Opinião

Omissão da Lei de Falências permite que acionistas decidam por comitê

Autor

  • Jorge Lobo

    é advogado professor e procurador de Justiça aposentado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito da Empresa pela UFRJ e doutor e livre-docente em Direito Comercial pela Uerj.

12 de setembro de 2016, 9h26

Os acionistas de companhias em regime de recuperação judicial podem participar da discussão e elaboração do plano de reestruturação? Comercialistas brasileiros ainda não estudaram a matéria. Os tribunais de Justiça do país não foram instados a decidi-la, por enquanto, e a Lei 11.101/05 (LRFE) é omissa, e também são omissas as legislações da “família” romano-germânica (cf. El Fallimento nel Mondo, Padova, Tip. Leonelli, 1988, coord. Prof. Piero Pajardi).

Para preencher o “espaço jurídico vazio” da LRFE, é imperioso, parafraseando Gilles Deleuze, inovar, ousar, o que não se faz senão no embate, no confronto (Critique et Clinique, Les Éditions de Minuit, 1993, p. 11). Para suprir a lacuna técnica ou real do art. 53 da LRFE, é indispensável apelar para os processos, na terminologia de Carnelutti, de heterointegração e de autointegração.

A heterointegração “consiste na integração operada através do recurso a ordenamentos diversos…, a ordenamentos vigentes contemporâneos” (Norberto Bobbio, “Teoria do Ordenamento Jurídico”, edipro, 2016, p. 138).

O direito americano (U.S. Code), mais uma vez, e sua doutrina (Mark Steven Summers, Bankruptcy Explained, NY, John Wiley & Sons Ed., p. 989), sempre pragmática, oferecem-nos a solução para esse importantíssimo problema: a instalação do “comitê de acionistas”, que lhes permitirá participar, indiretamente, mas com eficácia, da discussão e formulação do “plan” (U.S. Code, Seção 1.121).

O Código de Falências dos EUA, no Capítulo 11, prevê a criação, além da do “comitê de credores”, do “comitê de acionistas” (Seção 1.102, (a) (1), para garantir uma “representação adequada” dos “detentores de capital próprio” na reorganização da empresa, entendendo-se por “representação adequada”, segundo as Cortes de Justiça, (1) o número de acionistas, (2) a complexidade do caso, (3) a solvência do devedor, (4) se os interesses dos acionistas já estão sendo defendidos no processo etc.

Na Seção 1.103, o U.S. Code elenca os “poderes e deveres” (powers and duties) do “comitê de acionistas”, dentre os quais se destacam: “participar da formulação do plano e aconselhar os representantes de cada comitê sobre as propostas contidas no plano (1103, (c), (3)”; pedir “informações sobre as atividades sociais” (1103, (c) (1) e “investigar atos, conduta, ativos, passivos e as condições financeiras do devedor, o funcionamento dos seus negócios e qualquer outra matéria relevante, ou para a preparação do plano” (1103, (c) (2).

Observe-se, por oportuno, que os opositores à ideia do “comitê de acionistas” sustentam que a sua existência só se justifica quando a empresa tem “probabilidade substancial de recuperação”, argumento que não encontra guarida na jurisprudência americana após o julgamento do caso Williams Communications Group em 2002.

O método de autointegração visa eliminar a deficiência da lei por meio dos princípios gerais do direito e da analogia (LICC, art. 4º). Os princípios gerais do direito são “normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, que regulam um comportamento não regulado” (Bobbio, Teoria cit., p. 148).

A Lei francesa 98, de 25.01.85, na qual, em grande parte, se inspirou a LRFE, e o Código Civil francês de 2003, que a incorporou, também silenciam sobre a atuação dos acionistas na preparação do “projet de plan de continuation”. Todavia, segundo Christine Lebel, não há “nenhum texto que vede essa possibilidade aos associados” (L’élaboration du plan de continuation de l’entreprise en redressement judiciaire”, Presses Universitaires D’Aix-Marseille, 2000, p. 263).

A eminente professora da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas de Nancy II valeu-se do que os juristas modernos chamam “princípio ou norma de liberdade”, perpetuado pelos jurisconsultos romanos no axioma “permittitur quod non prohibetur” (“tudo o que não é proibido, presume-se (juridicamente) permitido”), e do “princípio do terceiro excluído”, pois, ou há proibição, ou há absoluta liberdade (tertium non datur).  

Da interpretação do art. 53, conclui-se que os acionistas podem – e devem – tomar parte ativa, quiçá decisiva, ainda que indiretamente, no enfrentamento da crise da empresa, porquanto a LRFE não proíbe, nem expressa, nem implicitamente, que eles discutam e participem da elaboração do plano de reestruturação e reerguimento, e, portanto, no momento, no país, da discussão e elaboração do plano de dezenas de companhias de capital aberto de grande porte em recuperação judicial, com passivos bilionários e centenas de milhares de acionistas, denominados minoritários, mas que, em verdade, possuem juntos a maioria do capital social.

A analogia aplica normas que regem matérias semelhantes, para preencher o “espaço jurídico vazio”; in casu, as normas que comandam a instalação do conselho fiscal das anônimas (art. 161,§4º, (a) da LSA) e regem a eleição dos membros do conselho de administração, quando adotado o “processo do voto múltiplo” (art. 141, caput, da LSA).

Em resumo e em conclusão: a omissão do art. 53 da LRFE deve ser suprida com o recurso (a) ao Direito Comparado, que prevê a criação do “comitê de acionistas”, (b) ao princípio geral do direito, segundo o qual “tudo o que não é proibido, presume-se (juridicamente) permitido”, e (c) à analogia, aplicando-se, por inferência, as normas de constituição e funcionamento do conselho fiscal e de eleição dos membros do conselho de administração das companhias, quando adotado o “processo do voto múltiplo”.

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    é professor e procurador de Justiça aposentado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito da Empresa pela UFRJ e doutor e livre-docente em Direito Comercial pela Uerj.

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