Incoerência de argumentos

Prisão antes do trânsito em julgado é contraditória com decisões do Supremo

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8 de setembro de 2016, 8h38

Na sexta-feira (9/9) vai completar um ano que o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o sistema carcerário brasileiro vive um “estado inconstitucional de coisas”. Naquela ocasião, os ministros consideraram que as constantes violações de direitos humanos dentro dos presídios, além da superlotação e da má administração do cumprimento de penas, relegava os presos e presas a situações inaceitáveis e inconstitucionais que não poderiam ser discutidas pontualmente.

Por unanimidade, o tribunal entendeu que o Executivo, em todas as esferas, deve tomar medidas para tentar fazer com que a pena de prisão cumpra seu papel constitucional de ressocialização. Era a já célebre Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347. Seguiu-se o voto do relator, ministro Marco Aurélio, para quem “o Supremo tem o dever de tirar os demais poderes da inércia”.

Quatro meses antes, em junho de 2015, o Ministério da Justiça publicou seu relatório anual sobre a população carcerária brasileira. Em 2014, o Brasil tinha atingido a marca de 600 mil presos para pouco mais de 200 mil vagas. Ou seja: o sistema carcerário brasileiro funciona com 161% de sua capacidade. Isso num cenário em que o número de encarcerados aumentou sete vezes em 25 anos, enquanto a população do país cresceu 40%.

O relatório do MJ ainda registrou que o Brasil alcançou também a marca de quarta maior população emprisionada do mundo, atrás de China, Estados Unidos e Rússia, nessa ordem. A diferença é que, segundo o Departamento de Políticas Penitenciárias (Depen), órgão do MJ responsável pelo levantamento, o Brasil era o único dos quatro países que jamais adotou nenhuma medida de desencarceramento. "Estamos enxugando gelo", desabafou o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.

Por isso o resultado do julgamento do Habeas Corpus 126.292, julgado pelo Plenário do Supremo no dia 17 de fevereiro deste ano, chamou atenção do presidente da corte, o ministro Ricardo Lewandowski. Naquele dia, o STF decidiu, por seis votos a cinco, que a pena de prisão pode ser executada depois da decisão de segundo grau, independentemente de haver recursos pendentes de apreciação. Embora a Constituição diga literalmente no que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Ao perceber o resultado que se desenhava, Lewandowski pediu a palavra e apontou a contradição: “Queria manifestar a minha perplexidade diante desta guinada da Corte com relação a esta decisão paradigmática. Minha perplexidade diante do fato de ela ser tomada logo depois de nós termos assentado, na ADPF 347 e no RE 592.581, que o sistema penitenciário brasileiro está absolutamente falido”, disse. “Então, agora, nós vamos facilitar a entrada de pessoas neste verdadeiro inferno de Dante que é o nosso sistema prisional?”

O ministro Luiz Fux prontamente respondeu que, embora o número de presos provisórios preocupe, “nas turmas” havia uma preocupação com o fato de que muitos deles eram condenados em segundo grau, aguardando a confirmação da condenação pelos tribunais superiores. “Então, o que vai ocorrer, diante dessa modificação da jurisprudência do Supremo", argumentou Fux, "vai ser a liberação de quem está injustamente preso, provisoriamente ou preventivamente, e o recolhimento daqueles que foram condenados em segundo grau; sai um, entra outro”.

E Lewandowski traduziu: “Nós vamos trocar seis por meia dúzia, nós vamos trocar duzentos e quarenta mil presos provisórios por duzentos e quarenta mil presos condenados em segundo grau”.

Perplexidade
No dia 1º de setembro, o Plenário do Supremo começou a julgar duas ações declaratórias de constitucionalidade sobre o tema, uma de autoria do Partido Ecológico Nacional (PEN) e outra, do Conselho Federal da OAB. Elas pedem que o tribunal reconheça a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que só autoriza a prisão depois do trânsito em julgado da condenação, tratando qualquer outra forma de encarceramento como medida cautelar processual.

O julgamento foi suspenso logo depois do voto do relator, o ministro Marco Aurélio. Em pronunciamento duro, o vice-decano da corte disse que seus colegas, ao autorizar a prisão em hipótese que a Constituição não prevê, editou uma emenda constitucional ilegítima. “O abandono do sentido unívoco do texto constitucional gera perplexidades", criticou Marco Aurélio.

Em sua sustentação oral na ADC 43, de autoria do PEN, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, repetiu o argumento de Lewandowski. Segundo ele, a decisão da corte sobre o estado de coisas inconstitucional dos presídios é incoerente com a execução da pena antes do trânsito em julgado. “Milhares de pessoas estarão sendo jogadas nesse sistema penitenciário que foi declarado inconstitucional”, argumentou.

Kakay também criticou a sede de punição da sociedade, e disse que ela pode afetar o Estado Democrático de Direito. “Que país queremos? Queremos fazer esse combate à corrupção com respeito às garantias e aos direitos individuais, tão duramente esculpidos na Constituição através de anos de evolução da sociedade, ou queremos fazer esquecendo tudo e passando por cima dos direitos e garantias individuais? No primeiro caso, sairemos um país melhor e mais justo. No segundo, um país obscurantista."

Mas se fosse mudar a regra de que só pode ser preso após o trânsito em julgado da condenação, que o fizessem para autorizar tal medida depois de uma confirmação do Superior Tribunal de Justiça, sugeriu Kakay.

É que a argumentação do Supremo, em fevereiro, foi a de que depois do segundo grau se esgotam as possibilidades de discussão de materialidade, autoria e provas. Aos tribunais superiores, cabem discussões apenas de direito. Por isso, as ações levadas ao Supremo tratam de uma tese intermediária, de que se execute a pena pelo menos depois de uma discussão a respeito de garantias processuais e direitos individuais.

Para o criminalista Luiz Flávio Borges D'Urso, ex-presidente da OAB de São Paulo, nesta quinta o Supremo terá "a oportunidade de evitar um retrocesso e um desastre humanitário".

"Exatamente nos momentos de crise é que mais precisamos da nossa Constituição Federal, a garantir nosso sistema e nossas instituições, sem se admitir flexibilizações de seus conceitos duramente conquistados", diz D'Urso. "Negar o princípio da presunção de inocência é abrir a porta para o erro judiciário, é mutilar nossa Constituição Federal e patrocinar injustiças, no palco desse grande desastre humanitário."

O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini ressalta que a presunção de inocência é a opção feita pelo legislador constituinte e pelo legislador ordinário. Sendo que tanto a Constituição quanto o Código de Processo Penal vedam a prisão antes do trânsito em julgado. Assim, em seu entendimento, por mais zeloso e bem intencionado que seja o poder Judiciário, suas decisões não podem prescindir do texto legal. "A legalidade é o pilar que sustenta o estado de direito, e o protege das instabilidades da opinião pública ou dos ventos políticos. Se a lei tem problemas, mude-se a lei, pelo legislativo eleito. Invalidar preceitos legais por decisão judicial quando não existe inconstitucionalidade evidente abala a segurança jurídica".

Caminho próprio
E não é porque outros países admitem a prisão antes do trânsito em julgado ou porque algumas estatísticas mostram que poucas decisões são revertidas nas últimas instâncias que o Brasil deve seguir esse caminho, declara o criminalista Andrei Zenkner Schmidt.

"Tudo isso é irrelevante. Pouco importa que as constituições de todos os países do mundo permitam a execução da pena antes do trânsito em julgado se a nossa Constituição não comporta tal solução. Só um constituinte originário pode mudar isso", afirma o advogado.

"Qualquer outro argumento, qualquer estatística em sentido contrário, não passará de retórica que, subliminarmente, pretende camuflar um inconformismo com o texto constitucional vigente (e com a norma que o espelha, o artigo 283 do CPP) em uma enganosa 'interpretação conforme'. Não consigo compreender como o STF possa vedar a execução provisória desde que a Carta de 1988 tenha sido editada e, agora, passados quase 30 anos de sua promulgação, possa-se dizer exatamente o contrário", analisa.

Para Antonio Corrêa Meyer, fundador do escritório Machado, Meyer, Sencaz e Opice Advogados, a sociedade não deseja a execução antecipada da pena, e sim que os processos sejam resolvidos com mais rapidez.

“O guardião da nossa Lei Maior não pode e não deve alterar a sua redação, especialmente quando ela é muito clara. Somos todos inocentes até condenação final e irrecorrível. Isso é o que o legislador constituinte quis estabelecer e deixou claro no texto constitucional. Então por que mudar? Para dar uma resposta ao sentimento de impunidade? Essa não é uma boa razão, pois esse sentimento não decorre da demora no encarceramento dos culpados, mas sim na demora do julgamento final deles. O Judiciário tem que ser mais expedito. Além disso, a prisão antecipada poderá causar graves e irreparáveis injustiças na hipótese da absolvição final do réu.”

Direção errada
Esses danos serão ainda mais sentidos em uma sociedade desigual como a brasileira, avalia a advogada e psicanalista Giselle Groeninga. A seu ver, a confirmação dessa guinada jurisprudencial do STF iria conduzir o Brasil para uma direção totalitária, afetando a segurança jurídica.

“Os meios – as distorções processuais e recursos meramente protelatórios – não podem justificar perverter o fim – o devido processo legal", analisa. Segundo ela, o sistema tem "distorções" que, num país desigual leva à criação de "castas de acesso à Justiça".

No entanto, continua, "ao Poder Judiciário caberia proteger aqueles processualmente vulneráveis, os que estão sofrendo um processo criminal, seja qual for seu lugar na Sociedade, da projeção da angústia social. Esta é fruto do medo, da insegurança e da impotência. Uma das fontes da ansiada segurança jurídica está no exemplo em transcender a angústia e os impulsos, e não em lhes fazer eco. E cabe, sobretudo aos ministros, sustentar a função não só de modelos exemplares de conduta mas de capacidade mental em conter a angústia e em transcender a satisfação mais célere de impulsos de vingança e punição. Em relação a estes é salutar uma Justiça que tarde, mas não falhe”.

Nessa mesma linha, o advogado Carlos Miguel Aidar destaca que a presunção de inocência é um “princípio basilar para o Estado Democrático de Direito”, e mudar esse entendimento é “compartilhar com o modelo autoritário banido pelo povo brasileiro há anos”. E recomenda: “O STF deveria cuidar de julgar matéria constitucional, e não querer legislar e governar por via transversa”.

Já o advogado Ernesto Tzirulnik manifesta incredulidade com o fato de que, “a esta altura da história, o Judiciário brasileiro, de tantas tradições, resolva destratar consumidores e inocentes através de jurisprudências reacionárias. De onde vêm os juízes que põem a pique as conquistas do Estado de Direito?”

O que está em jogo nesta quinta é a definição de que tipo de tribunal o STF quer ser, analisa a criminalista e diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) Daniella Meggiolaro. “Hoje o Supremo tem a possibilidade de se definir como uma Corte guardiã da Constituição ou como um órgão que faz valer as convicções político-criminais da maioria como mais importantes do que o texto expresso da Lei Maior brasileira e no código de processo penal.”

Mesmo com as previsões sombrias de seus colegas, Daniella tem fé que o STF irá reverter o posicionamento adotado em fevereiro. Ela aposta que os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, por serem garantistas, perceberão os efeitos que a execução antecipada da pena traria ao sistema prisional e ao Estado Democrático de Direito e mudarão seus votos do início de 2016.

*Texto alterado às 10h16 do dia 8/9 para acréscimos.

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