Academia de Polícia

Distinções equivocadas mostram cultura do estupro arraigada no Estado

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

13 de setembro de 2016, 13h29

Spacca
Foi noticiada recentemente a horripilante e grotesca declaração de um promotor de Justiça, em audiência, criminalizando uma vítima de abuso sexual praticado pelo próprio pai. A fala causou comoção social, em especial, pela (re)vitimização pelo próprio MP, um dos órgãos da sociedade com função de proteção social aos vulneráveis. Por que será que ainda lidamos com esta cultura machista e de fomento à cultura do estupro em pleno século XXI?

O Código Penal de 1940, a toda evidência, ao tratar dos crimes contra a dignidade sexual o abordou com a ideologia machista e paternalista da época, impregnada de questões moralistas, que levaram o legislador a intitular essa gama de crimes atrozes em seu “Título VI – Dos Crimes Contra os Costumes”, inaugurando o “Capítulo I – Dos Crimes contra a Liberdade Sexual”, considerando como se o bem jurídico tutelado “o costume” e o “senso moral” da época, consequentemente, a criminalização da liberdade da vida sexual parametrizada com questões religiosas e não na dignidade da pessoa humana, o que evidentemente, tornou-se incompatível sob a nova ordem constitucional.

Um exemplo desta incompatibilidade podemos citar o emprego pelo legislador, brasileiro, ao longo do tempo, do conceito de “mulher honesta”, que é empregada desde as Ordenações Filipinas. O Brasil, no início da sua colonização teve como primeiro ordenamento imposto por Portugal as Ordenações Afonsinas, depois as Manuelinas, e, finalmente, as Filipinas. Seu Livro V, advindo de D. Afonso IV descrevia os delitos e cominava as penas onde podemos encontrar expressões como “mulher honesta” e “viúva honesta”.

O presidente da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal de 1969, Nelson Hungria (Hungria e Lacerda, 1980, página 150), assim se lecionava sobre a elementar normativa “mulher honesta”:

“como tal se entende, não sòmente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigida pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente desregrada, aquela que inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação (cum vel sine pecúnia accepta)”

Salta aos olhos a violação do princípio da legalidade estrita das elementares daqueles tipos penais, mesmo assim, a doutrina conviveu com essas redações, mesmo após quase 21 anos de promulgação da Constituição de 1988, convivência fruto da cultura machista. Essa concepção tipicamente de uma cultura machista, fruto do paternalismo oriundo das ordenações do reino, que nitidamente influenciaram nossa legislação até o advento da Lei 12.015/2009, somente demonstram os reflexos de uma cultura atrasada, na qual encontra, ainda hoje, caixa de ressonância em alguns “operadores” do Direito, que em coro com o senso comum, entoam verdadeiro mantra à cultura do estupro.

Nossa legislação tentou melhorar o limite entre a proteção e resguardo da autonomia. Conseguiu? Qual seria a diferença entre o artigo 217-A, parágrafo 1º e o seu caput? Neste diapasão, haveria correlação entre as diferentes teleologias das expressões “menor de 18 (dezoito) anos” e “ou pessoa vulnerável”, empregadas no artigo 225, parágrafo único do Código Penal? Teria havido distinção, pelo legislador, entre as elementares “vulnerável” e “pessoa vulnerável” para a tipificação dos delitos acima mencionados e uma correlação necessária entre estes e uma ação penal pública incondicionada? Esta distinção nos mostrará se o legislador soube distinguir o bem a se proteger e o respeito à autonomia da vontade, sem olvidarmos, todavia, que a ação violenta também retira da vítima, maior de idade, a capacidade de resistência ao ato violento, em seu aspecto ontológico.

Em outras palavras, a vulnerabilidade da violência é física, ou seja, por uma ação da mesma natureza, como a força empregada por algum objeto ou pessoa sobre o corpo da vítima, pode, ainda, esta força física lhe retirar ou não a consciência, como por exemplo uma pancada na cabeça. Não deixa de existir nestes casos uma circunstância vulnerante ou de vulnerabilidade, como elementar do tipo. Lembrando que esta circunstância não é novidade em nosso código, que a apresenta, em outras ocasiões, como uma circunstância agravante, conforme artigo 61, II, “c”, do Código Penal.

Distinta é a vulnerabilidade tratada nas elementares constantes no artigo 217-A, caput e parágrafo 1º do CP e a correspondente manifestação de vontade das pessoas enumeradas no artigo 225, parágrafo único do CP.

Nós trataremos destas elementares denominando-as de circunstâncias vulneráveis biológicas (menor de 14 anos) e biopsicológicas (pessoas vulneráveis). Em paralelismo com as circunstâncias já previstas no código para se analisar a imputabilidade do autor, por ser mais racional e objetivo para analisá-las, como também relevantes para a conduta da vítima nesses crimes, como um critério biopsicológico, que consiste na observação de um agente causador (causa) e sua relação ou vínculo com a consciência dos atos queridos pela vítima.

Impende salientar que grande parte dos doutrinadores não realizam a distinção entre vulnerável e pessoa vulnerável, bem como entre vulnerabilidade permanente e temporária, como sinalizou o STJ, em seu Informativo 553, HC 276.510-RJ, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 11/11/2014, DJe 1º/12/2014, bem como alguns doutrinadores (Gilaberte, 2014, página 103). No intuito de se especificar ainda mais este tópico, tomemos, ainda o STJ, confrontando o julgamento acima com o REsp. 1480881/PI (2014/0207538-0), relator ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 26 de agosto 2015, entendeu em hipótese de menor idade, pessoa vulnerável não se confunde com vulnerável.

Nos parece que devamos caminhar pela lógica apresentada pelos professores e a dos julgados mais recentes do STJ, no sentido de que há de fato que se distinguir os tipos de vulnerantes, mas discordamos da alegação de que a raciocínio deva se operar sobre o aspecto temporal, não somente por ausência de previsão legal, mas porque devemos buscar critérios objetivos (regras) para as justificativas jurídicas de seus atos, sejam eles do autor ou da vítima.

Portanto, justificar a vulnerabilidade como aquele que se prolongue até a manifestação da vontade pela representação, no caso do menor de 18 anos, e a temporária, cuja vulnerabilidade não alcança o momento em que a vítima possui discernimento para decidir pela movimentação do sistema de controle social penal por intermédio da representação, não nos parece o mecanismo mais seguro para justificar a escolha da vítima em evitar ou não o strepitus judicii, principalmente seus reflexos com relação à prova destas circunstâncias vulnerantes, acarretando efeitos colaterais na busca de elementos probatórios na investigação criminal, consequentemente na instrução.

Percebe-se, portanto, que há distinção, entre estar vulnerável (artigo 217-A, §1º do CP c/c artigo 225, parágrafo único do CP) e ser vulnerável (artigo 217-A, caput, CP), no entanto, a justificativa não seria pelo aspecto temporal, denominado de vulnerabilidade permanente (menor de 14, v.g) ou temporária (embriaguez, v.g).

Um dos aspectos considerados pelo legislador foi o biológico, ou seja, a mesma lógica utilizada para análise da inimputabilidade penal dos menores de 18 anos previstos nos artigos 27 do CP e 228 da Constituição Federal. Assim, em se tratando de vítima menor de 14 anos, e a tutela do desenvolvimento sexual a vulnerabilidade é biológica, tendo sido desconsiderado pelo legislador a capacidade de querer o ato sexual em sua vontade livre, em razão do artigo 217-A, caput do CP.

O outro critério foi o biopsicológico para o estupro de vulnerável por equiparação, previsto no artigo 217-A, §1º do CP, como ocorre no artigo 26 e artigo 28, parágrafo 1º, ambos do CP e 45, caput, da Lei 11.343/2006, na qual o legislador relaciona uma causa ou elemento provocador, e outro relacionado com o efeito, ou a consequência psíquica provocada pela causa (bebida, por exemplo), que no caso da vítima seria sua vontade em querer o ato sexual, considerando sua autonomia da vontade, denotando-se assim, uma “circunstância vulnerante biopsicológica”.

As distinções destas circunstâncias são imprescindíveis, porquanto refletem sobre a teoria geral da prova, ou seja, no objeto e elemento da prova, que serão distintos no estupro (artigo 213, caput e parágrafos do CP) e estupro de vulnerável por equiparação (artigo 217-A, §1º, CP). As circunstâncias ou situações de vulnerabilidade físicas e biopsicológicas, pela sua própria natureza precisam ser objeto da prova, ou seja, circunstância relevante e que precisa ser provado na investigação criminal e na instrução, o que não é necessário no caso da situação de vulnerabilidade biológica (menor de 14 anos).

Quanto à manifestação de vontade da vítima, haverá na circunstância vulnerante física ou biopsicológica uma regulamentação distinta, ou seja, o legislador adotou outra política criminal com relação à ação penal no artigo 225, caput e seu parágrafo único que se trata de uma matéria processual, retirando a manifestação da vontade da vítima ou de seu representante ao prever como ação penal pública incondicionada quando a vítima for “menor de 18 anos ou pessoa vulnerável”, ignorando, ou esquecendo, a elementar biopsicológica prevista no artigo 217-A, §1º, CP. Aqui reside a confusão do legislador entre o penal (bem jurídico tutelado) e o processo penal (ação e processo) numa mesma lei alteradora do texto, Lei 12.015/09.

Os conceitos de vulnerabilidade permanente e temporária ou de vulnerabilidade material e processual não se adequam com razão sistêmica ao problema entre o bem jurídico tutelado do artigo 217-A, caput (menor de 14 anos) e o artigo 213, CP, que abarca o maior de 14 e menor de 18, desde vulnerados fisicamente (com violência), na qual a ação penal seria pública condicionada à representação, que se confronta com o artigo 225, parágrafo único do CP, na qual dispensa, criando-se uma antinomia.

A melhor forma de se compreender o sistema inserido pelo legislador e os direitos fundamentais é tutelar o bem jurídico da dignidade sexual, cujas circunstâncias previstas no artigo 217-A, §1º, CP merecem maior reprimenda penal, razão porque possui uma pena maior que o artigo 213, caput do CP, no entanto, há que se interpretar com razão humana de atos a manifestações humanas, inclusive da vítima.

Diante, portanto, de uma circunstância ou situação de vulnerabilidade biospsicológica (elementar do artigo 217-A, §1º), o direito penal considerou violada a dignidade sexual da vítima em circunstância de algum elemento provocador (causa)  como enfermidade ou deficiência mental, ser maior de 14 e menor de 18, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência, vinculada ou relacionada a sua consciência e vontade a um fim lícito (ato libidinoso), consequentemente, com discernimento para a prática do ato.

A Lei 12.015/2009 não penalizou o ato libidinoso entre pessoas maiores de 14 e menores de 18 anos, sob pena de se criminalizar a vontade da vítima, punindo-se o seu parceiro, consequentemente, não interpretar desta forma, equivaleria a ignorar uma autonomia da vontade não proibida e aumentar a controle social penal por razões religiosas e morais, que são inerentes ao “ser” e não do “dever ser” da vítima, dos pais ou responsáveis, pois poderiam ter, a depender do caso concreto, orientações morais distintas, como no caso de adolescente de 17 anos e 6 meses com educação sexual o suficiente e discernimento para a prática do ato. E as pessoas com enfermidade mental (parcial, já que o legislador não distinguiu), quantos não estão adaptados e possuem discernimento para entender o ato, com autonomia e orientados à vida adulta por seus responsáveis? Verifica-se que o legislador confundiu as estações que digam respeito ao bem jurídico tutelado (penal) e sua instrumentalidade (ação e processo).

Assim, na ação penal no “estupro de vulnerável por equiparação será imperioso analisar a causa e a consciência dos atos queridos pela vítima livre na causa em respeito “à autonomia individual da vítima” (Nicolitt, 2016, página 292), que na visão deste autor, apesar de não abordar o tema neste aspecto, advoga a ação penal pública mediante representação, nos crimes de estupro com resultado lesão grave ou morte, o que reforça o entendimento dogmático a despeito das garantias fundamentais e dignidade da pessoa humana que digam respeito à autonomia daquela, sem que isto signifique um “retrocesso social” a despeito da ação penal pública mediante representação à luz da Lei 12.015/09 em relação à redação antiga diante da novatio legis, que, naquela, previa ação pública incondicionada (em algumas hipóteses), bem como, o autor, com o qual concordamos, é contrário a aplicação analógica da súmula 608 do STF, mesmo após a nova regulamentação dos crimes contra à dignidade sexual.

Em linhas gerais, sem esgotar o tema, buscamos uma alternativa na classificação da vulnerabilidade em física, biológica e biopsicológica como uma forma de harmonizar o sistema à luz da Constituição da República para distinguir aquilo que é objeto de prova no processo penal, do bem jurídico tutelado e o tipo de ação penal, respeitando-se a autonomia da vontade da vítima nos crimes de estupro de vulnerável por equiparação, o que nos força concluir que “o artigo 225, parágrafo único do CP somente pode ser interpretado a luz do critério biopsicológico”.

A idade, como elementar objetiva do tipo penal, ou seja, sua consideração isoladamente analisada, atende ao critério de vulnerabilidade biológica (artigo 217-A, caput, CP – menor de 14 anos) e a previsão de ação penal pública incondicionada somente possui sentido com relação a este crime, não se aplicando ao artigo 213, caput, e artigo 217, §1º do CP, que terão como característica ação penal pública condicionada a representação.

O tema é de extrema importância para o delegado de polícia, e consequentemente, ao exercício da sua função, pois a correta interpretação destes dispositivos penais e processuais penais, por intermédio da doutrina e jurisprudência, irá refletir na sua atuação diretamente, como a prisão em flagrante e a manifestação da vítima e seus familiares a despeito da responsabilização penal do conduzido até a presença da autoridade policial e lavratura ou não do auto de prisão em flagrante, além da decisão de se instaurar ou não o inquérito policial, a depender, conforme o caso, da representação da vítima ou de seus familiares.

Referências bibliográficas:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, vol. 4: parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
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DELMANTO, Celso. [et al] Código penal comentado. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
HUNGRIA, Nelson e LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao Código Penal. Vol. VIII. Arts. 197 a 249. Rio de Janeiro: Forense.
GILABERTE, Bruno. Crimes contra a dignidade sexual. Rio de janeiro: Freitas Bastos.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2011.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, vol. III, 10ª ed. Niterói, RJ: Impetus.
NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.

Autores

  • Brave

    é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

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