Retrocesso penal

Prisão antes do trânsito em julgado levaria Brasil de volta à ditadura Vargas

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7 de setembro de 2016, 13h14

Em novembro de 1937, Getúlio Vargas seguiu os passos de Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália. Instituído por golpe, o chamado “Estado Novo” suspendeu os direitos políticos no Brasil, aboliu partidos, fechou o Congresso, Assembleias e Câmaras Municipais. Proibiu-se também a entrada no país de pessoas de origem judaica.

Um mês depois da instauração da ditadura, Getúlio publicou o Decreto-Lei 88/1937. A norma criou o Tribunal de Segurança Nacional, que julgava crimes contra o Estado e a economia popular, e introduziu na legislação brasileira a prisão sem o trânsito em julgado da condenação. Tão grave quanto isso: transferiu para o acusado a obrigação de provar sua inocência. Sem meias palavras, estabeleceu no seu artigo 20: “Presume-se provada a acusação, cabendo ao réu prova em contrário (…)”.

O ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello traz a lembrança do triste período da história para alertar seus companheiros de corte dos riscos de se autorizar a execução da pena antes do fim do processo. Nesta quinta-feira (8/9), o STF retoma o julgamento sobre essa questão após autorizar a prática em fevereiro.  

O decano da corte, que na próxima segunda-feira saudará, em nome dos colegas, a nova presidente da corte, Carmen Lúcia, e seu vice, Dias Toffoli, não esconde seu incômodo com o risco de retrocesso no campo penal brasileiro. Não se sabe se o ministro citará a “marca registrada” jurídica do Estado Novo, o Decreto-Lei 88/1937. Mas o decano do tribunal tem discutido o assunto com os colegas e já citou o diploma em pelo menos um voto para repudiar a volta da prisão antes da condenação definitiva do réu. Ao avaliar a Ação Penal 898, o magistrado afirmou que em uma democracia, “não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório”.

Celso de Mello considera uma tragédia o Poder Judiciário submeter-se à opinião pública e invoca Rui Barbosa, que descreveu como “prevaricação judiciária” o juiz fazer concessões por medo da manchete do dia seguinte ou, literalmente, por “venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado [ou], interesse supremo”, no texto O Justo e a Justiça Política, que se encerra com a grave conclamação: “O bom ladrão salvou-se na cruz. Mas não há salvação para o juiz covarde”.

Na avaliação de Gilson Dipp, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, o texto constitucional é claro ao não permitir a prisão antes do trânsito em julgado. Ele falou também à ConJur que a alteração deste preceito só poderia ser feita por meio de uma emenda à Constituição. De acordo com Dipp, o STF, mesmo sendo intérprete da Constituição, não poderia ter deixado de lado uma regra “tão clara” ao permitir, por meio do julgamento do HC 126.292, que réus sejam presos mesmo com recursos pendentes de apreciação.

Para o ministro Luís Felipe Salomão, liderança respeitada no Superior Tribunal de Justiça, o Direito no Brasil corre perigo. “Não é apenas a utilização da vítima ou dos supremos interesses da sociedade como escudo para justificar que qualquer meio é válido para se atingir o fim de protegê-los”, analisa. “É pior que isso: é fazer a opinião pública acreditar que, a médio e longo prazo, esta é a forma correta de combater a criminalidade e a impunidade”.

Vigora no Brasil um movimento camuflado, uma ilusão de ótica, diz o ministro. “São técnicas totalitárias de difusão da informação errada”. E, como todo erro, conclui, esse também tem seu preço. “Pisotear direitos fundamentais sempre custou muito para a humanidade, seja a que pretexto for”.

O problema é que essa onda acabou contagiando os juízes, que “estão gostando de ser ‘protagonistas’ da repressão”, opina o também ministro do STJ Napoleão Nunes Maia Filho. “É muito fácil falar sobre a necessidade de reprimir as ilicitudes, porque a simples notícia da sua ocorrência já provoca uma reação contra os fatos, sejam ou não verdadeiros, tenham ou não a conotação que lhe é atribuída — há uma clara tendência de se aceitar a acusação como prova e, com base nela, se adotar ‘sanções simbólicas’. Veja você a oposição contra a disciplina das investigações — os agentes das investigações parecem pensar que o seu trabalho não deve ter limites. Algo como ‘se os fins são bons’, os meios para alcançá-los são antecipadamente aceitos como ‘justos’ e ‘certos’”.

Segundo Alexandre Morais da Rosa, juiz em Santa Catarina, negar a literalidade do artigo 5º da Constituição é um “drible punitivista” que manipula a premissa de se evitar que se puna inocentes.  Se o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo admitiram os recursos, diz, é porque há plausibilidade, caso contrário o recurso não teria seguimento. “A lógica autoritária da punição serve aos populistas togados, Ministério Público oportunista e mídia que vende o produto crime/prisão.”

Para ele, recompor a posição contramajoritária do Judiciário não é para quem gosta dos “afagos” da mídia. De acordo com Rosa, o juiz que colocar barreiras ao punitivismo corre o risco de ser “fuzilado pelo coro que pede linchamento e execução”. “A escolha é arriscar punir um inocente em nome da punição de outros. Da resposta você descobre o quanto civilizado você é.”

Na opinião de Paulo Busato, procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná, não existe outra forma de interpretar a Constituição que não seja o reconhecimento de que o trânsito em julgado é condição básica da afirmação de culpa e sem culpa não existe condenação. Ao mesmo tempo, afirma que o sistema recursal ultrapassa em muito o exigido duplo grau de jurisdição, sendo muitas vezes fonte de “justiça tardia que é sinônimo de injustiça”. Para ele, a decisão do STF permitindo a prisão após decisão de segundo grau foi uma inconstitucionalidade cometida impulsionada por outra pelo fato de o tribunal não exercer, realmente, a condição de Corte Constitucional em função da “barafunda do sistema recursal”.

Também nessa linha, o especialista em Direito Penal Guilherme San Juan Araujo ressalta que a Constituição deixa explícito que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. “Negar a existência desse dispositivo constitucional tão duramente conquistado, é negar a vigência da Carta Magna e reconhecer que estamos à beira do estado de exceção”, analisa.

Por mais que haja grande sensação de impunidade no Brasil e que poucas condenações penais sejam revertidas no STJ e no STF, não é possível desconsiderar o texto constitucional, destaca o advogado Alexandre Kruel Jobim. “Não podemos ignorar ou interpretar contra a literalidade e verdadeira vontade dos dispositivos constitucionais por entender que não mais deveria vigorar este sistema, esta função é do Poder Legislativo. Seria como darmos uma interpretação ‘desconforme’ sem redução de texto”.

De acordo com o advogado e professor de processo penal Aury Lopes Júnior, existem casos de juízes e tribunais determinando a prisão com a simples invocação do HC 126.292, sem qualquer fundamentação, “o que é uma flagrante ilegalidade”. Na opinião dele, o STF é o guardião da Constituição, mas não é criador de conceitos jurídicos. E a Constituição é clara ao vincular a proteção de inocência ao trânsito em julgado.

O advogado afirma que trânsito em julgado é um conceito dado pela dogmática processual penal, com séculos de debate e assentamento de parâmetros. “Não se trata de um conceito que possa ser forjado a golpes de martelo, a golpes de decisão, senão que é um conceito dogmático, com uma história e um consenso doutrinário. Não é o STF quem vai dizer o que é trânsito em julgado.”

A decisão do STF no julgamento do HC 126.292 constitui o que ele chamou de “sintoma de uma grave esquizofrenia jurisdicional”. “Como pode o STF declarar o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário e depois tomar uma medida dessas, de profundo impacto encarcerador? Não tem explicação lógica ou coerência decisória”.

O criminalista Nabor Bulhões critica o argumento de que a prisão antes do trânsito em julgado é necessária porque a demora na análise de recursos em tribunais superiores pode levar à prescrição da pena. Para o advogado, é responsabilidade do Judiciário adotar medidas para viabilizar o julgamento mais rápido possível dos recursos. “As dificuldades para se julgar os recursos não pode significar um óbice à realização de um direito que se substancia em um bem maior, depois da vida, que é a liberdade”, afirma.

Ele também avalia ser pouco convincente a linha de fundamentação segundo a qual a falta de efeito suspensivo desses recursos poderia significar a possibilidade de se antecipar a execução da pena. “A execução antecipada da pena privativa de liberdade viola de forma lancinante a garantia da presunção da inocência”. O criminalista cita dados estatísticos sobre recursos no STJ e STF que indicam que pelo menos um terço dos recursos gera provimento, possibilitando a desconstituição das sentenças penais condenatórias e assegurando a liberdade do recorrente. Se o STF mantiver o entendimento de que é possível antecipar a pena após decisão de segundo grau, diz o advogado, as pessoas envolvidas nesse um terço dos recursos sofrerão consequências no plano de sua liberdade.

A Igreja Católica também não acredita que a virada jurisprudencial do STF seja a solução para a criminalidade do Brasil. “Claro que temos de superar o mal da impunidade. Mas não se supera a impunidade encarcerando, e sim cumprindo com exatidão e retidão os preceitos que regem o ordenamento jurídico”, afirma o advogado Carlos Moura, secretário-executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

“Nós não podemos viver num estado democrático que tenha por princípio apenar e prender. O Estado tem de propiciar a paz e cumprir o legítimo direito de defesa que é assegurado na Constituição, inclusive por intermédio do trânsito em julgado das decisões condenatórias”, aponta Moura.

Ele avalia que os cenários político, econômico e social do país têm gerado nos brasileiros “uma exacerbação da punição”. Mesmo assim, diz ter “esperança” de que a tese do STF “não vai se perpetuar”, pois entende que o encarceramento desmedido irá afetar mais a população pobre, sobretudo negra.

Solução ineficaz
Mesmo entre os defensores da “virada jurisprudencial” há quem relativize o peso da mudança como remédio para os maiores males da Justiça brasileira. Os ministros do STF Gilmar Mendes e Dias Toffoli concordam, igualmente, que os principais problemas são sistêmicos — ou seja, dependem de gestão, cultura e não mudanças tópicas.

Gilmar Mendes chega a apelidar de "esparadrapos" esse tipo de intervenção. "O réu preso deveria ser julgado em 81 dias. Isso sim é um grande problema e que não se resolve com paliativos". Ao contrário, diz Gilmar, “esse quadro só aumenta o empoderamento dos grupos que todos conhecemos”.

Dias Toffoli teme pelas deformações e engessamentos que se desenham a pretexto de combater irregularidades. “Em determinado momento, advogados da União que passaram a firmar acordos em causas desimportantes para poder se concentrar nos processos relevantes para a União e foram condenados pelo TCU. Resultado, a AGU parou de fazer acordos. Que país queremos para as próximas gerações? Um lugar onde ninguém vai querer ser administrador público ou mesmo trabalhar com o governo?”

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