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Renato de Moraes: Trânsito em julgado não permite interpretação

13 de setembro de 2016, 16h45

Por Renato de Moraes

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Em 22 de setembro de 2008, esta revista fez publicar texto de minha autoria[1], em que comentava o julgamento do HC 84.078-MG, interrompido pelo pedido de vista do ministro Menezes Direito, hoje falecido.

Rememorando, tratava-se de julgamento significativo para assegurar efetividade ao princípio da presunção de inocência ou de não-culpabilidade, relegado, muitas vezes, ao plano acadêmico. Debatia-se o verbete da Súmula 267 do Superior Tribunal de Justiça, orientação consolidada pela 3ª Seção da Corte, em maio de 2002.

O relator, ministro Eros Grau, na sessão plenária de 9/4/2008, produziu voto conclamando os seus pares a bem refletir, pois lhes “incumbe impedir, no exercício da prudência do Direito, para que prevaleça contra qualquer outra, momentânea, incendiária, ocasional, a força normativa da Constituição. Sobretudo nos momentos de exaltação. Para isso fomos feitos, para tanto aqui estamos”.

Nada então mais oportuno. Nada então mais consentâneo.

O ministro Eros Grau, neste contexto, ao reafirmar, no voto, o repúdio ao corrente desapego, sempre movido por intoleráveis casuísmos, à Lei Maior, advertiu: “a prevalecerem razões contra o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete!”.

Prevaleceu, ao final do julgamento, o importante voto do ministro relator Eros Grau2.

Lamentavelmente, passados oito anos, devido ao decidido no HC 126.292-SP pelo Plenário da Suprema Corte, o mesmo tema retornou à pauta, a partir das ADCs 43 e 44.

Iniciado o julgamento em 1º de setembro último e proferido o voto do relator, ministro Marco Aurélio, consagrando o vigor da presunção da inocência e acolhendo os reclamos, foi interrompido, devendo ser retomado nesta semana.

Uma questão central, entre tantas já veiculadas nos meios de comunicação e da própria tribuna do Supremo, por exemplo, pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, São Paulo e da União, além da aplaudida e tocante sustentação do presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, Técio Lins e Silva, merece ser ressaltada: regra constitucional ou infraconstitucional que não possui lacunas ou conceitos equívocos pode ser interpretada pelo Judiciário?

No HC 126.292-SP, os ministros que aderiram à relativização da presunção de inocência interpretaram o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988 e o artigo 283 do Código de Processo Penal, quando tais dispositivos não comportam tratamento hermenêutico. É ler, respectivamente:

"ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"; e

ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

O conceito de trânsito em julgado, mais ainda, de “sentença condenatória transitada em julgada”, como expressão usada para uma decisão judicial da qual não se pode mais recorrer, não dá margem a interpretações.

O espírito do legislador constituinte, ao estabelecer a presunção de inocência no artigo 5º, inciso LVII, e do ordinário, ao regular, pela Lei 12.403, de 2011, o preceito no artigo 283 do Código de Processo Penal, às escâncaras, é tão claro que não demanda a compreensão do conteúdo das normas.

No caso, "a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas” já exprimem “o correto significado da norma"[3].

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 126.292-SP, por maioria de seus integrantes, interpretou dispositivos inequívocos, indo além e, mais grave, subvertendo a mens legis, implicando, ao fim e ao cabo, legislar a respeito de cláusula pétrea.

O mesmo Supremo Tribunal Federal, nas ADCs 43 e 44, pode e deve retomar o rumo de guarda maior da Carta Política, vindo, a propósito, à memória pensamento, em tom indagativo, do ministro Marco Aurélio, que toca fundo e vale citar:

A pergunta que sempre fica no ar é a seguinte: de que maneira então, presente o sistema processual como um grande todo, presente o princípio da não-culpabilidade, chegar-se a ato extremado como é o do cerceio da liberdade de ir e vir, enclausurando-se aquele que se mostra inconformado com a decisão condenatória, se, reformada esta, não há a possibilidade de se devolver a liberdade perdida?”[4].

Não há possibilidade de se devolver a liberdade perdida!

Encerro com a esperança externada por Técio Lins e Silva, presidente do IAB, ao assomar a tribuna da corte na ação declaratória ajuizada pelo Conselho Federal da OAB: “Eu quero continuar vivendo com a esperança de que esta Casa seja efetivamente a Casa de Justiça”.

Todos querem.

Oxalá!


2 DJe de 26/02/2010.

3 Introdução ao Estudo do Direito, Tércio Sampaio Ferraz Junior. Ed. Atlas S.A. 2003.

4 HC nº 83.541-RJ, 1ª Turma, decisão publicada em DJ de 19/9/2003, grifou-se, grifou-se.