Opinião

A presunção de inocência como direito fundamental

Autor

  • Gustavo Ferreira Santos

    é advogado professor de Direito Constitucional e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco membro do Grupo de Pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC) e do Instituto Publius e pesquisador PQ 2-CNPq.

8 de setembro de 2016, 6h33

Nos últimos anos, houve no ocidente uma onda de produção legislativa restritiva de direitos, para promover a persecução penal. O móvel foi, principalmente, a chamada ameaça terrorista. Alguns países importantes para a história dos direitos fundamentais editaram leis que, mesmo sem a decretação de mecanismos emergência constitucional, dão poderes excessivos aos agentes públicos.

No Brasil, essa onda também é perceptível. Com os grandes eventos aqui promovidos — Copa do Mundo e Olimpíadas —, houve a edição de leis voltadas a combater organizações criminosas e ações terroristas. No entanto, não é apenas no campo da produção legislativa que essa tendência é notada. A interpretação da Constituição e das normas penais e processuais penais tem sido pressionada por exigências de efetividade. A resposta à essa pressão tem nos levado a flertar, em muitos temas, com o autoritarismo.

Na decisão do HC 126.292, o Supremo Tribunal Federal iniciou uma virada em sua jurisprudência, considerando haver compatibilidade ente a execução provisória da pena e o direito à presunção de inocência. Agora, com o julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, que pede a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, o Tribunal terá a oportunidade de retomar a discussão, já que, como guardião da Constituição, terá a oportunidade de evitar uma interpretação restritiva do direito fundamental à presunção de inocência.

O artigo do Código de Processo Penal em debate determina:

Artigo 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

§ 1º As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade (Incluído pela Lei 12.403, de 2011).

§ 2º A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio (Incluído pela Lei 12.403, de 2011).

O dispositivo citado apenas sistematiza, na norma processual, o uso do poder estatal de restringir a liberdade pessoal, tal qual já tratado na Constituição da República. A liberdade é a regra, a prisão é a exceção. Vejamos os dispositivos constitucionais relevantes para este debate:

Art. 5º (…)

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

(…)

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

(…)

LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Não estamos aqui diante de normas principiológicas, mas de regras claras, que fixam limites ao agir do Estado. Não há espaço para ponderação, para sua aplicação proporcional. A Constituição preserva a liberdade pessoal, restringindo o exercício do poder de prender pelo poder público. Ao Estado é dado o poder de restringir a liberdade de um indivíduo “considerado culpado” ou, ainda antes da condenação, “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária”. No primeiro caso, o trânsito em julgado da sentença condenatória é razão suficiente. No segundo caso, é necessário existir motivação específica. Os presos em flagrante serão libertados “quando a lei admitir liberdade provisória” e serão presos por ordem judicial os que, em liberdade, possam prejudicar o desenvolvimento das investigações ou do processo.

Lembre-se que, para além da garantia constitucional, é preciso levar em conta as garantias decorrentes da participação do Brasil no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 8.2, determina a presunção de inocência e o direito de recorrer a um tribunal superior de forma ainda mais clara que a nossa Constituição:

Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.  Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

(…)

h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

A proteção multinível da liberdade pessoal — combinando as proteções nacional e internacional — leva-nos a concluir que não importa se a culpa foi declarada em uma, duas ou mais decisões. O que importa é se há ou não o trânsito em julgado da decisão, o que inclui o recurso a tribunais superiores.

A execução da pena antes do trânsito em julgado da decisão condenatória inverteria a presunção constitucional. Uma vez confirmada por um tribunal a condenação, mesmo ainda possível interpor recurso, presumir-se-ia culpado o réu. Quando a Constituição fala em “ordem fundamentada”, liga essa fundamentação à restrição da liberdade, o que não estaria presente em uma prisão escorada, apenas, na confirmação da condenação por um tribunal. Nesse caso, a prisão decorreria da declaração judicial precária de culpa, ainda passível de revisão.

Ao consagrar tal relativização da presunção de inocência, O Supremo Tribunal Federal poderia abrir espaço para alterações legislativas restritivas da liberdade bem mais perigosas, como, por exemplo, a previsão de situações nas quais a apelação não teria efeito suspensivo, sendo justificável a execução da pena desde a condenação. Não pode ser desconsiderado, ainda, o efeito concreto do cumprimento provisório da pena na vida do indivíduo. De pouco serviria uma alteração, ao final, da posição do Estado-juiz, por uma bela decisão de um tribunal absolvendo alguém, reconhecendo erros nas decisões anteriores, quando, de fato, já tivesse ele cumprido totalmente uma pena que não merecia.

Sempre haverá, diante de grandes atos criminosos, uma pressão por mais eficiência na punição de culpados. Mas é preciso ter em mente que os caminhos mais fáceis não são necessariamente os melhores. Nós, os juristas, precisamos agir na resistência, evitando embarcar nas ondas que guiam o senso comum. Precisamos resolver os problemas de efetividade da persecução penal por outros caminhos, que não sacrifique garantias tão caras à humanidade. Relativizar garantias constitucionais tão claras como a da presunção de inocência pode ter um custo muito mais alto do que visualizamos em um primeiro momento.

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