Olhar Econômico

O direito das pessoas jurídicas novamente sob o influxo da Guerra

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

8 de setembro de 2016, 10h54

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]No século XX, de 1939 a 1945, pela segunda vez, uma Guerra Mundial influiu nas regras sobre pessoa jurídica[1].

A legislação bélica francesa vetou todas as relações diretas ou indiretas, ou por meio de terceiras pessoas, com os inimigos. A definição de inimigo englobava as sociedades e qualquer de seus estabelecimentos que possuíssem sede em território inimigo, que tivessem sido constituídos consoante leis de Estados inimigos ou que dependessem de pessoas físicas ou jurídicas inimigas. Previu ademais a feitura de uma lista oficial de inimigos, a nulidade de contratos que contrariassem suas disposições, o confisco e o sequestro de bens, direitos e interesses inimigos (Decreto de 1/9/1939).

A jurisprudência relativa ao sequestro deu maior relevo à dependência para com o inimigo do que meramente possuir nacionalidade, em princípio inimiga:

1. Sequestro de bens de sociedade anônima, fundada na predominância de interesses inimigos no controle e no capital da mesma, foi levantado em virtude de o proprietário da quase totalidade das ações, de nacionalidade alemã, morar em país neutro e não estar sob a dependência de pessoas físicas e jurídicas alemãs (c. Parfums Tosca – 1939).

2. Requerimento para que o sequestro se limitasse aos interesses alemães existentes na sociedade, não foi aceito, em razão da dependência direta que a sociedade, inobstante francesa, demonstrava relativamente ao inimigo (c. Sociedade Somatex – 1939).

3. Sequestro mantido somente com referência às cotas de um dos sócios, pois embora dois outros possuíssem nacionalidade alemã, eram residentes na França e leais ao país de residência, além de a sociedade não aparentar dependência de firma inimiga (c. Établissement le Zénith – 1940).

4. Sequestro levantado relativamente a sociedade com sede na França, pois embora seus sócios ostentassem nacionalidade alemã, não possuíam qualquer dependência relativamente a súdito inimigo (c. Hermann Spielmann – 1940).

A jurisprudência sobre o decreto que possibilitava a redução de aluguéis a sociedades francesas animou a discussão sobre as premissas de tal nacionalidade. Elementos como sabor de controle foram levados em consideração: nacionalidade e domicílio do sócio majoritário, nacionalidade do gerente (c.. Soc. X c. X – 1941, Tribunal Civil do Sena; Soc. Universal Film -0 1941; e Soc. Anonyme Feldman – 1944); Em um caso, deferiu-se o benefício do decreto, apesar da nacionalidade dos associados, tendo o relator ressaltado a incoerência de se manter a tendência jurisprudencial da Primeira Guerra, na ausência de comando legislativo para tanto (c. X c. Y – 1941).

Há uma espécie jurisprudencial em que absolutamente não se levou em consideração o estado de guerra: sociedade em nome coletivo, constituída na França, conforme a lei francesa, com sede nesse país e aí realizando todos os atos de sua vida comercial, foi tida como francesa, tendo sido considerada despicienda a nacionalidade de seus membros (Établissements Villa – 1935).

Para a legislação bélica italiana, uma sociedade seria inimiga não somente quando tivesse nacionalidade inimiga, mas também quando demonstrasse preponderantes interesses de súditos inimigos (Decreto 1.415/1938). Eram medidas possíveis o controle, o sequestro e a liquidação de estabelecimentos industriais e comerciais (Decreto 756/1940).

A jurisprudência italiana bem exemplifica os aspectos de fato levados em conta para a determinação da nacionalidade de uma sociedade em tempos bélicos: presença de estrangeiros no conselho de administração e relacionamento estreito com sociedades estrangeiras (c. Brevetti Fichet – 1040); grupo acionário minoritário estrangeiro que fosse influente na sociedade (C. Paolini – 1942); nacionalidade de todos ou alguns administradores da sociedade, atividade realmente desenvolvida, fonte de financiamento, mercados de produção e venda (c.  Soc. Italiana di Fonotipia – 1945).

A legislação inglesa exarada a propósito da Segunda Guerra definia como hostil tanto a sociedade controlada por pessoa tida como inimiga, como a constituída sob as leis de Estado inimigo (Trading with the Enemy Act, 1939).

O papel do domicílio na caracterização inimiga da sociedade é explicitada na jurisprudência:

1. Uma companhia é residente onde possui seu domicílio comercial. Portanto reside a mesma em Rotterdam, que, consoante a statute law, é território inimigo. Aplicando-se a commom law, chega-se a idêntica conclusão, pois o caráter inimigo é objetivo, baseando-se na relação do inimigo com o território onde se domicilia a companhia e não em seu sentimento patriótico ou nacionalidade (c. Sovfracht – 1942).

2. Companhia belga, com centro de negócios em Antuérpia, que transferiu em razão da guerra, seu domicílio legal e a direção de seus negócios para os Estados Unidos da América, não adquiriu caráter inimigo (c. Owners of the Motor Vessel  Lubrafol – 1943).

3. Companhia incorporada conforme as leis do Reino Unido e aí registrada possui domicílio e nacionalidade ingleses e não os perde pelo fato de estar sob controle inimigo e, em consequência, ser caracterizada como hostil. A aquisição de tal característica não a exonera do cumprimento da lei inglesal (c. Kuenigl – 1945).

Mesmo sendo o Trading with the Enemy Act, 1917, dos Estados Unidos da América, uma legislação permanente, diplomas foram editados durante a Segunda Guerra estabelecendo o congelamento e o bloqueio de bens estrangeiros, bem como a publicação de listas negras. Enquanto para a legislação de 1017, o status inimigo baseava-se na residência em território inimigo ou ocupado por forças inimigas, o First Powers Act, 1941, emendando as seções 5 e 6, trouxe à baila a nacionalidade. A partir daí, pessoas que estivessem em território inimigo ou ocupado pelo inimigo seriam tidas como inimigas, se fossem cidadãs inimigas, se fossem controladas ou agissem em favor dos mesmos ou se o interesse nacional assim o considerasse.

Persistiu a jurisprudência norte-americana a definir o caráter inimigo não pela nacionalidade dos acionistas, mas sim pela nacionalidade e residência da corporação (c. Toa Kigyo e Drewry – 1942).

O respeito pela forma corporativa, expresso no caso Behn Meyer, deixou de ser levado em conta pelos tribunais a partir de e devido a emenda efetuada na seção 5, letra b, do Trading with the Enemy Act (c. Clark – 1947 e Uebersee – 1952).

As soluções das disputas originárias pela Segunda Guerra ficaram a cargo da Comissão de Conciliação ou dos Embaixadores dos Quatro Grandes, acreditados em Roma.

O critério do controle nos tratados de paz com os satélites do Eixo é menos visível que nos tratados que puseram fim à Primeira Guerra. Aparece implicitamente nas cláusulas sobre retenção e liquidação de propriedade inimiga pelas potências aliadas. A doutrina, entretanto, acredita que o critério do controle continua sendo aceito, embora indiretamente, ao lado do critério da constituição erigido como principal (Drost e Ginther)

Conforme a lição de Ginther, o critério do controle teve sua aplicação diminuída após a Segunda Guerra, se comparada com a Primeira. A prática pós-1945 demonstrou que esse critério é mais apto a identificar bens inimigos que corporações inimigas, ou seja, não é idôneo para determinar nacionalidade. Para tal fim, a prática aponta para o critério da constituição e para o duplo teste da constituição e da sede social, que resguardam a individualidade das companhias.

As medidas legislativas em razão da Segunda Guerra foram variadas:

1. Proibição de se discutir judicialmente créditos e contratos entre súditos de países beligerantes, não residentes no país (Dec.-Lei  3.191/1041);

2. Operações cujos intervenientes fossem pessoas jurídicas de Estados que estivessem em beligerância passaram a depender da prévia licença do Banco do Brasil (Dec.-Lei 3.911/1941);

3. Bens e direitos de nacionais inimigos — inclusive pessoas jurídicas — passaram a responder por prejuízos resultantes de atos de agressão, depósitos bancários e obrigações de natureza patrimonial, cujos titulares fossem nacionais de países inimigos, tornaram-se garantia do pagamento das indenizações acima; proibiu-se a alienação e oneração de bens pertencentes a nacionais inimigos; administração pelo Estado de tais bens, em determinadas circunstâncias (Dec.-Lei 4.166/1942);

4. Firmas individuais e sociedades comerciais constituídas por pessoas de nacionalidade inimiga ou que possuíssem sócios ou diretores com tal qualidade deviam fornecer uma série de informações (Dec.-lei 4.717/1942);

5. Criou-se a Comissão de Defesa Econômica, com a atribuição de fiscalizar, administrar, liquidar ou desapropriar bens e direitos inimigos, bem como vender tais bens e direitos (Dec.-Lei 4.807/1942).

Em suma, comparando-se os diversos sistemas jurídicos apresentados, observa-se o seguinte:

1. Na definição de inimigo aparece bem nítida a utilização do critério do controle. Além da constituição consoante leis inimigas ou da sede em território inimigo ou ocupado pelo inimigo, voga a dependência de pessoas físicas ou jurídicas inimigas, a preponderância de interesses de súditos inimigos e a ação em favor do inimigo. O grau de abrangência chegou ao ponto de bastar a inclusão na lista oficial de inimigos para que uma sociedade fosse tida como hostil. Até mesmo os Estados Unidos da América, tanto por sua lei como pela jurisprudência deixaram a posição contrária ao levantamento do véu social.

2. Com referência aos tratados de paz, o critério do controle achava-se implícito nas cláusulas sobre retenção e liquidação de propriedades inimigas e restou como critério secundário, após o da constituição. O critério do controle foi tido como o mais apto para identificar bens inimigos do que corporações inimigas. Para determinar a nacionalidade e resguardar a individualidade das sociedades foi considerado preciso o duplo teste da constituição e da sede social.

3. As medidas adotadas com relação a estabelecimentos, bens, direitos e interesses inimigos foram: nulidade de contratos, proibição de discussão judicial, além de administração, bloqueio, liquidação, desapropriação, confisco e venda de estabelecimentos, bens direitos e interesses.

4. Máxime na França e na Itália, a jurisprudência emprestou maior relevo à dependência em relação ao inimigo do que a mera detenção de nacionalidade inimiga. Entretanto, o aspecto jurisprudencial mais relevante foi nos Estados Unidos da América ter-se tornado possível a verificação da subjacente estrutura corporativa[2].


[1] Ver antecedentes, em Rodas, João Grandino, A evolução do direito das pessoas jurídicas no entre guerras; A guerra influi no direito das pessoas jurídicas; Lei, doutrina e jurisprudência sobre pessoas jurídicas influenciam-se na prática; Revista Eletrônica ConJur, respectivamente em: 11/8/2016; 28/7/2016; e 14/7/2016.

[2] Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 231/267.

Autores

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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