Opinião

Iniciativa de leis sobre a Defensoria Pública é do defensor público-geral

Autor

  • Edilson Santana Gonçalves Filho

    é defensor público federal. Foi defensor do estado do Maranhão. Autor dos livros Defensoria Pública e a Tutela Coletiva de Direitos – Teoria e Prática A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais – sua vinculação às relações entre particulares e Dicionário de Ministério Público. Especialista em Direito Processual.

11 de setembro de 2016, 7h30

A leitura da atual redação do texto constitucional é passível de gerar confusão quando o leitor se depara com o disposto nos artigos 134, parágrafo 4º e 61, parágrafo 1º, “d” da Constituição Federal. É que tais dispositivos dispõem:

"Art. 61. § 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

II – disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

Art. 134. § 4º São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal".      

Como se observa, o final do artigo 134 da Constituição de 1988 determina a aplicabilidade, à Defensoria Pública, do disposto no artigo 93 e no inciso II do artigo 96, que tratam da iniciativa privativa do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e dos Tribunais de Justiça quanto às leis que versem sobre os temas que dispõem:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (…)

Art. 96. Compete privativamente:

II – ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:

a) a alteração do número de membros dos tribunais inferiores;

b) a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver;

c) a criação ou extinção dos tribunais inferiores;

d) a alteração da organização e da divisão judiciárias";

Realizando-se uma leitura conjunta é fácil concluir que, ao remeter aos artigos 93 e 96, II da Constituição Federal, o constituinte disciplinou a iniciativa de leis concernentes à Defensoria Pública, determinando a aplicação das mesmas regras que regulam o tema para a magistratura.

A expressão “no que couber”, constante na redação do artigo 134, parágrafo 4º, revela que o interprete[1]deve ler as disposições constantes nos artigos 93 e 96, II realizando as devidas adaptações à Defensoria Pública, bastando, para isso, substituir, por simetria, a referência ao órgão máximo do Poder Judiciário pelo órgão de maior estatura na Defensoria Pública. Dessa forma, onde consta Supremo Tribunal Federal, leia-se defensor público-geral.

Destarte, temos que o artigo 93 reserva ao órgão máximo da Defensoria Pública (o defensor público-geral) a iniciativa sobre o Estatuto da Defensoria Pública, hoje consubstanciado na Lei Complementar 80 de 1994. 

Do mesmo modo, o artigo 96, II estabelece competência privativa ao defensor público-geral para propor, ao respectivo Poder Legislativo, leis que tratem dos temas que lá constam, como a criação e a extinção de cargos, a remuneração de servidores, bem como a fixação do subsídio dos defensores públicos.

Mas, afinal, a iniciativa legislativa seria da Presidência da República (artigo 61) ou da Defensoria Pública (Artigos 93 e 96, II)? A resposta encontra-se na origem do parágrafo 4º do artigo 134, que faz remissão às regras concernentes à magistratura e que foi incluído no texto da Constituição pela Emenda Constitucional 80/2014. Surgem duas possibilidades: (1) a partir da EC a competência passou a ser concorrente entre a presidência da República e o defensor público-geral; (2) pelo critério cronológico, com o advento do mencionado parágrafo, restou derrogado tacitamente o artigo 61 da Constituição Federal.

Note-se que, no mínimo, seria forçoso reconhecer como concorrente o poder de iniciativa do defensor público-geral e do presidente da República (primeira opção), sob pena de esvaziamento do texto do parágrafo 4º do artigo 134, quando remete ao artigo 93 da Carta. Esta vem sendo a opção, inclusive, apontada pela doutrina para o caso do Ministério Público, já que, de forma similar ao que ocorre com a Defensoria, o texto constitucional prevê a iniciativa privativa do Presidente da República para leis que disponham sobre a organização do parquet (artigo 61, parágrafo 1º, II, “d”) e, paradoxalmente, a competência dos procuradores-gerais para a deflagração do processo legislativo nesse tema (artigo 128, parágrafo 5º). Considerando que os dois dispositivos foram trazidos no mesmo momento, já na redação original da Constituição Federal, não se mostra possível a aplicação do critério cronológico, motivo pelo qual se tem entendido pela competência concorrente no âmbito do Ministério Público[2].

Entendo, todavia, que a segunda opção é mais consentânea e harmônica ao texto e ao espírito da Constituição Federal. Inicialmente, em razão do já mencionado critério cronológico. Demais disso, uma interpretação teleológica revela a necessidade de promover a autonomia da instituição, essencial à função jurisdicional, mas que sofre diuturnamente com clara tendência dos governos de não priorizar a atuação institucional[3].

Dessa forma, a iniciativa legislativa para tratar de temas afetos à sua organização consubstancia requisito essencial à autonomia da Defensoria Pública, concedendo máxima efetividade ao direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita e à promoção dos direitos humanos (artigo 5º, LXXIV e 134 da Constituição), na linha da vontade do constituinte evidenciada pelas Emendas Constitucionais 45, 74 e 80.

Assim, a iniciativa de leis que disponham sobre organização Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização da Defensoria Pública dos estados, do Distrito Federal passou a ser privativa do defensor público-geral federal (consoante artigo 134, parágrafos 1º e 4º da Constituição). Conforme esclarece Daniel Sarmento:

“Muito embora o Defensor Público-Geral Federal não seja o chefe nacional da Defensoria Pública – cabendo-lhe apenas o comando da DPU –, a Constituição é clara ao aludir à existência de uma única lei complementar de âmbito nacional, que, simultaneamente, deve tratar da Defensoria Pública da União e estabelecer normas gerais para as defensorias dos Estados e do Distrito Federal. Discreparia a mais não poder do sistema constitucional atribuir aos defensores-gerais dos Estados o poder de iniciativa no âmbito do processo legislativo federal, que se desenvolve no Congresso Nacional. Em nenhum caso a Constituição Federal atribui a autoridades estaduais a prerrogativa de deflagrar o processo legislativo federal ordinário ou complementar”[4].

Simetricamente, as leis estaduais, nos respectivos estados, que regulem a organização específica (normas não gerais) da respectiva Defensoria Pública, são de iniciativa exclusiva do defensor público-geral estadual[5].

No que concerne aos temas constantes no artigo 96, II, a iniciativa privativa do chefe da Defensoria Pública é ainda mais patente[6]. Assim, o defensor público-geral federal dispõe de iniciativa privativa para projetos de leis que tratem sobre a alteração do número de membros da Defensoria Pública da União, a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos defensores públicos federais e dos servidores, possuindo os defensores-gerais dos estados a mesma iniciativa privativa, no plano do processo legislativo estadual.

Trata-se de exceção à regra do artigo 61, parágrafo 1º, II, “a” da Constituição, que atribui iniciativa privativa ao presidente da República para leis disponham sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, já que o artigo 96, II revele regra especial (aplicável ao Poder Judiciário e, após a Emenda Constitucional 80, à Defensoria Pública) em relação à regra geral contida no artigo 61, resolvendo-se a questão, também, pelo critério da especialidade, preservando-se a harmonia e a unidade do texto constitucional.

Por fim, observa-se que, para o Estatuto da Defensoria Pública, o artigo 93 exige Lei Complementar. Já no tocante aos temas do artigo 96, II não há tal exigência. Uma lei, portanto, que vise criar cargos para a Defensoria Pública ou que tenha como objeto o reajuste do subsídio dos membros da instituição, segue a forma ordinária (lei ordinária), devendo ser iniciada pelo defensor público-geral.

Essas leis devem, ainda, observar, no âmbito da Defensoria Pública, as demais disposições contidas no artigo 93. Assim, por exemplo, uma lei que altere o subsídio dos defensores públicos deverá fazê-lo de forma que a diferença entre a remuneração das categorias não seja superior a dez por cento ou inferior a cinco por cento (conforme artigo 93, V da Constituição), sob pena de inconstitucionalidade.

[1] Adoto aqui acepção mais abrangente da palavra, no sentido de abarcar todo leitor do texto constitucional. Afinal, não há leitura sem interpretação.

[2] Nesse sentido: SARMENTO, Daniel. Parecer: Dimensões Constitucionais da Defensoria Pública da União. p. 40 e seguintes. Disponível em: http://www.anadef.org.br/images/Parecer_ANADEF_CERTO.pdf. Acessado no dia 07/09/2016;  e Lenio Luiz Streck e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira. Art. 61. In: J. J. Gomes Canotilho; Gilmar Ferreira Mendes; Ingo Wolfgang Sarlet; Lenio Luiz Streck. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, Almedina, 2013. p. 1143.

[3] Nesse mesmo sentido, é a posição de Daniel Sarmento: "É verdade que o art. 61, § 1º, inciso II, “d”, da Constituição, estabeleceu que são de iniciativa privativa do Presidente da República os projetos de lei relativos à “organização (…) da Defensoria Pública da União”. Porém, tal dispositivo foi, nesta parte, tacitamente derrogado pela EC nº 80/2014, que acrescentou ao texto magno o art. 134, § 4º, determinando que se aplica à Defensoria, “no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição”. É que o art. 93, caput, da Constituição, atribuiu ao STF o poder de iniciativa de lei sobre o Estatuto da Magistratura. A aplicação deste preceito em relação à Defensoria implica o reconhecimento da iniciativa do Defensor Público-Geral Federal para leis que tratem da organização da DPU.

Com efeito, ao atribuir a iniciativa do Estatuto da Magistratura ao STF, o claro propósito do constituinte foi reforçar a sua autonomia. Do mesmo modo, o espírito da EC 80/2014, e a diretriz que se infere de todo o sistema constitucional, na sua atual configuração, é o robustecimento da autonomia da Defensoria Pública, para que ela possa desempenhar eficientemente a sua missão constitucional, em prol dos direitos humanos dos necessitados. Não há qualquer singularidade da magistratura diante da Defensoria nesta matéria, que justifique a não aplicação do artigo 93, caput, à última.

Entendo que essa iniciativa é privativa do defensor público-geral federal, e não concorrente com a do presidente da República, na mesma linha do que ocorre com o STF em relação ao Estatuto da Magistratura. (SARMENTO, Daniel. Parecer: Dimensões Constitucionais da Defensoria Pública da União. p. 38 e seguintes. Disponível em: http://www.anadef.org.br/images/Parecer_ANADEF_CERTO.pdf. Acessado no dia 07/09/2016).

[4] SARMENTO, Daniel. Parecer: Dimensões Constitucionais da Defensoria Pública da União. p. 41. Disponível em: http://www.anadef.org.br/images/Parecer_ANADEF_CERTO.pdf. Acessado no dia 07/09/2016

[5] Conforme decisão da Medica Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.217: “dever-se-ia observar o comando constitucional que estabelece ser iniciativa privativa do defensor público-geral do estado projetos de leis relativos a questões específicas, uma vez que tal situação objetiva assegurar as prerrogativas da autonomia e do autogoverno da Instituição. A ofensa à garantia da iniciativa do processo legislativo privativo denota evidente vício, que, por consequência lógica, é causa de inconstitucionalidade formal”.

[6] Enquanto ainda se encontra divergência na doutrina em relação ao alcance da aplicação do artigo 93 à Defensoria Pública, especialmente no que concerne à competência do defensor público-geral federal para iniciar processo legislativo que regule normas gerais para as Defensorias Públicas dos estados, no que se refere ao artigo 96, II, da Constituição a questão é mais tranquila. Nesse sentido, anota Caio Paiva: “quanto ao artigo 96, II, da CF, parece não pairar dúvidas sobre a sua aplicação”. (PAIVA, Caio. EC 80/2014 dá novo perfil constitucional à Defensoria Pública. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-out-06/tribuna-defensoria-ec-802014-perfil-constitucional-defensoria-publica. Acessado em 07.09.2016).

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    é defensor público federal e especialista em Direito Processual, além de coautor do livro "Dicionário de Ministério Público" e autor de "A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais — Sua Vinculação às Relações entre Particulares".

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