Diário de Classe

Aventura de Robinson Crusoé evidencia importância da linguagem da igualdade

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10 de setembro de 2016, 8h01

Spacca
Edgar Bodenheimer, ao evocar “As aventuras de Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe, explica que Crusoé, vítima de naufrágio, esteve sozinho numa ilha deserta, durante 25 anos, até que vê um nativo fugindo de canibais e consegue evitar sua morte. Agradecido, o nativo, que será nomeado Sexta-Feira, reverencia Crusoé e, colocando o pé do inglês sobre seu crânio, declara-se seu escravo perpétuo, condição que o tornava objeto, ou seja, sem qualquer dignidade.

A vida na ilha continua… até que Crusoé salva mais uma vida, mas agora a do Capitão de um barco cuja tripulação havia se amotinado e que o havia arremessado ao mar, na direção à ilha. Os dois acordam que Crusoé iria ajudar o Capitão, sob duas condições: 1) que o capitão obedeça a Crusoé enquanto estiver na ilha e; 2) que, depois de recuperar o barco, o leve até a Inglaterra sem cobrar nada. Aceitas as cláusulas do contrato, as partes o cumprem.

O que importa destacar nessa metáfora literária é que, enquanto no caso de Sexta-Feira a relação é de subordinação irrestrita, isto é, sem respeito à sua condição de humano, no caso do Capitão, há uma relação de obrigações recíprocas de quem se reconhece no mesmo patamar. Enfim, Sexta-feira era uma “coisa/objeto” e somente o Capitão é considerado um sujeito!

Esse exemplo demostra como as relações humanas podem se estabelecer entre sujeitos que se respeitam em condições horizontais — ou seja, de iguais — ou podem se estabelecer com a premissa de que há sujeitos que se acham ou que estão em patamar superior, seja ele econômico, étnico, social, ou de outra natureza. Tais pré-noções são absolutamente importantes no contexto do Direito e Processo Penal contemporâneos. Enfim, as relações de igualdade, de “cidadania modulada”, a tensão entre liberdade e igualdade, no campo do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, precisam de “respostas corretas”, articuladas em face da Constituição da República.

Para compreender, todavia, o modo de pensar será preciso articular o sentido democrático à noção de igualdade, cujo efeito poderá ser devastador, caso acolhidas distinções ad hoc, como amigo/inimigo, substituição militarizada da noção de adversário (Chantal Mouffe), com o qual se pode dialogar ao invés de (buscar) aniquilar. É um jogo político que se esgueira por detrás da concepção de democracia e que repercute na maneira como se ensina Direito e Processo Penal.

Sem que nos percamos em “natureza jurídica”, “interpretações gramaticais, sistemáticas”, nem qualquer outra ilusão metafísica, mortas pela superação do paradigma sujeito-objeto, bem apontadas por Lenio Streck, mas que ainda vivem no “senso comum teórico” (Warat), precisamos construir novas maneiras de transmitir o Direito e, partindo da aplicação da teoria dos jogos ao Direito, perceber de que modo se relacionam os adversários, dentro da metáfora de “Robinson Crusoé”.

A interpretação é um ato de compreensão, e a perspectiva geométrica do Direito é entulho ideológico que polui (ainda) a praia do jurídico. Em tempos de “analfabetismo funcional dos atores jurídicos”, cada vez mais é preciso levar a formação a sério, desde um ponto de vista hermenêutico.

Perceba-se que o encadeamento de sentido depende, na matriz — no ponto de amarração — de um desvelar hermenêutico, do qual só podemos escapar pela fuga metafísica. Sem ele, a partida hermenêutica estará viciada porque o campo em que será disputado o embate é minado. Pode-se até realizar a partida e durante ela se fazer um gol, mas, quando menos se espera, a ordem é recomposta… Por isso parece fundamental que se imponha, de alguma forma, “o” campo em que a partida será disputada, isto é, da hermenêutica filosófica ou da filosofia hermenêutica. Somente nesse campo é possível promover condições para uma “resposta certa constitucionalmente adequada” (Lenio Streck), em face de sujeitos que se reconheçam em igualdade de proteção constitucional e que não se aceite ninguém na posição de Sexta-feira! Aí reside a dignidade.

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