ser acompanhada pelos fornecedores de peças e de maquinários com o intuito de oferecer de forma tempestiva um serviço de manutenção ou uma nova geração do mecanismo ou softwares utilizados; a estratégica concessão de benefícios mercadológicos para a compra de determinado tipo de químico eventualmente armazenado em grande quantidade em uma determinada região do país tende a incrementar a aquisição e a utilização deste químico no processo produtivo; a definição da logística de sementes impacta o que produzir e possibilita o monitoramento, pelo fornecedor e pelo governo, da qualidade distribuída do produto agrícola; estímulos oficiais e empresariais ao desenvolvimento de tecnologias acarreta facilidades à produção agrícola e possibilita a imersão da sociedade no consumo desse tipo de produto agrícola beneficiado — o exemplo mais expressivo é o dos alimentos transgênicos.

Por isso é que se sustenta que a importante agenda da agricultura digital tende a acarretar consequências tanto sob o prisma dos direitos de produção quanto dos direitos de consumo, na medida em que o controle dos dados, das informações obtidas historicamente junto ao produtor rural, pode manipular o que ele produzirá e o que o mercado de consumo receberá, e tem um adicional efeito de pressão que pode ser exercido pelas grandes corporações junto aos governos. Este panorama em que ocorre a obtenção massiva de informações advindas da rotina no campo e a sua utilização pelo produtor rural e pelas companhias desenvolvedoras dos sistemas informatizados integrados à agricultura digital apresenta um relevante desafio aos juristas e aos definidores de políticas públicas com viés econômico.

Na agropecuária moderna, como visto, as informações assumem papel preponderante na definição de estratégias de plantio, no acompanhamento climático, no desenvolvimento de tecnologias mecânicas e químicas, na gestão da logística, em aspectos concorrenciais e financeiros, no monitoramento da rotina dos trabalhadores rurais, dentre outros. Além disso, países com dedicação agrária como o Brasil se veem potencialmente envolvidos em um ambiente de constantes experimentações e tendem a ser constantemente influenciados por corporações, em especial por grandes empresas que exploram o potencial do país.

O contexto do desenvolvimento e da difusão das práticas atreladas à agenda da “agricultura digital” alinha-se às preocupações do ferramental teórico e analítico da Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE). Desenvolvida e sistematicamente utilizada pelo grupo de pesquisa Direito, Economia e Sociedade (GDES), da Universidade de Brasília (UnB), essa ferramenta de pesquisa empírica se interessa pelo diálogo interdisciplinar e reconhece a ação social como objeto de avaliação a partir de diferentes pressupostos que extrapolam o âmbito de motivação puramente econômica. Na medida em que implementam um diálogo interdisciplinar, as ferramentas analíticas da AJPE aplicam-se à aferição da efetiva fruição de direitos subjetivos e à observação do interesse atingido por uma determinada política pública já implementada ou pela atuação dos agentes econômicos. Nesse sentido, a AJPE busca compreender as relações entre direito e a ação econômica das economias de mercado tendo por orientação teórica a percepção de que os agentes econômicos relacionam-se contratualmente a todo momento, com o objetivo, consciente ou não, de fazer trocas materiais para a produção ou para o consumo.

No caso específico da agricultura digital, a AJPE reconhece que as informações geradas pelo produtor rural e geridas por sistemas de tecnologia da informação desenvolvidos e executados por empresas que exploram o mercado do setor agropecuário possuem inestimável valor comercial. Esse reconhecimento decorre da constatação de que tais corporações podem utilizar os dados com o objetivo de interferir de alguma forma no mercado de sementes, de químicos agrícolas, de logística, de peças e implementos, de localização geoespacial etc.; ou mesmo para influenciar conteúdos disponibilizados às agências de informações ou a definição de políticas públicas pelos governos. O inestimável valor econômico e técnico de tais informações abre um novo flanco de mercado e tende a exigir um acompanhamento jurídico atento à utilização dos dados. Ao passo que surge para os órgãos de governo uma relevante oportunidade para melhor conhecerem a sua produção interna e para orientarem com estímulos um ou outro setor, desponta também uma potencial possiblidade de manipulação de dados pelas companhias que os detêm, dentre as quais se destacam as desenvolvedoras de softwares de gestão de informações que são amparadas e patrocinadas pelos grandes agentes econômicos mundiais do setor do agronegócio — afinal, quem detém informação, detém o poder. Por isso é que a definição de políticas públicas no setor agropecuário deve considerar os impactos sobre produção e o consumo (e, neste último caso, estaremos abrangendo até mesmo a temática da segurança alimentar) decorrentes da obtenção e da utilização de informações pelos fornecedores de produtos e serviços.

Além de tudo o que está dito acima, o desenvolvimento da agricultura digital introduz também desafios relativos ao que Tim O’Reilly descreve como regulação algorítmica. Isso porque os algoritmos permitem a mensuração em tempo real dos resultados alcançados; e porque os algoritmos fazem ajustes automáticos baseados nos novos dados que são acrescidos ao ambiente virtual, o que facilita o monitoramento ou a alteração de algum critério de regulação.

Em resumo, conquanto represente uma mudança no modo de compreender e de lidar com o trabalho no campo, a agricultura digital traz riscos e desafios. Essa revolução pode ser benéfica para o produtor rural e para a economia interna, uma vez que contribui para a melhoria da gestão e dos resultados da agropecuária. Contudo, o emprego das novas tecnologias também pode atuar em benefício apenas dos agentes econômicos que exploram as várias áreas do agronegócio e que passarão a deter preciosas informações acerca do comportamento do produtor rural. Por isso, os juristas devem enfrentar os desafios decorrentes deste novo cenário de relações interportfolio, o que demandará a compreensão do fenômeno da agricultura digital e a elaboração de instrumentos que primem por efetivar a fruição empírica de direitos subjetivos, em especial do produtor rural.

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    é advogado, sócio do escritório Machado, Leite e Bueno Advogados, mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

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