Tratamento desumano

Promotor gaúcho que ameaçou e ofendeu vítima de estupro será investigado

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9 de setembro de 2016, 19h36

"Se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na Fase [instituição para menores infratores], pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá." A ameaça foi feita por um promotor de Justiça, durante uma audiência, e dirigida a uma menina que havia sido estuprada pelo pai. Agora, a conduta dele e da juíza que presidia a audiência deverá ser investigada.

A 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul expediu ofício ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e à Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ), para apurar a humilhação da menor de idade. A decisão do colegiado foi tomada durante o julgamento de Apelação do pai da adolescente, que teve a pena por estupro reduzida de 27 para 17 anos.

Os desembargadores entenderam que a tanto a atitude do promotor quanto a omissão da juíza afrontaram a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) que, em seu artigo 18,  diz que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Mudança de versões
A ameaça foi feita durante audiência de instrução que apurou a responsabilidade do pai, denunciado pelo Ministério Público por ter abusado da filha e de tê-la engravidado — o que veio a ser comprovado,  por exame de DNA. Ao relatar às autoridades os detalhes da violência sexual, a menor conseguiu autorização judicial para fazer um aborto. Depois disso, ouvida novamente em juízo, ela mudou sua versão dos fatos e disse que não ficou grávida do pai, mas de um ‘‘namorado’’.

O recuo da vítima levou o promotor a adotar a postura condenada pelos desembargadores, acusando a menina de tentar proteger o pai.  Numa das intervenções, trava-se o seguinte diálogo:

"MP: A., tu tá mentindo agora ou tava mentindo antes
Vitima: … mentindo antes, não agora
MP: Tá, assim ó, tu pegou e tu fez, tu já deu um depoimento antes (…), tu fez eu e a juíza autorizar um aborto e agora tu te arrependeu assim? Tu pode… Pra abrir as pernas e dá o rabo pra um cara tu tem maturidade, tu é autossuficiente, e pra assumir uma criança tu não tem? Sabe que tu é uma pessoa de muita sorte, A., porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na Fase [instituição para menores infratores], pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá. Porque tu é criminosa… tu é."

Em outro trecho da gravação, sem conseguir ‘‘arrancar’’ da menor o nome do suposto ‘‘namorado’’, o promotor perde definitivamente a paciência e a ameaça de forma explícita. Segue, ipsis literis:

"MP: Tu não tem querer, tu fez a gente matar uma pessoa. Tu vai dizer o nome desse cara. Quem é esse cara?
Vítima: Eu não quero responder.
MP: Tu vai responder em outro processo. Eu vou me esforçar o máximo pra te por na cadeia A., se não for pronunciar o nome desse piá. (…). Vamo A., além de matar uma criança, tu é mentirosa? Que papelão hein? Que papelão… só o que falta é aquele exame dar positivo, só o que falta! Agora assim ó, vou me esforçar pra te ferrar, pode ter certeza disso, eu não sou teu amigo.
"

Conflito de sentimentos
A relatora da Apelação, desembargadora Jucelana Pereira dos Santos, interpretou o recuo da jovem como uma tentativa de proteger o pai, em função dos laços familiares. Afinal, se mantivesse a versão de estupro, na prática, estaria destruindo uma família. A seu ver, esta ambivalência sentimental da adolescente é compreensível, já que a vítima fica dividida entre o amor que sente pelo pai e a raiva pela violência física ou emocional exercida por ele. ‘‘Ademais, não é raro, em delitos desta espécie, os próprios parentes atribuírem à vítima a responsabilidade pela desestruturação da família, hipótese em que a criança/adolescente procura se retratar das acusações, visando a restabelecer a unidade familiar antecedente à descoberta dos abusos’’, escreveu no acórdão.

Conforme a relatora, a vítima foi induzida a se retratar para acabar com o ‘‘infortúnio’’ da família, mas deu tudo errado, pois foi tratada como uma criminosa na audiência. Deduziu que o promotor sentiu-se ludibriado por ter opinado favoravelmente ao aborto e, depois, a menor não ver a denúncia confirmada. ‘‘O pior de tudo isso é que contou com a anuência da magistrada, a qual permitiu que ele fosse arrogante, grosseiro e ofensivo com uma adolescente. Um verdadeiro absurdo que necessita providências!’’.

Para o desembargador José Antônio Daltoé Cezar, o promotor não leu atentamente o processo, confunde os institutos de Direito Penal e desconsidera toda a normativa internacional e nacional que disciplina a proteção de crianças e adolescentes. ‘‘Quem conhece o mínimo necessário sobre a dinâmica do abuso sexual, sabe que situações como aquelas apresentadas neste processo, quando a vítima, por razões das mais diversas, muda versão para inocentar o abusador, são comuns e até mesmo previsíveis, não tendo nada a ver com seu caráter, coragem ou mesmo sinceridade’’, escreveu no voto.

Providências do MP
Em entrevista concedida à Rádio MP, no início da tarde, o subprocurador-geral institucional do MP-RS, procurador Fabiano Dallazen, afirmou que a Corregedoria já instaurou procedimento para apuração rigorosa do fato. Se condenado, o agente pode pegar pena de advertência, censura,  suspensão — com prejuízo de seus vencimentos salariais — ou até a perda do cargo. ‘‘Esta penalidade é o Conselho do Ministério Público que irá definir. O que posso assegurar é que a instituição não compactua com esta conduta’’, complementou.

Dalazzen salientou que será feita uma apuração de todos os atores que se encontravam naquele ato processual, já que estava presente um membro do Poder Judiciário que tinha o dever legal de conduzir a audiência e de evitar excessos. Ou seja, também esta omissão será objeto da apuração.

Por fim, ele fez questão de deixar claro o ‘‘pano de fundo’’ que cerca o fato, já que o MP se se vê às voltas com milhares de audiências, todos meses, envolvendo violência familiar. Em muito destes conflitos, disse, a vítima, constrangida retorna à audiência e se pronuncia favoravelmente ao seu agressor, o que acaba gerando impunidade. ‘‘E no presente caso, geraria, não fosse a conduta do promotor de pedir a prisão do acusado, de pedir o exame de DNA. Mas isso gera uma indignação. Evidentemente, que não se pode extravasar esta indignação contra a própria vítima. Por isso, ele vai ser responsabilizado’’, encerrou.

Clique aqui para ler o acórdão modificado.

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