Opinião

Sem trânsito em julgado não há espaço para iniciar execução de pena

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8 de setembro de 2016, 11h38

Recentemente o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, decidiu que não é preciso que se aguarde o exame dos recursos especial e extraordinário para que o condenado inicie o cumprimento de uma condenação criminal. Em outras palavras, não violaria a presunção de inocência o início do cumprimento da pena após o julgamento da apelação.

A decisão foi tomada em momento de grande cobrança da população por penas mais duras, combate à impunidade, e por uma justiça menos morosa e mais efetiva.

Inegável a relação que há entre a decisão tomada por maioria pelos ministros e o tempo que o Judiciário leva para esgotar o exame dos recursos previstos na lei. Ocorre que, no mais das vezes, o tempo que se considera intolerável normalmente é o tempo em que o processo fica em cartório esperando para ser julgado. Ou seja, se o tempo de duração do processo pode ser considerado longo demais, assim se dá não por responsabilidade do réu ou de previsões legais lenientes com a defesa, mas sim circunstância atribuível mais à burocracia.

Mas por causa desta deficiência da máquina burocrática o STF acabou por punir o acusado, em processo criminal. No atacado, todos passam a sofrer déficit de exercício da defesa por causa da demora atribuível apenas e tão somente a trâmites barnabés; no varejo, cada condenado passa a ser considerado culpado antes do tempo estabelecido pela Constituição: o trânsito em julgado de sentença condenatória.

Buscando mitigar a gravidade que é a flexibilização de norma expressa da Constituição Federal, cláusula pétrea da carta republicana, os defensores da guinada jurisprudencial argumentam que a mudança se justifica, entre outras coisas, porque só no Brasil existem quatro instâncias decisórias.

Já de antemão parece equivocado querer comparar no varejo sistemas jurídicos diferentes, sem levar em conta as idiossincrasias de cada modelo.

O Brasil ainda não pode se comparar com países onde o respeito aos direitos e garantias fundamentais atingiu o patamar de excelência exigido pelas convenções internacionais. Ao contrário de muitos outros modelos nos quais existem apenas duas instâncias de julgamento penal antes do início do cumprimento da pena, o Brasil ainda começa a dar passos em direção ao respeito a direitos e garantias fundamentais dos acusados, sobretudo nas instâncias estaduais, nos rincões do país.

Cada modelo jurídico tem seu sistema de pesos e contra presos, que busca dar equilíbrio à justiça, que sopesa sempre que possível eficácia penal com o mínimo de risco ao cidadão inocente. O grande erro, ao ver do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e pedindo licença para a alegoria, foi importar uma arma de grande destruição sem trazer junto na bagagem a trava de segurança…

Embora o remédio pareça bom, às vezes o paciente padece de alergia. O Brasil, ao contrário do que se apregoa, ainda tem um sistema que pende muito mais para a punição severa e implacável de quem é engolido pelas teias da justiça, do que a um sistema preocupado com a salvaguarda dos direitos do cidadão, seja ele culpado ou inocente (aliás, não é demais ponderar que a distinção clara entre processo penal civilizado e outras modalidades de tratamento penal, se dá quando o sistema se depara com agente culpado e, mesmo assim, assegura ao criminoso notório todos os instrumentos do sistema).

A qualidade dos julgamentos penais no Brasil ainda é muito precária.

A prova normalmente é a do inquérito. Ainda há uma forte dependência de depoimentos de policiais, confissões e testemunhos de ouvir dizer. A prova pericial raramente existe, e quando existe são raríssimas as perícias que respeitam formas de garantir a integridade da prova, como a cadeia de custódia. Pouquíssima coisa é produzida no contraditório judicial. Testemunhas de defesa, e por vezes até mesmo o advogado de defesa, tendem a ser vistos como pesados penduricalhos que é preciso apenas tolerar. O juiz da investigação é o mesmo da instrução, que é o mesmo do julgamento. Dificilmente medidas ilícitas da fase de inquérito são questionadas pelo juiz do julgamento. Na maioria das vezes, as sentenças não dão aos argumentos da defesa a atenção que merecem. O juiz normalmente expõe as provas que usou para condenar, mas raramente justifica porque preteriu as provas de inocência produzidas pela defesa. A jurisprudência dos tribunais ainda é um mero recurso retórico, em que cada um invoca aquilo que lhe convém. Julgamento penal ainda é questão de sorte ou azar, depende do juiz sorteado, ou da câmara preventa, tamanha a dose de arbitrariedade que o sistema permite.

A garantia do júri, que em alguns países ajuda mitigar o arbítrio do julgador com virtudes próprias do julgamento feito por juízes leigos, é restritíssima no Brasil, utilizada tão só nos crimes dolosos contra a vida.

O julgamento colegiado é restrito ao segundo grau, e não permite senão o reexame de papéis produzidos na primeira instância, sem grande espaço para debates orais aprofundados sobre a culpa e, porque não dizer, sobre o direito.

A garantia do livre convencimento se converteu no Brasil em salvo conduto para que alguns magistrados decidam ao bel prazer de convicções pessoais, mesmo que em dissonância ao entendimento pretoriano (num verdadeiro júri de um homem só). Muitos juízes ainda usam os argumentos da acusação como razões de decidir, e sentenças condenatórias são mantidas nos tribunais com aquilo que se denomina fundamentação per relatione.

O órgão acusador no Brasil ocupa lugar de onipresença no sistema judicial brasileiro. Acusa e opina no mesmo caso. E quando opina raramente contraria sua face acusadora.

Condenações originadas em segundo grau (reformando sentenças absolutórias), no que se referem a apreciação de prova, não estão sujeitas ao duplo grau de jurisdição.

A jurisprudência ainda é muito dividida em muitos aspectos do direito penal, há pouquíssimas questões sumuladas, muito menos de caráter vinculante, o que dificulta a unificação do direito federal e permite grande dose de arbitrariedade da justiça dos Estados. E mesmo questões sumuladas não são cumpridas pelas cortes regionais ou estaduais, como apontou estudo não muito antigo feito pela Fundação Getúlio Vargas.

Releva apontar que à letra da Constituição Federal (artigo 5º, inciso LVII), à Declaração Universal de Direitos Humanos (artigo XI, 1) e ao Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8, 2), seguiu-se o Código de Processo Penal, afirmando, ausente lastro para dúvida, que sem trânsito em julgado de sentença penal condenatória não há espaço para início de execução de pena.

Há pouco tempo portanto, o Supremo viu seu presidente, ministro Cezar Peluso, movimentar-se no sentido de obter por emenda constitucional exatamente o que acabou decidido pela corte. Não deixa de ser curioso, também, que idêntica proposta de modificação normativa tenha sido feita por procuradores da República, que formularam um pacote de mudança legislativa, chamado “10 medidas contra a corrupção”, e que precisou da assinatura de mais de dois milhões de pessoas para virar um projeto de lei. Ambas, note-se,  iniciativas que, sintomaticamente, passam ou passariam pelo Poder Legislativo, ambiente natural para a legislação em matéria penal. E parece haver um consenso, mesmo entre aqueles que concordam com o mérito, de que tal mudança só seria possível — se é que é possível mexer numa cláusula pétrea — no mínimo mediante uma emenda constitucional (alteração dos artigos 92, 102 e 105 da CF/88). Jamais por interpretação judicial que relativiza a previsão do artigo 5º, LVII. 

A justiça penal, em suma, padece de muitas dificuldades. O tempo que leva que punir alguns acusados é apenas uma destas. No entanto, não é porque alguns ficam inadimplentes, que vamos então cobrar antecipadamente a dívida de todos. Simplesmente, não é justo que seja assim.

A justiça precisa resolver seus gargalos, suas mazelas, a maioria delas prejudiciais ao direito de defesa, e não sacrificar ainda mais a presunção de inocência, já tão combalida e fragilizada pela nossa precária prática penal.

*Texto alterado às 13h52 do dia 8 de setembro de 2016 para acréscimo.

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